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hora de um Novo Humanismo

Para responder aos neoliberais, preciso propor um novo humanismo, que leve em conta as revolues da informtica e da biotecnologia

Patrick Viveret, Le Monde Diplomatique

O debate que se abre novamente sobre o humanismo de extrema importncia. Ele tem por origem as conseqncias daquilo que se comea a evocar sob os termos de "revoluo do ser vivo, revoluo "biolgica" ou "gentica", e das quais s conhecemos, da fecundao in vitro clonagem da ovelha Dolly, as primeiras etapas. Ao grande desafio ecolgico do sculo XX -- expresso pela questo: "que faremos do nosso planeta?" -- se acrescenta um outro, ainda mais radical, e de natureza antropolgica: que faremos de nossa espcie?

Sobre este terreno, a tradio humanista progressista confrontada com um debate, no somente com seus adversrios, mas tambm em seu prprio interior. A tese da "ps-humanidade; defendida, em suas linhas essenciais, por adversrios do humanismo. Ela foi expressa recentemente por dois homens. O primeiro identificado com a direita conservadora americana e, atravs de uma intensa publicidade, foi tornado clebre, em 1989, por seu artigo sobre "O fim da histria", inicialmente publicado em The National Interest: trata-se de Francis Fukuyama 1. O segundo, Peter Sloterdijk, vem, ao contrrio, da esquerda radical alem, est na origem de uma forte polmica com Jrgen Habermas e as teses da Escola de Frankfurt. A conferncia de ttulo significativo -- "Regras para o Parque Humano" -, proferida por ele em julho de 1999 por ocasio de um colquio sobre Martin Heidegger e Emmanuel Levinas, transformou-se, nas colunas do semanrio Die Zeit, no "affaire Sloterdijk". Ela encontrou seu prolongamento na Frana pela traduo do texto em questo e por diversas reaes que provocou 2.

A nova "tese" de Francis Fukuyama, formulada novamente em The National Interest 3, tem um interesse mais ideolgico do que terico. Mas, na medida em que ela exprime o ponto de vista de um dos "intelectuais" orgnicos -- no sentido gramsciano do termo -- colocados em posio de vanguarda pelo capitalismo contemporneo, deve ser conhecida e analisada. Nela, o autor afirma em primeiro lugar que os fatos confirmaram seu discurso sobre a realizao da histria (na acepo hegeliana e marxista do conceito) pelo capitalismo. Depois, sem pestanejar, anuncia que estava enganado, pois a revoluo biotecnolgica vai criar as condies para uma histria "ps-humana". Deixemos de lado a megalomania do autor para examinar o fundo do problema que ele aborda: as interaes entre as duas "revolues irms", das tecnologias de informao, por um lado, e das biotecnologias, por outro, e seu impacto sobre a ordem mundial.

O irvel mundo novo de Fukuyama

"Se a primeira a mais visvel", escreve Francis Fukuyama, "a segunda suscetvel de produzir as perturbaes mais importantes". O argumento explicitado em um pargrafo que merece ser citado integralmente, pois exprime sem rodeios os postulados antropolgicos do capitalismo anglo-saxo 4:

"O perodo aberto pela revoluo sa viu florescer diversas doutrinas que desejavam triunfar sobre os limites da natureza humana, criando um novo tipo de ser que no estivesse submetido aos preconceitos e limitaes do ado. O fracasso destas experincias, no fim do sculo XX, nos mostrou os limites do construtivismo social, confirmando -- ao contrrio -- uma ordem liberal, baseada no mercado e estabelecida sobre verdades manifestas, ligadas Natureza e ao deus da Natureza. Mas poderia muito bem ser que os instrumentos dos construtivistas sociais do sculo, desde a socializao a partir da infncia at a agitao e propaganda poltica e os campos de trabalho, ando pela psicanlise, fossem muito grosseiros para modificar profundamente o substrato natural do comportamento humano. O carter aberto das cincias contemporneas da natureza nos permite avaliar que, de hoje s duas prximas geraes, a biotecnologia nos dar instrumentos que nos permitiro cumprir o que os especialistas da engenharia social no conseguiram fazer. Neste estgio, teremos definitivamente terminado com a histria humana, porque teremos abolido os seres humanos enquanto tais. Ento comear uma nova histria, para alm do humano."

Estamos precisamente, como pode-se ver, no corao da famosa fico de Aldous Huxley, irvel Mundo Novo, publicada em 1932. Francis Fukuyama no se contenta em anunciar (e, implicitamente, em justificar) esta sada da era humana. A longa agem que ele consagra ao tratamento qumico das paixes pelo Prozac lembra estranhamente os famosos comprimidos de soma que as personagens de Huxley tomavam ao menor sinal de contrariedade. Considerando o elogio das desigualdades ao qual ele se dedica permanentemente, pressentimos igualmente que nosso autor consideraria, sem grande sobressaltos na alma, um mundo onde sub-homens estariam ao servio de super-homens. neste sentido que a afirmao da ps-humanidade pe em relevo mais um anti-humanismo terico e prtico do que aquilo que denominamos liberalismo.

Estes pretensos liberais so, na verdade, defensores de um anti-liberalismo cultural obstinado -- em nome, como diz Francis Fukuyama, do "deus da Natureza" -- e de um anti-liberalismo poltico no menos virulento, que se exprime principalmente pelas polticas repressivas em matria de imigrao, a livre circulao de capitais no tendo nada a ver, segundo eles, com a dos seres humanos. Quanto ao seu liberalismo econmico, ele vai desaparecendo medida que as posies dos Estados Unidos esto em jogo e que, conforme tinha mostrado fortemente Fernand Braudel, os interesses do capitalismo entram em contradio com a prpria lgica do mercado. Pode-se observar bem isso bem na reconstituio dos grandes trustes, cartis e monoplios que restituem toda a atualidade crtica marxista 5. Seu ponto comum , na verdade, pesquisar na direo de um anti-humanismo ideolgico e prtico, justificar esta desordem mundial estabelecida que conduz manuteno de aproximadamente trs bilhes de seres humanos em estado de sub-humanidade.

Sloterdijk esconde-se atrs de Plato

A reapario, no corao da Europa, de uma corrente filosfica baseada na crtica do humanismo inscreve-se neste mesmo contexto. Como no caso de Francis Fukuyama, a ateno que devemos dedicar a Peter Sloterdijk justificada mais pelo sintoma ideolgico inquietante que ele manifesta do que pela qualidade de seu pensamento: no Nietzsche que quer! Longe, alis, da audcia daquele que "filosofava a golpes de martelo", Peter Sloterdijk avana disfarado em uma boa parte de seu texto, utilizando um mtodo que no est longe de lembrar os deslizamentos semnticos sugestivos, caros s correntes de extrema-direita. As palavras que ele utiliza -- tais como "parque humano", "criao" (Nota do Tradutor: no sentido de criao de animais), "domesticao", etc. -- evocam ao leitor pouco familiarizado com a histria da filosofia, idias que se aparentam justificao de um projeto de instrumentalizao e de subordinao de uma parte dos seres humanos. Mas se algum denuncia o carter perigoso e regressivo de tais propostas, sobretudo no contexto alemo, ele grita contra o que considera ser uma difamao e se esconde atrs do fato de tais termos estarem presentes em Plato.

Entrincheirado atrs do autor da Repblica, Peter Sloterdijk pode escrever assim: "Desde o politikos e a politeaia, existem discursos que falam da comunidade como se tratasse de um parque zoolgico que , ao mesmo tempo, um "parque temtico". A partir disso, a manuteno dos homens nos parques -- e nas cidades -- pode aparecer como uma tarefa zo-poltica". Ou, mais longe: "No que concerne ao zoo platnico, importa-lhe sobretudo aprender se a diferena entre a populao e a direo somente de grau ou mais de espcie". O leitor que desconhece o contexto intelectual e poltico no qual se inscreve a obra de Plato assim reenviado aos seus caros estudos. A intimidao pretende fazer calar tais crticas, ao o que a sugesto funciona perfeitamente para aqueles que se re jubilam secretamente com tais termos.

Apesar disso, suficiente se indignar, gritar contra o eugenismo fascistide, como sugeriram Jrgen Habermas e alguns de seus discpulos? Esta indignao necessria, mas no suficiente. Duas razes maiores incitam lucidez sobre a crise do humanismo da modernidade. A primeira refere-se insuficiente considerao tanto da mutao informacional quanto da revoluo biolgica. A segunda, mais histrica, est relacionada s carncias do trptico indivduo/razo/progresso, tal como ele foi construdo a partir do perodo das Luzes. As grandes catstrofes ticas e humanitrias do sculo XX, assim como o carter inumano do capitalismo industrial do sculo XIX puderam encontrar nele dois grandes pontos de fragilidade.

Inicialmente, fragilidade ecolgica: ao fazer do homem cartesiano "o mestre e possuidor da natureza", sem que ele se interrogue sobre sua responsabilidade para com seu ambiente, o humanismo, fascinado pelo progresso tcnico, depois pelo novo trptico cincia/tcnica/mercado, no se protegeu contra o que, nos anos 70, Illich denominar sua "parte de contra-produtividade". Em segundo lugar, fragilidade antropolgica: aps o desmoronamento das "sociedades da ordem", a refundao de todo lao social unicamente a partir do indivduo racional, ignorava a insero coletiva e organizava um cara-a-cara entre o indivduo e o Estado e subestimava as aspiraes emocionais e espirituais da condio humana 6, facilitando tanto as aproximaes de tipo capitalista quanto as lgicas estatizantes.

Da reproduo assistida fabricao do ser humano

No momento em que somos confrontados ao desafio ecolgico 7 -- de um desenvolvimento durvel, para ns mesmos e para as geraes futuras --, e ao desafio antropolgico -- de uma possvel mutao da espcie humana --, no podemos esquecer que um novo humanismo deve pensar as tenses dinmicas entre indivduo e comunidade; entre razo crtica e busca de sentido; entre transformao da natureza e respeito pela biosfera; entre progresso tcnico e cientfico e vigilncia sobre seus potenciais efeitos destruidores. A fim de resistir aos fantasmas da ps-humanidade, toda refundao deve levar plenamente em conta a mutao informacional 8 e a revoluo do ser vivo, que, em sua relao sistmica, sacodem profundamente as marcas do "habitat" humano. , com efeito, ao mesmo tempo, nosso modo de habitar o mundo e de habitar nosso prprio corpo que se encontra transformado at tocar nosso ponto mais ntimo, a partir do momento em que amos insensivelmente da reproduo assistida para a fabricao do ser humano.

Nestas condies, no surpreendente que diversos autores no somente denunciem com fora a instrumentalizao e a mercantilizao -- nico uso que o capitalismo contemporneo faz desta dupla mutao --, mas tambm coloquem em causa aquilo que as correntes progressistas e feministas consideram como avanos sociais: aborto e reproduo assistida, especialmente.

A mais radical em sua interpelao , sem dvida, a psicanalista Monette Vacquin que, em Main basse sur les vivants 9, coloca uma questo crucial: "Eu procurava compreender e enunciar por que nossa gerao tinha arrancado a origem da sexualidade, por que, hoje, ela estava ao ponto de anular a diferena de geraes, de pulverizar as relaes de parentesco". Denunciando a ligao "turva e perturbadora entre industrializao da criao e ginecologia", ela se pergunta como pesquisadores nascidos durante ou imediatamente aps a guerra, freqentemente militantes anti-fascistas, puderam dar ao mundo "as ferramentas do eugenismo mais louco, indo contra seus ideais mais preciosos, como se uma repetio estivesse zombando deles?" (...) "Por que tal perfume, o do inconsciente mais arcaico, na cincia de ponta?" (...) "Por que este esboroamento da Razo maiscula parece nos fazer perder a nossa? E por que a humanidade parece hoje como algo extremamente bom de se abandonar?"

Compreende-se, ento, que aos olhos da autora, a perspectiva da clonagem no seja mais do que a parte visvel de um iceberg cuja a massa invisvel a de um fantasma infantil de onipotncia, e uma forma desviada de colocar em questo a proibio do incesto: "Denominamos incestuosa este impulso des-diferenciador (d-diffrenciante) que tende inexoravelmente padronizao e fabricao do mesmo". E citando Jean Baudrillard, em A Transparncia do Mal: "Ns generalizamos o incesto em todos os seus derivados. assim que contornamos o proibido, pela subdiviso do mesmo, pela copulao do mesmo com o mesmo, sem ar pelo outro" 10. Despojada das tranqilizadoras perspectivas teraputicas que, segundo ela, tinham adormecido o pensamento, a clonagem se impe como um limite a este processo. Somente ela enfim capaz de fazer aparecer "no seio da comunidade cientfica, assim como da sociedade civil, a enunciao da proibio -- largamente ausente j h vinte anos nesta formulao elementar -- e especialmente nos textos de leis, que usavam perfrases para evitar seu emprego e assim, suponho, poupar as conscincias de uma gerao que havia proibido o proibir".

Em certos momentos, pode-se perguntar onde se localizam as fronteiras entre a crtica legtima de Monette Vacquin e as posies das correntes tradicionalistas que inscrevem a condenao da clonagem humana em uma recusa global no somente do aborto -- at mesmo da contracepo --, mas tambm da reproduo assistida, assim como de toda pesquisa sobre um embrio definido como j sendo uma pessoa. Em resumo, estamos condenados, em nome da recusa instrumentalizao e transformao do ser humano em mercadoria, a reexaminar conquistas centrais do liberalismo cultural? O bilogo Henri Atlan acredita que no. Sua denncia dos efeitos devastadores do capitalismo no domnio biolgico to clara quanto a de Monette Vacquin, mas ele tira dela concluses em parte inversas.

Libertar a Humanidade do trabalho e do parto?

Em seu ltimo livro, Les Etincelles de hasard 11 (As centelhas do acaso), Henri Atlan mantm o ponto de vista emancipador da tradio progressista, fundamentando-o numa leitura to erudita como apaixonante da Cabala e de Spinoza: "A cincia e a tecnologia parecem liberar pouco a pouco os filhos de Ado e Eva da maldio bblica, do trabalho em meio ao sofrimento e do parto na dor". Aliando-se neste ponto a Hannah Arendt, ele nota que "a vocao do homem, em todo caso para os mestres do Talmud, a atividade criadora do conhecimento na sabedoria, e nunca a escravizao dor e ao sofrimento do trabalho". Mas ele ultraa estas inflexes -- que lembram as de Andr Gorz 12 -- para evocar uma outra emancipao, bem alm do parto sem dor, aquela que, diz ele, permitiria "uma liberao completa do fardo do parto...ao menos para aquelas mulheres que o percebem como um fardo".

Assumindo plenamente a dissociao da fecundidade e da procriao, da qual a contracepo e o planejamento familiar foram os vetores originais, Henri Atlan estima que "o processo de planificao positiva est em andamento, e pode levar, em um prazo mais ou menos breve, a uma separao total entre procriao e sexualidade. As crianas seriam ento produzidas desde o incio -- fecundao in vitro, clonagem -- at o fim -- por gestao artificial -- fora do corpo das mulheres". Certamente, acrescenta, "estamos ainda longe disso, no que concerne possibilidade de gestao extra-corporal, mas nada, em princpio, impede de imaginar a soluo dos numerosos problemas tcnicos que a criao de um tero artificial oferece".

Trata-se de um risco ou de uma oportunidade? Henri Atlan considera que as duas possibilidades esto abertas 13. Se ele se ope com fora a toda lgica de instrumentalizao do ser humano, se ele atribui questo da filiao uma real importncia, ele no tira apesar disso concluses totalmente negativas a respeito da dissociao da relao sexualidade/procriao. Duas frases de seu livro devem ser citadas aqui com prudncia pois, extradas de seu contexto favorvel proibio da clonagem, elas poderiam conduzir a uma incompreenso do autor.

Mas elas mostram que ele no hesita em assumir at o fim a lgica de sua tese, e delimitam a natureza de sua divergncia com Monette Vacquin: "A fabricao do ser vivo-humano e no humano, acompanhar, de uma maneira que parece inevitvel, a liberao da humanidade das maldies de sua condio, que a foram a sofrer, simplesmente nutrindo-se para sobreviver e para se reproduzir. As dores do trabalho tero desaparecido, nos dois sentidos -- o do parto e o do cuidado com a criao. A clonagem reprodutiva humana seria um o nesta direo".

Esta posio no o impede de se pronunciar -- como o fez o Comit Consultivo Nacional de tica para as Cincias da Vida e da Sade, do qual um membro influente -- em favor da proibio de toda clonagem humana. Mas ele no baseia esta proibio nem sobre motivos biolgicos (dois seres clonados seriam geneticamente menos prximos que dois verdadeiros gmeos), nem sobre razes religiosas e metafsicas. Sua leitura do Talmud o conduz a concluses opostas s hipteses tradicionalistas.

Uma tica para as mutaes genticas

o risco social que lhe parece fundamental, considerando o estado moral atual da humanidade: "Como na lenda de Jeremias e do Golem que ele fabrica, a questo saber se as sociedades humanas podem estar moralmente altura do desafio que constituiria, para a humanidade, a capacidade de racionalizar e de controlar totalmente, pela tcnica, a vida dos seres humanos... Nada impede de imaginar um tempo onde uma humanidade, pacificada e cada vez mais aberta aos refinamentos da vida e do esprito, poder fazer um uso racional e benfico dos produtos do progresso tecnolgico, incluindo a o domnio da fabricao de seres vivos".

Jacques Testart, que tambm aborda este tema capital em seu ltimo livro, Des hommes probables 14, est sem dvida mais prximo de Monette Vacquin do que de Henri Atlan. Sua abordagem , porm, mais enraizada sobre o terreno poltico e biolgico, e sua justificao matizada pela injeo direta de um espermatozide no vulo (ICSI), da qual ele um dos melhores especialistas mundiais, no conviria sem dvida ao radicalismo crtico de outros autores. Em todo o caso, ele junta-se autora de Main basse sur les vivants quanto ao princpio da proibio definitiva da clonagem. Mas ele considera "ilusrio querer construir uma tica sa no momento em que se edifica uma economia mundial". Considerando que a Frana, nota ele, est entre os pases mais restritivos, certos pacientes vo buscar fora de suas fronteiras tcnicas proibidas em seu prprio pas: doao de vulo entre familiares, teros substitutos, assistncia mdica procriao aps a menopausa.

"O mais grave", acrescenta Jacques Testart, " que certos mdicos burlam a lei, seja indo fazer pequenos trabalhos fora do Hexgono ( preciso publicar!) seja despachando para laboratrios estrangeiros exames realizados na Frana, a fim de submet-los a prticas no regulamentadas (pesquisa sobre embrio, diagnstico gentico pr-implantao)... A soluo est necessariamente na adoo de regras ticas aplicveis espcie...e esta via foi aberta pela criao de um comit internacional de tica sob a gide da Unesco". Para ele, a biotica precisa dos cidados do mundo para se construir em benefcio da humanidade, mais do que "servir de tapa-sexo para profissionais da biotica, para grupos com mania de seminrios, para cientistas em busca de reconhecimento e para mdicos e industriais em busca de novos mercados".

Estas regras ticas evocadas por Jacques Testart so longa e minuciosamente discutidas em uma recente obra coletiva sobre Le Clonage Humain 15. A jurista Mireille Delmas-Marty evoca a especialmente a necessidade de no reduzir a noo de humanidade sua dimenso biolgica expressa pelo termo "espcie". Os direitos da pessoa humana so, em primeiro lugar, estima ela, "um protesto contra a ordem da natureza". Quando a Declarao universal afirma que "os homens nascem livres e iguais", eles no so, na realidade, do ponto de vista biolgico, nem iguais nem verdadeiramente livres. H, portanto, algo irredutvel no humano que ultraa infinitamente sua definio biolgica. E quando se evoca a "dignidade humana", conceito central de todas as grandes declaraes que pretendem proibir a clonagem, esta mesma dignidade definida negativamente, na medida em que seu contedo positivo , ao menos em parte, indefinvel.

por isso que a dimenso simblica, analisada pelo antroplogo Marc Auge neste mesmo livro, tambm essencial. Assim como Monette Vacquin, Marc Auge evoca o risco regressivo de uma "escalada na direo de uma indiferenciao primeira". O nascimento da humanidade a, ao contrrio, sublinha ele, pela "descoberta da diferena: dos sexos, dos outros e da morte". Mas como assumir positivamente esta trilogia da sexualidade, da alteridade e da morte? Estamos a no corao de um paradoxo maior.

A refundao humanista possvel?

Pois muitas tentativas humanas, quer elas sejam polticas, culturais ou, mais recentemente, qumicas ou biolgicas, procuram justamente nos livrar da parte de sofrimento que esta tripla diferenciao carrega. Desde a fascinao do Mesmo (face ao Outro), entre os primeiros filsofos, at o projeto do "homem novo" fundado no grande todo social dos regimes totalitrios, ando pela venerao de um Deus nico e unificado na histria religiosa, toda uma parte da histria humana clama contra a diferena. Escolher a humanidade face aos fantasmas, aos mitos e s realidades da indiferenciao afirmar um projeto no qual a alteridade constitui uma oportunidade e no uma ameaa.

possvel, nesta perspectiva dinmica, pensar numa refundao do humanismo integrando as contribuies essenciais dos trabalhos que acabamos de analisar, sem esquecer a fecundidade de suas divergncias? Uma pista nesta direo poderia ser a de distinguir entre o infantil e a criana. O risco, bem analisado por Monette Vacquin, do carter infantil e fantasmagrico da pulso de onipotncia (ou de oniscincia), em obra na tecno-cincia atual, parece to mais importante na medida em que ele est inscrito na pulso de riqueza e de potncia, que no possui limites, do capital financeiro. Neste sentido, poderamos caracterizar a desregulamentao psquica provocada pelo capitalismo como um desejo de onipotncia aliado a uma recusa de responsabilidade. Alis, porque pressentem as conseqncias devastadoras de uma liberdade sem responsabilidade que os ultra-liberais econmicos so, na maior parte dos casos, anti-liberais culturais e polticos.

A transgresso fecunda das proibies

Mas a questo do fantasma infantil no anula o que h de melhor na criana, em particular a riqueza criadora de sua curiosidade e sua capacidade de vivenciar a dimenso maravilhosa da vida. Indagado um dia sobre o que caracterizava um esprito cientfico, Albert Einstein respondeu assim: a capacidade de se colocar questes de criana na idade adulta. Do mesmo modo, no podemos rebaixar ao infantil a famosa frase do Evangelho anunciando que o reino dos cus s visvel ao corao de uma criana. H uma parcela de verdade nas duas afirmaes, que poderamos exprimir sinteticamente pela seguinte questo: como crescer para tornar-se criana? Trata-se, com efeito, de abrir uma alternativa dinmica ao infantilismo e rigidez do estado adulto.

Compreende-se melhor, ento, o que quer dizer Atlan quando diz que um progresso moral da humanidade poderia tornar possvel, de maneira no destrutiva, a eventualidade da clonagem. Certamente, sempre h uma proibio necessria, mas ela de natureza diferente. Num caso, a idia de que preciso impor proibies transcendentes ao ser humano em si mesmo, a fim de defend-lo de sua prpria loucura (ou de seu pecado original) repousa sobre um fundo de pessimismo radical a respeito do humano. Na segunda hiptese, o proibido um momento estruturador da abertura para uma liberdade que no antinmica em relao responsabilidade. A pesquisa, a transformao da natureza, a transgresso das proibies sociais ou morais anteriores so ento legtimas e fecundas, caso sejam testemunhas de uma humanidade em via de crescer e no de regredir.

No nesta sabedoria, ao mesmo tempo espiritual e poltica, que devemos encontrar, no nvel mais profundo de nossas coletividades e de nossas pessoas, um desejo de viver conscientemente a condio humana, justamente no momento em que teramos a possibilidade tcnica de sair dela?

As novas humanidades desejadas por Edgar Morin, no belo livro coletivo Relier les connaissances 16 (Religar os conhecimentos), esto, assim, baseadas num duplo apelo ao sistema educativo: "ensinar a condio humana e aprender o duro ofcio de viver". A melhor resposta fadiga da humanidade, atestada pelo prprio desejo de super-la, no est na organizao do direito de todo ser viver de cabea erguida, e em plena conscincia, a aventura humana? Recusar a regresso infantil, mas aprender a crescer para se dar um corao de criana, no est a o projeto de uma histria apaixonante da humanidade a que podemos aspirar?

Traduzido por Marco Aurlio Weissheimer


Patrick Viveret diretor de redao da revista Transversales Science/Culture [voltar] 1 Obscuro funcionrio do Departamento de Estado, tornado professor na Universidade George-Mason, Francis Fukuyama, foi "lanado" graas Fundao Olin Produtos qumicos. Por intermdio dos professores universitrios Allan Bloom e Samuel Huntington, ambos diretores de centros de pesquisa ligados Fundao Olin, colocados nas universidades de Chicago e de Harvard respectivamente, ela forjou inteiramente um "debate" a partir de sua conferncia sobre "O fim da histria", pronunciada em 1988. Inicialmente sustentado por dois outros beneficirios das generosidades da Fundao Olin -- a revista The National Interest (Vero de 1989) e seu diretor Irving Kristol --, este "debate" foi em seguida retomado pelos grandes meios de comunicao. Sobre este tema, ler Susan George, "Como o pensamento tornou-se nico", Le Monde Diplomatique, agosto de 1996. A traduo sa de Fukuyama: "La fin de l'histoire", publicada na revista Commentaires, n 47, outono de 1989, foi reapresentada em sua obra La Fin de l'histoire et le Dernier Homme, (Flammarion, Paris, 1994). [voltar]

2 A traduo de "Regras para o parque humano" apareceu no Le Monde des dbats (outubro de 1999). No nmero do ms seguinte, este jornal publicou vrias reaes de intelectuais alemes e ses, especialmente Henri Atlan e Bruno Latour. Ler igualmente, a propsito deste caso, Libration, de 27 de setembro e 22 de novembro, e Le Monde, de 29 de setembro de 1999. [voltar]

3 A traduo integral deste texto, "La post-humanit est pour demain", foi publicada no Le Monde des dbats (Julho-Agosto de 1999). Uma verso resumida, publicada posteriormente em The Los Angeles Times, foi traduzida para o francs com o ttulo "La fin de l'histoire dix ans aprs", no Le Monde de 17 de junho de 1999. [voltar]

4 Francis Fukuyama, "La fin de l'histoire, dix ans aprs", Le Monde, XXX 1999. [voltar]

5 Ler Frdric F. Clairmont, "Ces firmes gantes qui se jouent des Etats", Le Monde Diplomatique, dezembro de 1999. [voltar]

6 Ler Jean-Claude Guillebaud, La Refondation du monde, Seuil, Paris, 1999. [voltar]

7 A sucesso recente de catstrofes naturais no est provavelmente livre de relaes com o aquecimento climtico devido liberao de gases at a formao do efeito estufa, em relao ao qual o modelo produtivista tem responsabilidades evidentes. [voltar]

8 Ler o artigo de Jacques Robin, La socit em reseaux, consagrado trilogia de Manuel Castells, L'Ere de l'information, no Le Monde Diplomatique de janeiro de 1999. [voltar]

9 Monette Vacquin, Main basse sur les vivants, Fayard, Paris, 1999, 276 p., 130 francos. [voltar]

10 Jean Baudrillard, La Transparence du mal, Fayard, Paris, 1985. [voltar]

11 Henri Atlan, Les Etincelles de hasard, Seuil, Paris, 1999, 393 p., 149 francos. Seguindo uma lenda talmdica, as "centelhas do acaso" so gotas de esperma derramadas por Ado, separado de Eva durante cento e trinta anos. [voltar]

12 Andr Gorz, Misres du prsent. Richesse du possible, Galile, Paris, 1997. [voltar]

13 Complementando a leitura das obras de Henri Atlan e Monette Vacquin, ler o debate entre os dois autores em Transversales Science/Culture, n 61, janeiro-fevereiro de 2000. [voltar]

14 Jacques Testart, Des hommes probables, Seuil, Paris, 1999, 280 p., 120 francos. [voltar]

15 Henri Atlan, Marc Aug, Mireille Delmas-Marty, Roger-Pol Droit, Nadine Fresco, Le clonage humain, Seuil, Paris, 1999, 205 p., 120 francos. [voltar]

16 Edgar Morin (coordenador), Relier les connaissances, Seuil, Paris, 1999, 472 p., 145 francos. Este livro rene as contribuies multidisciplinares das jornadas temticas organizadas por Edgar Morin por ocasio do debate sobre a reforma dos Liceus. [voltar]

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