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O Sindicato do Garrancho Brasilia Carlos Ferreira PDF 25.1 MB 2n3h14

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Insurreio Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

O Sindicato do Garrancho
Brasilia Carlos Ferreira, Segunda Edio, Coleo Mossoroense, 2000


4 – Formas de Organizao da Classe Trabalhadora

4.1 – As Primeiras Manifestaes de Resistncia

A primeira entidade associativa de trabalhadores de Mossor foi fundada a 14 de setembro de 1919 e denominada Unio dos Artistas. Os estatutos, aprovados a 19 de outubro, a definia como uma “associao de benefcios entre a classe artstica desta cidade, para o auxlio mtuo de seus associados”. No tendo carter reivindicatrio, objetivava “socorrer os scios em caso de molstias que os prive de trabalho”, sendo “proibida” qualquer interferncia em questes polticas ou religiosas (1). Constituiu sua primeira diretoria tendo frente Francisco Negcio da Silva, alfaiate. A Unio dos Artistas, como suas congneres em outras partes do Pas, congregava basicamente artesos, ou trabalhadores que desenvolviam algum tipo de ofcio individualmente ou em conjunto, como alfaiates, grficos, sapateiros, etc.

No dia 10 de abril de 1921, foi fundada a “Liga Operria”, sociedade com fins beneficentes. Ao ato de fundao compareceram mais de 100 operrios. Sua primeira gesto contou com Joaquim Casimiro de Carvalho como Presidente e mais de 20 pessoas distribudas entre a Executiva, o Conselho Fiscal e as Suplncias. Como orador foi escolhido o idealizador da Liga, Raimundo Reginaldo da Rocha.
Na Escola Paulo de Albuquerque, mantida pela Prefeitura e destinada a filhos de trabalhadores, deram-se as primeiras discusses preparatrias para a fundao da Liga, da qual participavam alm de Raimundo Reginaldo, Sebastio Magi de Oliveira, Ccero A. de Oliveira, Lindolfo de Andrade Torres, Raimundo Calixtrato do Nascimento, Mrio Cavalcanti, Luiz Gonzaga Leite, Joo Gadelha e Joaquim Casimiro de Carvalho (2).

A Liga foi criada com um carter beneficente, tal como sua co-irm, a Unio dos Artistas. Ambas adotavam o pagamento de peclio em caso de morte de seus associados, bem como as demais obrigaes de uma entidade de auxlio e assistncia mtua. Em pouco tempo a Liga Operria ou a se diferenciar, ultraando os limites mutualistas e enveredando pelo caminho da defesa das condies de vida e salrio da classe trabalhadora local.

Na poca, a produo nas salinas concentrava, em Mossor, um contingente operrio expressivo, totalmente submetido lgica do capital, superexplorado pela jornada excessiva, pelo baixo preo do alqueire de sal e pelas pssimas condies de trabalho. A precariedade das condies de vida levou-os Liga, em busca de auxlio nas horas mais difceis. Portanto, embora estivesse aberta entrada de qualquer pessoa, como era praxe nessas sociedades a Liga aglutinou parte significativa da fora de trabalho local. Outra peculiaridade foi participao de pessoas que procuravam dar uma direo mais conseqente Liga, empurrando-a para uma atuao nitidamente sindical. Nesta tarefa, destacava-se seu fundador Raimundo Reginaldo, cujo pensamento o distinguia dos outros membros e sintonizava-se com o discurso socialista que atravessara fronteiras, trazendo os ecos da Revoluo de 1917. Na direo suas idias eram acompanhadas por outros membros da famlia Reginaldo, como atestam suas presenas em todas as diretorias que se sucederam.

Essa orientao no contava com a unanimidade de seus pares. Tanto assim que apenas 6 meses aps a fundao da Liga, foi publicada num dos jornais locais uma nota assinada pela “Unio dos Artistas” atravs de seu Presidente, Tertuliano Aires Dias, em que se l:

Comenta-se nesta cidade sobre a formao de um sindicato operrio, que esteve reunido neste domingo, restringindo as horas de trabalho e dando-se como promotoria desse movimento a “Unio dos Artista”, declaramos que nenhuma influncia temos nisso, que de autoria exclusiva de alguns operrios e at pessoas estranhas classe trabalhadora em questo”.

Curiosamente, logo abaixo, l-se uma nota da Liga Operria com praticamente o mesmo teor:

“Chegando ao nosso conhecimento que se comenta desfavoravelmente sobre a sociedade “Liga Operria” como tendo sido promotora de um movimento que domingo esteve em comcio por horas de trabalho, nos apressamos como genunos representantes da dita sociedade, a declarar que esta nada tem com aquele movimento, til ou no, todo de autoria de operrios e at pessoas estranhas a esta sociedade e s lides operrias” (3).

As associaes correm pressurosas a tranqilizar as classes dominantes locais do seu no envolvimento com a luta pela jornada de 9 horas de trabalho. As duas notas aludem a uma assemblia em que 77 operrios da construo reunidos deflagraram a luta pela regulamentao das horas de trabalho, constituindo um “Comit pr 9 horas”. Por essa poca, o regime de trabalho era de “sol a sol”. Raimundo Reginaldo, o autor do manifesto, revela uma das preocupaes que marcaria toda sua militncia em favor da classe trabalhadora, ao introduzir o seguinte:

“Torna-se oportuno lembrar aos colegas que devem freqentar as escolas noturnas, procurando combater o analfabetismo, um dos mais terrveis flagelos que nos humilha e impede a nossa marcha vitoriosa. Para isso, temos a Escola “Paulo Albuquerque”, mantida pela Intendncia Municipal, com professores competentes, sempre prontos a atender qualquer dos nossos camaradas que queira aprender” (4).

A luta pela regulamentao da jornada de trabalho desembocou numa greve, que parece ter sido a primeira deflagrada no interior do Estado. A esse respeito, h o seguinte registro:

“O que nele h realmente de original o seu sentido de pioneirismo, sem dvida, primeiro movimento grevista ocorrido no interior do Estado. Essa idia (...) dos trabalhadores de Mossor, em 1921, era, como se pode perceber, natural conseqncia da greve deflagrada pelos operrios da Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte, no ano anterior, (...) Como ponto de convergncia de seus promotores, a Escola “Paulo de Albuquerque” (...) serviu de centro de fermentao s intenes da parede. Ali se encontravam para discutir o assunto e assentar os planos, numerosos profissionais pedreiros, carpinteiros, mestre de obras, sendo figuras mais conhecidas, Chico Tefilo, Joozinho de Zuca, Joo Calixto, Joo Dias e Amrico Julio. O professor, verdadeiro artfice intelectual da idia, redigiu um manifesto (...) onde se encontravam condensadas as reivindicaes” (5).

Comeou assim a classe trabalhadora mossoroense, aos poucos, a tomar conscincia de si, de suas necessidades, de seus direitos e do caminho para atingir seus objetivos.
Raimundo Reginaldo tambm comeou, com a Liga, sua militncia ao lado da classe operria, combatendo em duas frentes: de um lado procurando incentivar os trabalhadores a participar do movimento sindical e de outro com uma intensa atividade educativa que se desdobrava em dirigir escolas para filhos de trabalhadores, publicar artigos em jornais e revistas locais, procurar contatos com outras entidades similares, como atestam suas viagens freqentes a Natal. Toda essa intensa atividade leva-o ao encontro do PCB, do qual seria um dos fundadores em Mossor, por volta de 1928.
Na eleio para segundo mandato da Liga, Raimundo foi eleito Secretrio, na gesto seguinte foi escolhido para Presidente. Prosseguiu no trabalho de organizao dos trabalhadores. Sua incontestvel liderana na Liga e o contedo poltico de seus discursos comearam a incomodar o patronato local.

Em maio de 1922, surgiu em Mossor a revista ABC, uma publicao dos alunos da Escola Normal, onde Raimundo Reginaldo, tambm aluno, ou a escrever, quase sempre, artigos sobre as contradies entre o mundo do capital e o mundo do trabalho. No n 3, por exemplo, ele escreve sobre “Reivindicaes Operrias”, “comentrio corajoso sobre o capitalismo que talvez tenha causado escndalo naquele distante 1922” (6). Em outubro do mesmo ano, fundou o jornal “O Trabalho”, voltado exclusivamente para a classe trabalhadora local. Sua influncia no interior da Liga fazia com que o jornal fosse oficiosamente considerado o porta-voz dos interesses daquela agremiao.

A atividade incansvel de Raimundo Reginaldo em prol da melhoria das condies de vida dos trabalhadores, levou-o a priorizar a formao escolar como se depreende pela leitura do n. 7 da Revista ABC, que elogia as iniciativas da Liga Operria de combate ao analfabetismo. A Liga, que acabara de criar um Conselho Escolar, mantinha duas escolas, com 80 alunos cada, sob a direo de Raimundo Reginaldo e apresentava planos de criao de uma escola noturna para adultos e outras pelos bairros da cidade (7).
A nfase na prestao de educao formal aos segmentos da classe trabalhadora pode ser questionada, quando se parte do princpio de que caberia ao Estado tal tarefa. No entanto, diante de um poder pblico alheio s necessidades prementes da populao trabalhadora, numa cidade em que o o escola estava apenas dois colgios religiosos e privados voltados aos filhos das classes abastadas, pode-se avaliar a importncia da criao dessas escolas e deduzir o papel que elas tiveram na formao poltica do operariado mossoroense.
Em 1926, noticia-se a criao da Universidade Popular de Mossor, funcionando em qualquer parte, sob o apoio das classes e associaes operrias desta cidade (8). A no existncia de qualquer referncia posterior indica que o empreendimento no logrou xito.
Na poca a Liga Operria j comeara a incomodar a classe dominante local, que via, nas tentativas de organizao do operariado, a influncia marcante da atuao de Raimundo Reginaldo. Os jornais da poca trazem numerosas referncias ao seu nome, seja como orador de atos pblicos, integrando comisses de operrios, escrevendo artigos crticos ao sistema capitalista e criando escolas operrias. No plano poltico estadual, sua ligao com Caf Filho tambm lhe atrara a ateno das elites dirigentes, cujos mtodos de atuao no eram cordiais, como nos mostra este depoimento de um sindicalista histrico:

“Caf a princpio tinha muita influncia em Mossor. A primeira vez que ele veio a Mossor, em 1926, foi hspede de Raimundo Reginaldo. A tribuna foi improvisada em cima de um caixo de querosene, depois a reao bateu em cima, ele fugiu em um carro, que era coisa muito difcil nessa poca, mas foi preciso cair fora” (9).

Tudo isso fizera Raimundo Reginaldo ser mal visto. As elites locais comearem a procurar formas de boicotar sua atuao.
Nessa poca, era Superintendente da Estrada de Ferro, Vicente Saboya Filho. A Estrada de Ferro estava em construo, empregando centenas de operrios, na expanso do trecho de Mossor a Governador Dix-sept. Era um trabalho muito pesado, feito na padiola, no carrinho de mo, no balaio. Esses operrios eram chamados de cassacos e trabalhavam sob intensa explorao. Recebiam 80% de seus salrios em gneros, que eram fornecidos pelo barraco, sob preos mais altos e qualidade inferior aos do comrcio local. Os 20% que recebiam em dinheiro, tambm pelo barraco, sofriam atrasos constantes. Uma comisso de operrios procurou o jornal “O Trabalho” e denunciou a explorao. Raimundo Reginaldo publicou a matria e acompanhou a comisso aos jornais da cidade, fazendo a denncia. Vicente Saboya desmentiu atravs do jornal e comeou a tentar influir nas eleies da Liga Operria para afastar Raimundo, sem sucesso. Por volta de 1927, Saboya mandou que os operrios da Estrada de Ferro se associassem Liga que, como sociedade beneficente, no podia se recusar a aceitar o pedido de filiao de quem a procurasse. A corrida em massa Liga teve como conseqncia discusso sobre os destinos do jornal operrio, “O Trabalho”, sendo decidido que: “tomar uma feio moderada, deixando de ser rgo patrocinado pela Liga Operria, conforme vontade de scios desta. Defender os interesses da classe operria que o apoiar dentro dos limites da ordem e do direito natural. Assim, poder se til” (10).

Foi a primeira derrota de Raimundo Reginaldo no interior da Liga. Mas, as elites locais continuariam a luta.
No carnaval deste mesmo ano a famlia Reginaldo teve a oportunidade de conhecer de perto o senso de humor da burguesia e suas conseqncias. Organizaram um bloco de carnaval, que fazia crticas satricas ao Superintendente da Estrada de Ferro.
“Munidos de picaretas e ps uns fingindo de cassacos, outros de fornecedores ou chefes de turmas. Os cassacos queriam receber o seu salrio. Os pagadores s o podiam fazer com descontos de 50%. Da o protesto dos operrios que ameaaram abandonar o trabalho. O encarregado ameaava com multa.

Saboya no achou graa e a polcia veio dissolver a troa. Houve altercao com um sargento que derivou em luta corporal, mas o bloco foi desfeito. Na manh do terceiro dia de carnaval chegaram dezenas de soldados de Areia Branca e So Sebastio, cidades vizinhas, e espalhou-se o boato de que iriam prender os irmos Reginaldo. Retiram-se todos da casa. s 10h da manh chega tropa, arromba a casa, quebra bas, potes, as, reviram tudo. Os rapazes haviam se retirado para Tibau, praia prxima e acabaram prendendo Raimundo Reginaldo, que no participara do desfile carnavalesco. O jornal assim explica os motivos de sua priso.

“O Sr. Reginaldo lidera uma corrente operria, desde tempos, agora tomando vulto com o advento da candidatura de Caf. (...) Diretor de “O Trabalho”, suas idias (das quais somos adversrios antagnicos conhecidos) estavam assanhando os conservadores (dos quais somos adeptos) e da uma certa preveno contra o homem. No gostamos de socialismo, dessas idias s compatveis com todas as Rssias”.

Em Tibau os irmos foram cercados pela polcia e presos, sem qualquer resistncia. “aram a metade da noite anterior, entre o aconchego comunista das pulgas e percevejo da mucura” (11). Essa foi a primeira priso de Raimundo Reginaldo em Mossor e a segunda derrota que Saboya lhe infligia. Tratava-se de combater no uma pessoa, mas uma linha de pensamento e ao que comeava a esboar-se na classe trabalhadora mossoroense, e que devia ser extirpada antes que fosse tarde demais.
A ocasio no se fez esperar. Aproximava-se o perodo de escolha da Diretoria da Liga para o binio 1927/1928. Raimundo Reginaldo era candidato a presidente, tendo a adeso de todo o quadro associado. Saboya montou uma estratgia capaz de modificar a tendncia eleitoral. Reuniu os cassacos da Estrada de Ferro e orientou-os a se inscreverem na Liga. Chegou o dia das eleies. “Os cassacos encheram a Liga e derrotaram Raimundo Reginaldo” (12).
Sua derrota foi saudada com grande entusiasmo pela imprensa local, apressada em afastar “influncia to nefasta do meio operrio”, como se expressou o Correio do Povo: “A nova Diretoria foi o produto do choque de duras correntes ali antagnicas. Uma, a vitoriosa, composta da maioria dos scios, de ideais liberais moderados; outra, a chamada comunista, chefiada pelo Prof. Raimundo Reginaldo, que embora viva de empregos pblicos, aderiu ao comunismo” (13).

A partir do episdio a Liga Operria ou a atuar como mutualista. A posse da nova Diretoria demonstrou a nova linha. A sesso solene foi presidida pelo Prefeito, Coronel Rodolfo Fernandes e teve a presena “das sociedades locais, das autoridades, do comrcio, da imprensa, das indstrias, das reparties pblicas” (...). O orador, Amncio Leite, falou sobre a volta da Liga aos seus ideais:“ao mutualismo, ao auxlio recproco, incentivando a todos o amor ordem, ao trabalho e economia, fatores de riqueza particular e pblica(...). A Liga deve isolar-se desde logo de suborno poltico comunista (...) no a vitria da expulso, nem da revanche, mas da ordem” (14).

Tal como era a inteno das elites dominantes, a repercusso dos acontecimentos eleitorais da Liga foi intensa. O cervo estava feito e a “Unio dos Artistas” cuidou de expressar numa declarao firme “seus princpios mutualistas de cooperao pacfica, sem idias de socialismo, poltica ou outra qualquer, somente adstrita linha de seu Estatuto” (15). Durante algum tempo a Liga continuou sendo assunto nos jornais. O pensamento conservador queria exorcizar definitivamente o perodo em que a Liga sara da esfera do permitido.

“esquecendo-se do Art. 4 de seu regimento (...) a Liga chegou ao ponto de tomar iniciativa em manifestaes polticas, cujos fins discrepavam de seu efeito, imiscua-se em questes operrias doutrinrias, pregando, nas assemblias, idias comunistas, violentas”(16).

A Liga reformulou os seus estatutos restringindo a associao aos operrios e definindo como seus objetivos apenas os de carter de mtua assistncia e amor ao trabalho. Ao publicar o estatuto reformulado, apresentou o parecer do Departamento de Segurana Pblica do Estado sobre ele, onde se l: (...) “nele no se encontra, ainda que de leve, algo desse germe revolucionrio que da Europa se tenta transplantar para o Brasil” (17).
Naturalmente que nem todos no interior da Liga eram coniventes com a mudana de atuao. Tanto assim que, a entidade entrou numa grande crise, e na prxima eleio, contou com a presena de apenas 5% dos seus associados. Mesmo assim, a Diretoria reeleita felicitava a realizao do pleito por ter se dado na ausncia de presses. Vencera a paz da apatia, da omisso, do descompromisso, da alienao. Encerra-se uma fase que poderamos considerar a pr-histria do sindicalismo mossoroense. A partir da, a Liga Operria, a Unio dos Artistas e o Centro dos Artistas que fora fundado por ltimo, se mantiveram alheios a qualquer assunto que no dissesse respeito ao pagamento de peclios e que tais e assim permanecem as que sobreviveram at nossos dias, como , o caso da Liga Operria, ainda em funcionamento.

4.2 – O Partido Comunista do Brasil

Em 1928, com a fundao do Partido Comunista em Mossor, teve incio um perodo bastante significativo para a classe trabalhadora. A reconstituio histrica desse momento extremamente difcil, dada ausncia de documentos e a quase inexistncia de militantes da poca, em condies fsicas de rememorar os fatos.
A partir de entrevistas realizadas com antigos militantes, chegamos concluso de que a histria do PCB em Mossor est indissoluvelmente ligada famlia Reginaldo. Impossvel reconstituir sua trajetria sem referncias constantes atuao desta famlia numerosa, cujos membros na sua quase totalidade dedicaram parte de suas vidas s causas da transformao social. Uns mais, como Raimundo, Jonas e Lauro Reginaldo, outros menos, como Antnio, Glicrio, Joo da Mata e Amlia Reginaldo, tiveram de enfrentar a violncia da represso, as prises, a clandestinidade. Conheceram de perto o tratamento que a sociedade reserva aos que ousam pens-la diferente e atravs da ao buscam concretizar esse sonho. Principalmente, quando essa modificao implica alterar os prprios fundamentos da sociedade.

No incio de sua militncia, dizem-se socialistas. Nessa condio, Raimundo Reginaldo empreende suas primeiras incurses no movimento sindical atravs da Liga Operria. Sua orientao frente da Liga foi responsvel por reivindicaes como a melhoria nas condies de vida e trabalho assumirem uma dimenso superior ao mutualismo e assistencialismo que caracterizam as sociedades beneficentes. Essa orientao, que faria da Liga o ncleo de origem do sindicato, irritaram as elites dominantes levando-as a conseguir sua expulso da Liga, em 1927.

Como era de se esperar sua sada extrapolou a Liga, ocupou espao em jornais e junto ao pensamento conservador, que solidarizou-se com a Liga que voltara a trilhar o caminho “da lei e da ordem”, alm de fazer referncias explicitas ao comunismo que estaria afastando a entidade de sua vocao natural.

Raimundo Reginaldo, sentindo-se perseguido, sem espao para exercer o magistrio, transferiu-se para Natal, onde recomeou a dar aulas. Na falta de informaes mais precisas, tudo leva a crer que os contatos entre os trabalhadores mossoroenses e o PCB se davam atravs de Raimundo, freqentemente se locomovendo para Natal por interesse da Liga. Outra possibilidade que a aproximao com o PCB tenha ocorrido por ocasio de uma viagem sua ao Rio de Janeiro em fins de 1926 (18). H notcia tambm de que teria se candidatado a uma vaga no legislativo, em 1928, pelo Bloco Operrio Campons – BOC (19).
As evidncias nos levam a supor que o PCB tenha se iniciado em Mossor por volta de 1928. At ento, apesar dos exageros da crtica conservadora da burguesia mossoroense, as informaes apontam para a inexistncia de ao poltica organizada do PCB em Mossor.
De acordo com as informaes e depoimentos de velhos militantes, o Partido foi fundado em Mossor por iniciativa dos irmos Reginaldo, Raimundo, Jonas e Lauro e a participao de Lus Saraiva, Lus Quaresma, Manoel Ludovico e Francisco Florncio Jcome, nico dos fundadores ainda vivo (20). Dos Reginaldo, Lauro Reginaldo teria uma carreira vertiginosa no Partido e, em 1934, j fixado no Rio de Janeiro, faria parte do Comit Central, onde era conhecido por “Bangu”.
Vale ressaltar que o PCB surgiu antes que houvesse sindicatos organizados, dado importante para o entendimento dos desdobramentos que tero as lutas sindical e poltica, em Mossor.
Todos os depoimentos sobre o assunto que h trazem uma referncia obrigatria: a iniciao dos Reginaldo no marxismo, que derivaria na criao do PCB em Mossor. Conforme esses depoimentos, por volta de 1913 o ensino em Mossor estava dividido entre dois colgios religiosos particulares, o Ginsio Diocesano e o Colgio Santa Luzia e uma escola pblica, o Colgio 30 de Setembro, que era dirigido pelo professor Elizeu Viana e sua esposa Celina Viana. Essa professora teria sido procurada, certa vez, por Luzia Reginaldo, viva pobre e me de muitos filhos. Queixou-se a senhora de que, por algumas travessuras, seus filhos haviam sido expulsos do Grupo escolar. Sem posses suficientes para mant-los em escola particular, argumentava, seus filhos permaneciam analfabetos. A professora Celina intercedeu junto ao Diretor e este reviu a punio, voltando as crianas escola.
Os diretores da escola, intelectualizados, viviam em dia com o lanamento de livros, mas tinham formao muito conservadora. Chegavam s suas mos obras de Marx e Engels. Discordando de seu contedo, procuraram desfazer-se delas. Mas a professora preferiu do-los quela famlia que no dispunha de recursos, os livros serviriam para os j alfabetizados treinarem leitura. Num depoimento concedido a Walter Wanderley, ela se confessa com remorso porque “foi atravs deles que os rapazes Reginaldo tiveram o ao socialismo e ao comunismo, a ponto de serem presos, massacrados, deportados, desterrados” (21).

Um contemporneo de Raimundo Reginaldo, na Escola Normal, acrescenta: “Ele quando chegou na escola j tinha idias materialistas. Ele lia muito. Havia um irmo dele, Jonas, era o intelectual da famlia. Adquiria muitos livros de Marx na nossa livraria. Chegavam os livros, mandvamos avisar e ele vinha buscar” (22).

Ele tambm confirma a ida de Raimundo Reginaldo para Natal, em 1927, e afirma que ele no voltou mais para Mossor. Ao ser perguntado pela existncia do PCB em 1928, declara: “No, Lamartine nunca deixou, ele no permitia” (23). Contudo, todas as evidncias vo neste sentido. Inclusive, a nota que publicada por um dos irmos, Antnio Reginaldo da Rocha, na imprensa local, em meados de janeiro de 1929, onde ele afirma que:

“lendo no jornal que se publica no Rio de Janeiro, “Classe Operria”, um artigo contra o Senhor Saboya Filho e o comrcio local, venho pela imprensa fazer pblico que no sou solidrio com tais indiscries, afirmando que ao cidado visado devedor de finesas como tambm a parentes do prprio autor do artigo” (24).

Desse perodo, portanto, os nicos sinais de existncia do Partido so os artigos que saram na “Classe Operria”, seu jornal oficial, editado no Rio de Janeiro. Ele denunciava as condies de superexplorao a que estavam submetidos os trabalhadores mossoroenses e circulava entre os operrios das salinas.
Mossor era um terreno propcio ao trabalho poltico. J na poca concentrava um expressivo contingente operrio, oscilando conforme o perodo entre 3.000 a 5.000, ocupados principalmente nas salinas, cuja atividade era toda manual. “Todo o dinheiro que girava nas salinas corria aqui para Mossor” (25). Havia a explorao da semente de oiticica, beneficiamento de peles de animais e da cera de carnaba. O comrcio e a construo civil estavam em ascenso.
Mossor era um plo aglutinador do operariado, numa proporo bastante superior s outras cidades do Estado e desenvolvia uma atividade produtiva de maior importncia para a economia regional e nacional. Alm disso, Mossor era o ponto de convergncia de toda a regio oeste, de modo que tudo que a acontecia tinha ressonncia imediata nas cidades circunvizinhas.
Ser um plo concentrador de riqueza correspondia a ter uma classe dominante particularmente avessa a qualquer indcio de organizao dos trabalhadores. Portanto, o Partido comeou a atuar a partir de poucos trabalhadores e cercado pela mais absoluta clandestinidade.
Aos poucos foram comeando a aglutinar os membros, principalmente operrios salineiros. Alis, a criao do PCB em Mossor teve desde o incio como objetivo bem definido o de organizar as diversas categorias em Sindicato. A partir dessa orientao, foram atraindo os trabalhadores mais dispostos e esclarecidos como Francisco Florncio de Almeida, Joel Paulista, Francisco Guilherme, Manoel Feitosa, Manoel Torquato de Arajo (26).
A partir da, a histria do PCB se confundir com a histria do movimento sindical, com a peculiaridade de o Partido ter surgido primeiro. Talvez esta seja uma pista a ser considerada para interpretar a direo que o movimento tomaria por ocasio dos acontecimentos de 1934/1935.
Em 1928 estava no Governo do Estado Juvenal Lamartine, que istrava o Estado como sua propriedade. No havia espao para o pensamento divergente. A seu respeito so unnimes as aluses violncia:

“Lamartine era um pouco violento, ele mandava dar a virola mesmo nos inimigos dele: os Cafestas, como eram chamados, chiavam na virola. Esse fato dele fechar sindicatos, tudo isso, naturalmente criou animosidade com todas as classes populares” (27).

Em nvel local, tambm o clima era tenso, com os confrontos do Sr. Saboya e com as denncias desencadeadas a partir da Liga Operria. Em 1929, Rafael Fernandes tomou posse como Prefeito, numa conjuntura social agitada pela seca, que redundava em fome, carestia e falta de trabalho. Para aumentar a crise so paralisados os servios da Estrada de Ferro, na poca construindo o trecho Mossor-Carabas. Sem trabalho, os operrios vagueiam famintos e nos jornais h registros freqentes de violncia policial sobre os trabalhadores, e denncias de “formidvel surra de virola” (28).
O Partido comea a se organizar. Aos poucos aglutinam operrios em torno de seus militantes, os quais am a ser uma referncia para parte da classe trabalhadora. Por essa poca, h um saque no mercado pblico. Alm da crise desencadeada pela seca e pela falta de trabalho, os operrios andavam s turras com marchantes do mercado que lhes roubava no peso, com suas balanas adulteradas. Jonas Reginaldo tambm era marchante. Organizou todo o movimento, de tal modo que os operrios se reuniram e silenciosamente entraram no mercado retirando todos os gneros. Segundo testemunhas, em 5 minutos o mercado estava limpo, os balces e as prateleiras vazias. Houve algum comentrio que falava em ao orientada de fora, ao poltica, mas no houve represso (29).
Por mais que as elites locais contestassem a atuao, a situao era de muita gravidade. Para no aumentar seu prprio desassossego, no tiveram qualquer atitude mais enrgica em relao aos saqueadores.
O Partido ampliou rapidamente sua base de apoio.

“Quando a gente saa da reunio do Partido, ficava cada um com a incumbncia de levar um scio a mais para o sindicato. Na outra reunio, sempre era semanal, ficava cada um com a incumbncia de recrutar mais um elemento para o Partido e assim por diante” (30).

As clulas eram denominadas por ordem alfabtica AM, BM, CM, etc. e chegaram a funcionar regularmente 12 clulas em Mossor. As clulas eram organizadas por local de moradia e cada uma aglutinava at 20 pessoas. O Partido chegou a contar com 300 militantes, afora os simpatizantes e pessoas prximas (31). O Comit Regional se localizava em Natal e de l chegavam os documentos, as circulares, as orientaes a serem distribudos na reunio do Comit Municipal que contava com a presena da direo Municipal e do secretrio de cada clula. Aos poucos, a Direo ou a destacar militantes para organizar o Partido nas cidades prximas como Au, Macau, Areia Branca.
Depois de iniciadas e constitudas, as clulas se ligavam diretamente a Natal, onde recebiam material e prestavam contas do trabalho. O elemento de contato da Direo Estadual em Natal, com os Comits Municipais nos interiores, era o sapateiro Z Praxedes. Depois, j na dcada de 40, Luiz Maranho funcionou como o elo de ligao. Com a represso intensa que se desencadeou depois do movimento comunista de 35, Z Praxedes ficou na clandestinidade, desde esse tempo morando na Bahia, onde morreu em 1985 (32). Luiz Maranho foi uma das vtimas da represso que voltou a se abater sobre os trabalhadores e os ativistas de esquerda depois do golpe militar de 1964.
A primeira Direo Municipal do PCB em Mossor foi constituda por Jonas Reginaldo da Rocha, Secretrio Poltico; Lauro Reginaldo da Rocha, Secretrio da Agitao e Propaganda; Francisco Jos de Oliveira e Joo Reginaldo da Rocha. A Direo era formada pelo secretariado e mais um representante de cada clula. As reunies eram semanais e nelas prestava-se contas da atuao e novas tarefas eram programadas.
A composio social do Partido era majoritariamente operria. Participavam trabalhadores de diversas categorias, sendo os operrios da salina os mais numerosos. O Partido chegou a contar ainda com a simpatia de algumas pessoas de classe mdia, principalmente componentes da Aliana Liberal. Chegavam a assistir a algumas reunies, contribuam, davam cobertura. Amncio Leite era advogado provisionado, ligado ao jornal “Correio do Povo” e chegara a ser Prefeito da cidade, no incio da dcada de 30. Jos Martins de Vasconcelos era proprietrio do jornal “O Nordeste”, apoiava a Aliana Liberal e chegou a ocupar provisoriamente a Prefeitura. Durante algum tempo, foram simpatizantes e contribuintes do Partido e freqentavam as reunies: “Estavam por dentro de todo o nosso movimento” (33).
Logo que conseguiu alguma estruturao interna, o Partido comeou a se voltar para o que seria seu grande objetivo: a organizao de sindicatos, visando a armar a classe trabalhadora com instrumentos capazes de se contraporem a superexplorao a que estavam submetidas.
At ento, a nica experincia associativa dos trabalhadores mossoroenses se dera atravs de entidades de carter mutualista, como a Unio dos Artistas, o Centro dos Artistas e a Liga Operria. A Liga extrapolou o carter beneficente ao colocar, atravs dos Reginaldo, um contedo classista em sua atuao, podendo ser considerada como a iniciao sindical do operariado mossoroense.
O grupo que fundara o PCB no tinha experincia anterior de organizao sindical e recorreu ao Partido que enviou militantes de fora do Estado, quadros experientes na formao sindical, para ajud-los na tarefa. A atuao prioritria do Partido seria no campo sindical. Entre 1931 e 1935, todos os sindicatos fundados no apenas em Mossor, mas em toda a regio Oeste, foram organizados pelo PCB, com uma peculiaridade: em todos os casos a fundao do Sindicato era precedida de organizao do ncleo do Partido.
Alm de aglutinar os trabalhadores em sindicatos, o PCB tambm foi responsvel pela fundao da “Associao das Mulheres Trabalhadoras de Mossor”, que no tinha carter sindical e visava congregar as mulheres das classes populares para dar respaldo aos militantes. Participavam operrias das fbricas de redes, empregadas domsticas, engomadeiras, e donas-de-casa. Dessa forma o Partido conseguiu atingir as mulheres, filhas e irms de grande parte do operariado mossoroense.
A associao foi fundada por Policrpia e abrigava as mulheres filiadas ao Partido, j que as mesmas no tinham o s clulas. Policrpia tinha grande capacidade de liderana, organizou as mulheres donas-de-casa e empregadas domsticas, chegando a reunir mais de cem mulheres. Atravs da Associao elas participavam do Partido. Quando um operrio ia preso, elas organizavam eatas at o presdio e pressionavam por sua libertao. Tambm avam informaes para os operrios presos, faziam atos de protestos contra a carestia. Sua diretoria era constituda por Policrpia, Odete Maria do Nascimento, companheira de Joel Paulista e Francisca Carla de Souza, companheira de Francisco Guilherme. Formavam comisses para pressionar o Prefeito a atender s suas reivindicaes e pressionavam o Delegado para soltar operrios presos.
A organizao das empregadas domsticas foi um feito realmente notvel. A sede da Associao funcionava no bairro operrio de Bom Jardim e semanalmente elas promoviam festas em benefcio de sua manuteno e para fazer finanas para o Partido. As empregadas domsticas comearam a freqentar as reunies e, aos poucos, foram participando de reunies e se inscrevendo como scias. Elas trabalhavam nas casas da burguesia, e, nas reunies, avam a ser conscientizadas do que essa burguesia representava enquanto classe, agindo contra seus pais, irmos, filhos e maridos, que eram operrios de salinas, fbricas, indstrias e comrcio e que militavam no movimento sindical. medida que elas iam entendendo, saindo do seu estado de embrutecimento, de alheamento do que se ava ao seu redor, aram a ouvir com interesse as conversas que ocorriam nas casas dos patres, acerca de medidas de represso que iriam empregar contra os sindicatos, e a reproduzi-las nas reunies da Associao. Tambm descobriram a existncia, em muitas casas, de armas escondidas. Despertaram para este fato, quando uma delas narrou que ao sentar sobre um ba ouvira do patro: “menina, saia daqui que isso so armas para matar os comunistas” (34). Ento, elas foram orientadas para descobrir em cada casa se havia armas e onde eram guardadas. Na reunio informavam o local exato e em sendo algum aposento reservado, procuravam levar a chave com todas as indicaes. Durante a noite, as armas eram retiradas pelos militantes do Partido para local seguro. Essa foi uma das fontes das armas que seriam utilizadas posteriormente, por ocasio da “guerrilha”.
A Associao conseguiu atingir um bom nvel de mobilizao e por ocasio do Movimento Aliancista, chegou a realizar um comcio em frente sede com a presena de numeroso contingente feminino. Inclusive, uma de suas organizadoras, Maria Odete do Nascimento, viria a se lanar candidata pelo Partido Constituinte de 1946 sem, no entanto, conseguir se eleger.
Por essa poca, o Partido j montara uma infra-estrutura de apoio para sua atuao. Os sindicatos estavam se estruturando. O material escrito necessrio s atividades do Partido e do sindicato era redigido por Miguel Moreira, muito talentoso, que frequentemente escrevia artigos em defesa do socialismo, e que se filiara ao Partido. Era advogado provisionado, e no exerccio da profisso estava sempre se deslocando de Lages para Mossor, circulando por toda a regio Oeste. Comeou a escrever artigos contra as elites conservadoras e ou a ser perseguido. Muitas vezes teve que se retirar de Mossor, disfarado, para fugir da polcia. Numa dessas ocasies, fugiu vestido de mecnico, um bon enterrado na cabea, e uma caixa de ferramentas. Ao descer do trem em Areia Branca, leu no jornal uma notcia sobre sua fuga, onde afirmava: “chamamos a ateno da zona Oeste, que acaba de rumar pra l o perigoso agitador Miguel Moreira que, segundo tudo indica, foi para Areia Branca despistado como mecnico” (35).
Foi forado a entrar para a clandestinidade, onde permaneceu at 1935, quando foi preso por sua participao na “guerrilha”. De incio os documentos eram impressos na “Tipografia Nordeste” de Jos Martins de Vasconcelos, um simpatizante. A polcia comeou a investigar e identificou o tipo. A partir de ento, a Tipografia ou a imprimir apenas o material legal usado pelos sindicatos. O material relativo ao Partido era enviado para impresso em Fortaleza e algumas vezes em Natal. Embora no chegasse a se filiar ao Partido, Martins de Vasconcelos simpatizava com suas propostas, tinha conhecimento das atividades, auxiliava financeiramente e chegou a ajudar por ocasio da formao da “guerrilha” com armas e munies. “Chegou a receber ameaas de empastelamento, do jornal e fechamento de sua grfica. Ele continuou a nos apoiar, inclusive nos ajudando por ocasio da guerrilha, sendo preso por esse motivo, em 1935” (36).
Nas reunies do Partido, as avaliaes davam conta de que, em Mossor, o trabalho estava em ascenso e se implantando gradativamente no interior da classe trabalhadora. Decidiu-se deslocar militantes para iniciar o trabalho nas cidades prximas. De um lado, essa deciso buscava fortalecer o Partido na regio, atravs de sua horizontalidade. De outro lado, esse trabalho solucionava a situao de muitos militantes, quele momento sendo procurados pela represso e tendo que conviver na clandestinidade.
A tarefa objetivava tambm a criao de sindicatos. Em cada cidade para onde foram destacados, os quadros do Partido se empenhavam em montar um ncleo do Partido, a partir do qual eram formados os sindicatos. O sindicato e o Partido funcionavam to superpostos que difcil, se no impossvel, identificar os limites, onde um terminava e comea o outro. Os militantes do PCB justificam, com esse a explicao:

“O Partido estava na ilegalidade, perseguidos a todo custo e o nico instrumento que a gente tinha eram os sindicatos. A palavra de ordem do Partido era para todos os comunistas atuarem nos sindicatos. E isso era feito de forma que as reivindicaes dos trabalhadores das salinas, da construo civil, ou de outra categoria, nada era feito sem que tivesse ado pelo Partido. As tarefas desciam do Partido para os trabalhadores. Eles no podiam identificar a gente no meio dos trabalhadores, conseguia-se o apoio geral e a gente ficava afogado no meio daqueles trabalhadores” (37).

Ao observar o interior do Partido vemos que as atividades eram regidas por uma dose de sectarismo muito forte, em comum com o obreirismo que se praticava em nvel de Comit Central. O militante comunista tinha de ser operrio e no era permitido que conversasse com elementos de classe dominante. Conversar com um burgus era praticamente adotar sua estrutura ideolgica, sua viso do mundo, ou pelo menos, renegar o que era colocado pelo Partido. Jonas Reginaldo, o mais velho dos Reginaldo, foi uma das vtimas do obreirismo que grassava no Partido.

“Jonas Reginaldo era um camarada muito bondoso. A luta naquele tempo era muito sectria, no era brincadeira. Naquele tempo, por exemplo, se um companheiro do Partido pegava voc pelo menos conversando com um rico, voc ia ser duramente criticado na reunio, porque voc estava tendo aproximao com a burguesia. Jonas era marchante, havia certas desconfianas de que ele era burgus, porque vivia mais ou menos bem. E Jonas, para se ver livre das crticas que faziam a ele, ou a se desfazer de tudo quanto tinha, vender a carne quase de graa ao povo, fornecer a carne quase de graa s salinas. Fazia tudo para acabar com o que tinha para se tornar completamente proletrio. E no dia em que ele j estava mesmo considerado proletrio, viu aquilo como uma vitria para ele” (38).
A prtica do Partido quela poca era marcada por um profundo ascetismo. A isso ao Partido era precedida de uma investigao profunda sobre a vida do candidato principalmente severa no que tange aos chamados “prazeres do mundo”. Como lembra Francisco Florncio: “na poca a gente era sondado, depois comeava a sondar outros. Havia critrios para entrar no Partido. A gente no queria ningum que se confessasse, beber no, tambm no queramos, jogar tambm no podia (...) tinha que ser um sujeito expurgado dessas coisas” (39).
Alm do que, havia preocupao com a segurana, de modo que todas as precaues eram tomadas para evitar a delao. Numa cidade relativamente pequena como era Mossor poca, onde a maior parte das pessoas se conhecia, apesar dos cuidados, era muito difcil manter a discrio. De incio havia apenas suspeitos, mas medida que a atuao do Partido na rea sindical comeou a aparecer, as elites locais aram a acompanhar atentamente cada movimentao dos trabalhadores. A represso sempre foi feita com muita violncia, atingindo os trabalhadores como membros do sindicato, o que era mais tangvel, enquanto que a atividade partidria, por mais que eles tivessem desconfianas, os cuidados com que era feita, dificultava uma denncia concreta. “A burguesia aqui comeou a sentir. Ningum ia dizer eu sou comunista, mas pela ao do indivduo que deixava de ser um capacho deles, de viver adulando para merecer um favor, o sujeito se destacava logo. A eles diziam: ‘ah, um comunista, t todo orgulhoso! ’... E l na salina esses indivduos se destacavam, ficando assim como um lder” (40).
Por isso a intensidade do furor repressivo. Cada trabalhador era visto como sendo duplamente perigoso: estar se organizado em sindicatos ou, pior que isso, participar, surdina, do Partido Comunista que, ao menos em termos de programa, se propunha a alterar seus privilgios ao condenar a explorao. “A burguesia sabia que tinha o Partido no meio. Ela tinha muito medo do sindicato, o sindicato tinha uma fora estupenda. Aquelas greves paravam tudo” (41).
Quando surgiram os primeiros sindicatos, a polcia ou a fazer ronda noite, “porque isso aqui na poca era lugar ermo, no tinha uma casa, ento botavam os soldados para procurar, investigar” (42). poca, os operrios das salinas se concentravam em bairros afastados da cidade e de difcil o, tanto pela distncia, como por intercalarem espaos ainda no habitados, cobertos de mato, e sem rede eltrica de iluminao. Aventurar-se a uma ronda naquelas circunstncias era uma tarefa de alto risco para o pequeno contingente policial que no dispunha de automvel e tinha de arriscar-se a enfrentar a hostilidade dos operrios, que j tinham claro serem eles os agentes da violncia dos patres. Os trabalhadores costumavam enfrentar os policiais que se aventurassem a penetrar “seu territrio”.
Para efetivar a represso, a burguesia contava com as armas utilizadas em 1927 para rechaar o bando de Lampio em sua tentativa de entrar na cidade. As armas permaneceram guardadas em suas casas, onde foram localizadas pelas empregadas domsticas, atravs da Associao de Mulheres. A informao foi ada para o Partido que tratou de confisc-las. Essas armas seriam usadas, tanto pelos grupos de “autodefesa”, quanto posteriormente por ocasio da “guerrilha”.
O Partido obteve grande penetrao na classe trabalhadora. Principalmente entre os operrios das salinas, que se sentiam estimulados a lutar para melhorar a situao de opresso e misria. O convite inicial no era feito em nome do Partido, “chamavam o trabalhador e diziam: olhe, uma reunio para lutar em nosso benefcio, porque ningum ia assim com a foice e o martelo logo na frente, porque o povo se assombrava” (43). Depois que o ncleo inicial estava formado, ava a convocar para as reunies dizendo que era para discutir a formao de um sindicato. Desde a origem, Partido e sindicato esto bastante interligados e essa ausncia de limites entre um e outro se expressa em muitos depoimentos, tal como esse: “(...) era s a mscara, por traz era justamente o Partido. O sindicato era quem fazia a ao, mas era o Partido que estava agindo. Escolhiam o elemento e diziam: voc vai organizar uma clula l no seu bairro. A o cara chamava 5 ou 4 pessoas, marcava a reunio e, no dia, vinha um cara do Comit” (44).
Na reunio, cada um dos membros da clula era estimulado a levar mais um companheiro, at que, completados 15 membros, eram orientados a destacar algum para iniciar a formao de outras clulas. “No era um apelo no, era uma palavra de ordem e quem no trouxesse um elemento, no era propriamente criticado, assim duramente, mas eles sempre diziam: voc deveria ter trazido” (45).
A ligao com a Direo Estadual era feita atravs de Jos Praxedes, o sapateiro que fora um dos fundadores do Partido em Natal. Os documentos chegavam do Comit Central para Natal e de l eram encaminhados para os Comits Municipais. Havia um motorista de praa, Homero Couto, que era simpatizante do Partido e, nas suas idas a Natal, trazia os documentos, chegando por isso a ser preso durante o movimento de 1935.
Em Mossor o Partido ficou mais classe operria. A penetrao na classe mdia foi pouco expressiva. Certamente que entre os militantes havia alguns que no eram operrios, como os irmos Reginaldo, pequenos proprietrios, comerciantes, professores e Miguel Moreira, advogado. Mas a proposta do Partido no conseguiu mobilizar os setores mais progressistas da classe mdia, ligados ao cafesmo. Alguns chegaram a contribuir financeiramente e at a participar de reunies como simpatizantes, mas jamais seriam organicamente ligados ao Partido. Apenas a “Juventude Comunista” chegaria a aglutinar alguns jovens de classe mdia, poucos dos quais posteriormente viriam a se ligar ao Partido. “O articulador era Glicrio Reginaldo. A gente se reunia com um baralho, para despistar. Ele explicava as coisas e cada um de ns assumia uma tarefa. Tinha umas 25 pessoas” (...) (46).
Essa composio social, majoritariamente proletria, certamente mais uma pista para entendermos o rumo que posteriormente o movimento tomaria, ou seja, a radicalizao do processo que empurraria o Partido para uma prtica quela poca, bastante diferenciada da orientao da Direo Nacional e da prtica corrente em outros lugares do pas.

4.3 – A Associao dos operrios das Salinas

Fundado, o Partido ou a se estruturar, aglutinando em torno de si os operrios mais conscientes e esclarecidos. O recrutamento se dava basicamente entre o contingente dos trabalhadores de salinas, os quais alm de formarem categorias numericamente mais expressivas permaneciam agrupados e disponveis durante toda a semana. Essa convivncia intensa, em que centenas de homens permaneciam juntos, tanto no desempenho das tarefas, quanto no alojamento onde repousavam os corpos cansados da dura jornada, revelou-se um terreno propcio para receber a proposta do Partido. As conversas, que de incio envolviam uns poucos operrios, vo aos poucos ampliando seu raio de ao e fazendo surgir um ncleo comunista entre os operrios das salinas.
Desde o incio, havia por parte do grupo que fundara o Partido a inteno de organizar os trabalhadores das diversas categorias em sindicatos. Primeiramente investiram na ampliao e estruturao do Partido, atraindo os operrios mais conscientes e procurando lhes proporcionar uma formao poltica que lhes capacitasse para o exerccio das tarefas. Durante o intervalo que vai de 1928 a 1930 vo surgindo os grupos operrios vinculados ao Partido, que dariam incio organizao da classe trabalhadora mossoroense em sindicatos.
Mas essa no seria uma tarefa fcil. As categorias mais expressivas eram os salineiros e a construo civil. Ocorre que a atividade da salina sazonal e aquele contingente que de agosto a dezembro mourejava na colheita do sal, era o mesmo que, nos primeiros 6 meses do ano, lutava com a terra a partir das mais diversas relaes de trabalho: pequeno proprietrio, parceiro, meeiro, etc. Eram pessoas que vinham sem qualquer experincia associativa, a maioria das vezes analfabetos, sem qualquer noo da existncia de direitos para o trabalhador. Alm disso, a represso era muito forte. Um feitor de salina era dono da vida dos seus comandados. Podia despedir, podia castigar. O horrio de trabalho comeava com a madrugada e se prolongava at o sol estar alto quando ento a luminosidade refletida nas pirmides de sal alvssimas, somada ao calor causticante obrigava a uma parada.
Esses homens rudes, que avam a semana arranchados nas salinas e apenas no sbado e domingo desciam para a periferia da cidade onde moravam, comearam a ter contato nas conversas com alguns companheiros, com um assunto diferente: a necessidade de juntar operrios de todas as salinas, de conversarem sobre a vida que levavam, a brutalidade dos feitores, e sobre os direitos que tinham. Aos poucos foram se interessando, foram se chegando, se aproximando, o zum-zum ando de boca em boca. Uma conversa que ningum ainda conhecera, ou a ocupar espao no barraco apenas coberto, onde descansavam o corpo modo, o vento entrando vontade, sem paredes que limitassem seu assobio, nem o balanado das redes amarradas nos caibros. Quando no era a chuva, que obrigava a ficarem acordados, encolhidos, no fundo da rede, para fugir do frio que lhes enrijecia os msculos.
Os trabalhadores temporrios eram menos permeveis a essas propostas de organizao. Sua vivncia durante parte do ano submetida s diversas formas de explorao que se processa no campo um componente fundamental para se entender essas dificuldades. Afinal, algumas dessas relaes, onde o trabalhador no aparece totalmente excludo dos meios de produo, em que aparentemente ele se encontra apenas de modo parcial submetido sua lgica, suscitam mecanismos ideolgicos particulares, necessrios sua reproduo. Essa cimentao ideolgica que se realiza atravs de relaes de amizade, de compadrio, se expressam pelo estmulo constante aos laos de proximidade de convivncia e de relacionamento harmnico com os proprietrios da terra, cuja imagem produzida ideologicamente a de parceiro ou aliado na produo. Sintomaticamente, ao mesmo tempo em que essa forma disfarada de dominao age no sentido da integrao, dificulta a apreenso por parte do trabalhador de necessidade da organizao, ao mascarar os contornos da relao entre o capital e o trabalho.
E para os trabalhadores que, mesmo no campo, j estavam submetidos relao de assalariamento? Para esses tambm, falar em sindicato era falar de alguma coisa muito distante de sua realidade de vida. A lei que conheciam era a lei do coronel. Escrita na ponta da virola, ensinada no salto do taco. Uma lei que no respeitava o tempo, que ava firme pelas quatro festas do ano, e por todas as geraes. Afora essa, ouviam falar de outra, atravs de histrias de meter medo, pior que assombrao. Era a histria dos bandos que viviam pelos matos, traando no bacamarte outra constituio. Eram muitos e suas aventuras, contadas com tantos detalhes, povoavam as estradas escuras, enchiam de poeira a curva l ao longe, quase no infinito, e de vozes, de gritos, de cantigas, as noites percorridas do serto. Poucos j os tinham visto, mas sabiam seus nomes, conheciam sua histria e os detalhes de cada combate, onde os “macacos” arrenegavam da profisso. Agora no entendiam porque esses homens assim to valentes, capazes de dar de frente com a Fora e no correr, porque eles, – dizia-se – maltratavam os pobres viventes, que nada tinham de seu, a no ser os olhos espantados, espreitando por trs do cerrado as sombras que podiam a qualquer hora ir mostrando suas caras: Lampio, Massilon, Jararaca, Beija-flor, Jesuno, eram tantos...
Os operrios da construo, contingente bem menor, estavam distribudos entre as pequenas obras da cidade, colocando o meio-fio nas ruas de cho batido, tendo que trazer o material ao p da obra, mesmo as pedras, recebendo uma diria miservel, e trabalhando para a istrao municipal. Para esses tambm essa histria de sindicato, de direitos, era idia muito distante, era muita fantasia.
A economia mossoroense que sempre se destacou em relao s outras cidades circunvizinhas, fez a cidade funcionar como um plo de atrao para a mo-de-obra da regio. Em conseqncia, a classe dominante local acostumou-se a dispor de uma fora de trabalho abundante e barata, competindo entre si por um “servio” que lhe garantisse a sobrevivncia, submetendo-se aos baixos salrios e s pssimas condies de trabalho. Sem qualquer experincia organizativa, tiveram de render-se aos mais violentos nveis de explorao.
O incio do processo de organizao dos trabalhadores, portanto, levaria as elites locais a sentirem-se ameaadas em seus privilgios e a colocarem-se desde logo fortemente contrrias a qualquer iniciativa nesse sentido. Lanavam-se no apenas em nvel de discurso e de inteno mas, como para a guerra, onde todas as armas deveriam ser usadas e cujo limite seria a destruio completa do inimigo.
Como a grande tarefa do Partido era a organizao dos operrios das salinas, contaram, para isso, com a adeso do grupo de operrios que havia sido cooptado pelo PCB e que era composto por elementos que j se destacavam por exercerem alguma liderana na categoria. Sob orientao direta dos quadros dirigentes do Partido como os Reginaldo, Luiz Saraiva, e Miguel Moreira, foi criada em 1931 a “Associao dos Trabalhadores na Extrao do Sal”. Entre os fundadores figuram os nomes de Manoel Torquato de Arajo, Cndido Benedito e Joo Crisstomo da Silva (47).
Criada a Associao, foi constituda a Diretoria Provisria com Manoel Torquato na Presidncia. Tem incio uma histria que no apenas marcaria profundamente o conjunto da classe trabalhadora mossoroense, mas que tambm transformaria em definitivo a trajetria individual de seus integrantes, ou pelo menos, dos que se colocaram frente das inmeras lutas que se sucederiam, como foi o caso desse primeiro presidente. Uma reconstruo rpida de sua histria anterior nos mostrar a dimenso exata dessas alteraes.
Manoel Torquato era um homem calmo, temente a Deus, sua casa sempre pronta a receber os irmos para os cultos na boca da noite, quando as pessoas se espremiam pela sala e se acotovelavam pela janela, do lado de fora, j na rua, para ouvir a pregao. Era homem de poucas posses. Seus pais, pequenos proprietrios, continuaram agarrados a terra, buscando a sobrevivncia, junto com seus irmos, do mesmo jeito que fizeram seus avs e para trs, todos os outros a perder de vista. Manoel mudou de profisso. Foi ser tropeiro, tanger burros, que levavam os caus cheios de miudezas que ele vendia pelos lugarejos por onde ava. Da tirava o seu sustento e o de sua famlia. Assim vivia. Em Mossor, tinha sua residncia, onde descansava as pernas e descarregava a poeira das estradas e tinha tambm o maior comrcio da regio, onde abastecia os caus para novas caminhadas.
Corria o ano de 1927. De todo lado vinham notcias de bandos de cangaceiros percorrendo a regio fronteirinha entre o Cear, a Paraba e o Rio Grande do Norte. At se dizia que eles faziam mesmo era atacar as cidades perto do Cear, sempre voltando para l, onde tinham guarida. Diziam at que o prprio Governador era coiteiro desses homens. O que se sabe que, em 1924, quando a Coluna Prestes se avizinhava em sua marcha pelo serto, o prprio Pe. Ccero do Juazeiro, com ordens do Governo, chamou Lampio e lhe deu a patente de Capito para combater a Coluna.
Manoel Torquato est em Mossor. Vspera de viagem, vai ao comrcio completar seus estoques de miudezas. Havia notcias de que o bando de Massilon tinha atacado a cidade de Apodi e que Lampio se encontrava nas proximidades de Mossor. Manoel Torquato saiu na madrugada em direo a So Sebastio, atualmente Governador Dix-Sept Rosado. Na primeira noite encontrou o bando de Lampio e foi feito refm. Conseguiu fugir, deixando os animais e todo o carrego, todo o seu capital. Chegando em Mossor, procurou emprego na salina.
Comeou a trabalhar. Trabalho duro, todo manual: furar o sal, rechegar, carregar em balaios suspensos por cordas amarradas em pau apoiado no ombro. Dois balaios, dois homens, em o ritmado, o pau ferindo o ombro. De incio o sangue escorre, a dor muito grande, descem as lgrimas que as mos ocupadas segurando as cordas, para auxiliar na cadncia dos os, no podem enxugar. Depois a ferida vai endurecendo, vira calo, uma protuberncia no ombro, capaz de agentar o peso dos balaios sem sangrar. Mas, nas batidas noturnas pelos bairros operrios a que a polcia a a mo em busca de sua identificao.
Aos poucos Manoel Torquato vai se acostumando. Homem inteligente e conservador comea a se interessar pelos assuntos que circulam entre alguns dos grupos que se formam depois da jornada diria. Principalmente, porque nessas conversas o assunto principal so eles mesmos. Mas, uma conversa diferente. No se trata da vida de cada um, do trabalho de cada um, dos problemas de cada um, e sim, discute-se a situao deles todos, em conjunto, trabalhando juntos, sob as mesmas condies, ganhando o mesmo salrio e fazendo as mesmas tarefas. Alm disso, chama a sua ateno o fato de que alguns trabalhadores conversam sobre aquelas coisas, naturalmente, como se estivessem falando da colheita, da limpa ou da queima.
Manoel Torquato e outros trabalhadores de salina ligam-se ao PCB e no final de semana participam de reunies nas casas de um ou outro companheiro, no bairro operrio de Bom Jardim. A luz acesa e todos em volta da mesa, o baralho mo, que aquilo era coisa sria e todo cuidado era pouco. Na poca, era Governador, Juvenal Lamartine, e a virola era a sua resposta a qualquer ato ou pensamento divergente.
Quando o Partido avalia que o grupo j demonstra conhecimento suficiente sobre a proposta e os objetivos, autoriza que iniciem o trabalho de organizao sindical. Comeam pela formao do sindicato dos operrios de salinas. A partir de sua organizao procura-se, num segundo momento, levar a proposta partidria e sindical – sempre nessa ordem – s demais categorias locais. A depender do sucesso alcanado na empreitada, seu raio de ao ser ampliado para outras cidades da regio.
Nesta tarefa, os operrios contavam com o apoio e orientao da direo local do PCB, o qual por sua vez, sem nenhuma experincia concreta no trabalho sindical, recebeu auxlio das instncias de direo nacional do Partido, atravs da presena de algum experiente para ajud-lo. Da a vinda de Z Mariano para Mossor, logo no incio de 1932. A presena sucessiva em Mossor de outros militantes do Partido, destacados para atuarem tambm em outras reas, uma pista para pensar a importncia com que era visto o trabalho na regio, em termos do potencial de organizao e de lutas a ser estimulado.
Tanto assim que, se compararmos a atuao do Partido em Natal, onde se supe que tenha sido formado primeiro (48), vamos observar uma presena bem mais tmida, bem mais individualizada e restrita a alguns militantes sem, no entanto, conseguirem se fazer presente de maneira marcante no cenrio poltico, tendo mesmo na rea sindical uma atuao proporcionalmente muito menos expressiva. No se pode desprezar o fato j citado de Natal no contar com uma atividade produtiva com o peso social e econmico das salinas, funcionando apenas como plo istrativo do Estado. Mas, mesmo nas atividades que aglutinavam numeroso contingente, como, por exemplo, na estiva, o trabalho do Partido no conseguiu atingir a dimenso da regio Oeste, seja em termos quantitativos, seja na qualidade da atuao a desenvolvida.
A formao do sindicato dos operrios das salinas, posteriormente “Sindicato do Garrancho”, marcaria o incio da organizao no apenas dessa categoria, mas de parte de expressiva da classe trabalhadora mossoroense e tentaria se expandir em toda a regio Oeste. Portanto, sua histria sindical est necessariamente ligada ao “Sindicato do Garrancho”, tendo como matriz poltica o Partido Comunista do Brasil.
Ao ser fundada, a Associao dos Operrios do Sal, no contava com mais do que um pequeno ncleo de trabalhadores. A primeira providncia da Diretoria foi alugar uma sede para instalar fisicamente a Associao. Concluda a tarefa, iniciou o trabalho de organizao da categoria. Surge assim a primeira tentativa concreta de organizao sindical dos trabalhadores daquela regio. A experincia mais prxima que eles haviam tido, fora a Liga Operria que entre 1921 e 1927 que sara dos limites impostos pelo seu carter beneficente e buscara organizar a classe trabalhadora, numa tentativa duramente reprimida pelas elites proprietrias locais. Mas, se naquela poca o trabalho era realizado sutilmente, no se colocava sequer o carter sindical e foi destrudo, o que aconteceria agora quando a classe operria ousava se por para fora, na tentativa de se organizar, de se assumir?
Aos poucos os operrios vo aderindo. “Todo mundo queria ir para a reunio. No dia da reunio era mulher, era menino, era tudo. Tal qual um comcio”. As reunies so no domingo. o primeiro Sindicato que se forma em toda a regio e os trabalhadores das mais diversas categorias enchem a sala para ouvir os salineiros e os intelectuais do Partido, como Lauro Reginaldo e Luisinho Saraiva, fazendo o trabalho de propaganda do sindicato. As elites proprietrias das salinas comearam a se sentir ameaadas.

“O Governo da poca era muito reacionrio, estava nas mos dos Fernandes, uma famlia que controlava em Mossor salinas, indstrias e comrcio. Era uma oligarquia danada, uma prepotncia danada. A a gente foi obrigada a fechar o sindicato. Ningum pde mais se reunir. Se fosse, a polcia prendia” (49).

A Aliana Liberal est no poder e o Decreto n 19.770, da sindicalizao, j uma realidade, mas, para as elites locais, no existem limites ao seu poder, principalmente quando se trata de preservar as relaes de trabalho que lhes garantam lucros exorbitantes.
Surge o Sindicato do Garrancho.

“A ns tratamos de nos reunir no mato. Tinha rvores aqui perto, na poca, daqui a uma lgua mais ou menos, rvores grandes em lugar ermo. A gente dizia: tal dia debaixo de rvore tal, por exemplo, uma quixabeira, que uma rvore frondosa que ns temos aqui e que nunca falta sombra nela. E a gente ia para l e traava os planos. No era uma assemblia, mas ali estava a fina flor do operariado mais consciente. Ali se traava o plano para por em execuo no dia seguinte. Discutia-se todos os problemas da classe e saia-se percorrendo as salinas. A gente sempre procurava trazer um elemento de cada salina porque ele era porta-voz no s do Sindicato, mas tambm do Partido”.

A organizao do Sindicato feita entrelaada com a constituio do PCB, sendo que, na maioria das vezes, no perodo inicial, o trabalhador recrutado pelo Partido e s depois que adere ao Sindicato. Como nos mostra este depoimento de Francisco Guilherme: “entrei para o Sindicato em 1932, por intermdio do Partido. Porque eu pouco me interessava. Quando eu entrei para o Partido, em 1931, a em reunio disseram: todos os comunistas tm que fazer parte do Sindicato, porque a fora do Sindicato o Partido. Ento, obedecendo palavra de ordem do Partido, entrei para o Sindicato, no fiz nenhuma objeo” (50).
A fundao do Sindicato dos Trabalhadores nas salinas, bem como dos outros sindicatos que foram surgindo em seguida, era parte integrante da rejeio que o PCB fazia na poca ao controle dos Sindicatos pelo Estado. Com efeito, tratava-se uma batalha violenta em nvel nacional contra a sujeio do Sindicato ao Estado, via o Ministrio do Trabalho recm-criado. O PCB defendia total independncia e os Sindicatos, sob sua orientao, avam ao largo das exigncias legais de reconhecimento. Os Sindicatos que procuravam se adequar ao Ministrio do Trabalho, eram chamados de Sindicatos Amarelos, numa antecipao do que hoje chamamos de pelegos, e em troca, eram denominados Sindicatos Vermelhos. Era uma luta muito desigual porque o Governo Vargas matreiramente vinculou o o aos Direitos Trabalhistas aos Sindicatos reconhecidos por lei. A Ttica do PCB foi criar mais Sindicatos sob sua orientao, na inteno de ter peso suficiente no movimento sindical, para se contrapor legislao em vigor.
No caso do Sindicato dos Trabalhadores do Sal, a proposta inicial era mant-lo fora da gesto do Ministrio do Trabalho. Mas, a reao da parte dos trabalhadores foi muito grande. Eles temiam que sem respaldo legal, as classes proprietrias teriam todas as facilidades para reprimi-los e para ignorar os seus pleitos. “E ento, ns resolvemos criar o Sindicato mais ou menos de acordo com o Ministrio do Trabalho” (51). Os trabalhadores, pela pouca experincia concreta na luta, no supunham at onde a classe dominante era capaz de ir, os recursos de que ela lana mo para manter a explorao.

“Esse Decreto 19.770, da sindicalizao s tinha valor por l, no p do Palcio, quando chega aqui j perde o valor, perde a ao porque ningum cumpre. Ns tentamos por todos os meios legais fundar o Sindicato, mas os patres no permitiram. Foi por isto que fundamos o Sindicato clandestino. A gente tinha que sair para o mato na calada da noite, ou mesmo ao meio-dia, portando espingarda de caa para despistar os agentes dos proprietrios das salinas”.

Os patres reprimiam porque era ilegal e ao mesmo tempo impediam sua legalizao. Tanto assim que ao mesmo tempo em que se reuniam clandestinamente, tentavam obter o registro da associao como estava previsto na legislao. “At que conseguimos o registro de Associao e a viemos para a legalidade. Mas essa legalidade foi conseguida fora, no foi dada pelos patres”. A partir dessa “vitria” os trabalhadores aram a atuar legalmente, a associao representando a categoria. Mas os patres no reconheceram os registros da associao, o que implicava no itir que a associao representasse a categoria, que negociasse em nome dela, sob a alegao de que no era sindicato. Ao mesmo tempo, procuravam impedir que a carta sindical fosse conseguida, atravs de interferncias diretas do prprio Ministrio do Trabalho. Eram aes mais ou menos sigilosas, at 1934, quando Rafael Fernandes foi eleito Governador do Estado, pelo Partido Popular, que congregava as elites conservadoras do Estado. Rafael Fernandes era proprietrio de salina em Mossor. “Tratou a perseguir o Sindicato a ferro e fogo, a ponto de garantir que enquanto ele fosse Governador o Sindicato no seria reconhecido”. (52).
De fato, continuaram agindo enquanto sindicato, representando a categoria, fazendo greves, defendendo reivindicaes, mas sempre sob a mira da polcia. Atravessaram momentos difceis, como a represso de 1935, que praticamente destruiu o Sindicato, pelas prises e deportaes em massa sindicalista, recomearam luta, mas somente conseguiram o reconhecimento de entidade como Sindicato em 1946. Durante 16 anos, enfrentaram a arrogncia dos patres e a convivncia do Estado.
Portanto, o eixo de luta foi desviado para o plano institucional-legal. Para o PCB, no se tratava mais de combater o atrelamento do Sindicato ao Estado, e sim de lutar para ser reconhecido por esse Estado e desta maneira ser aceito pelos patres.
Os proprietrios de salina, acostumados a disporem de um exrcito industrial abundante e alheio aos seus direitos, ao se defrontarem com a perspectiva de serem modificadas as regras do jogo, reagiram com violncia brutal. Para eles estava claro que adviriam, com toda certeza, alteraes nos nveis de explorao fundados na mais valia absoluta, retida custa de longas jornadas, baixos salrios e – sobretudo – pssimas condies de trabalho.

4.3.1 – A Colheita do Sal

A trajetria do sal, desde os cristalizadores at o embarque nos navios, compreende tarefas bem definidas. Na primeira metade da dcada de 30, no havia nenhuma salina mecanizada. O conjunto das tarefas era feito manualmente, pelos mtodos mais rudimentares. A burguesia, dispondo de mo-de-obra abundante e barata, no sentia nenhuma necessidade de modificar os esquemas de trabalho, porque isso envolvia alterar as condies de trabalho e, portanto, implicava em custos.
Uma descrio rpida do trabalho na salina deve comear pelos cristalizadores. Tambm chamados baldes eles so o espao cercado em que a gua se concentra, cristaliza, vira sal. No perodo de atividade da salina os baldes se apresentam solidificados. A primeira atividade a do colhedor do sal. O operrio corta aquela laje de sal que est petrificada e comea a quebrar e fazer um monte. Na poca o transporte era feito em balaio e o sal era colhido 2 a 2 para facilitar a proximidade do parceiro para carregar os balaios.
A segunda tarefa transportar o sal para os aterros. feita pela mesma dupla que colheu o sal. Os dois tomam os balaios, suspensos por cordas amarradas em um pau de galo e saem ritimadamente, num mesmo como at o aterro, onde despejam o sal. O aterro o lugar onde o sal vai ficar descansando, cumprindo o perodo de cura. forrado com sal velho, sal imprestvel. Jogado o sal no aterro entra em cena o rechegador.
Cabe a ele organizar o sal, empilh-lo at formar uma pirmide, organizar de tal maneira que d condies de ar uma trena para medir quantos alqueires foram colocados e assim poder calcular a remunerao dos colhedores que feita por produo. O trabalho do rechegador considerado mais leve e melhor remunerado que o dos colhedores. Outra tarefa a do conferente, que fica com lpis e papel na mo anotando a sada dos balaios, ou seja, a produo de cada dupla. Os colhedores vo ando com o balaio carregado e vo dizendo, eu o 1, eu o 4, eu o 10, etc. O trabalho de controle, bem mais leve e melhor remunerado do que em todas as outras tarefas. “Esse o peixinho do patro, de alta confiana” (53).
O diarista o encarregado da limpeza e conservao dos baldes ou cristalizadores dos aterros. A limpeza dos cristalizadores muito importante. O sal solidificado em um balde cheio de sujeira exige uma tarefa suplementar ao ser colhido: lavar o sal. Isso faz desperdiar o tempo do colhedor, que trabalha por produo. Os operrios sempre se revoltaram pela no conservao dos baldes, inclusive h indcios de que antes mesmo da organizao do Partido e do Sindicato, tenha havido pequenas greves, em salinas isoladas, motivadas unicamente por esta questo.
Houve casos, tambm, em que os trabalhadores ao se depararem com baldes sujos e na impossibilidade de reclamarem, por no terem organizao, temendo ficarem na lista negra, preferiam abandonar silenciosamente a salina, sem sequer receber pelo trabalho j realizado. Saam fugidos e preferiam perder o salrio j trabalhado, a enfrentar o feitor. Ficar naquela salina tendo que lavar todo o sal colhido era desperdiar energia e tempo. Preferiam sair. Mas sair sem qualquer alterao com o feitor que pudesse trazer dificuldades para arranjar colocao noutra salina. Isso demonstra a dificuldade que os trabalhadores enfrentavam e a intolerncia dos patres e dos feitores, seus testas-de-ferro.
Quanto aos aterros, cabe ao diarista limpar o local onde vai ser depositado o sal, e depois espalhar cuidadosamente sal velho, de tal modo que ele forme uma crosta, uma placa, para proteger o sal que ficar empilhado durante o tempo de cura. So chamados Diaristas de Conservao e ganhavam menos do que em qualquer das outras tarefas.
O tempo de cura do sal varia de 6 a 8 meses. Enquanto isso vai endurecendo. Ao final, aquela pirmide est transformada numa imensa laje de sal. Ento a prxima tarefa quebrar outra vez o sal, rechegar, quebrar mais, rechegar, at que o monte se transforme em pedaos pequenos. Essa uma das tarefas mais perigosas, onde o trabalhador corre enormes riscos de acidente.

“Fica uma pedra terrvel, que o sujeito tem que cavar e vai rechegando, para depois cavar outra barreira (...) por conta disso muitos companheiros morreram debaixo das barreiras, porque eles cavam por baixo e deixam assim como se fosse uma loca. E depois aquele sal que estava em cima despencava. Eu conheo vrios que morreram desse jeito” (54).

A ltima tarefa o transporte do sal para as barcaas que o levar para os navios. Quebrar o sal e embarc-lo, embora fossem 2 tarefas distintas, eram realizados pela mesma pessoa. Era considerada uma tarefa mais especializada e, portanto, melhor remunerada. No era fcil cortar o sal, e o embarque era realizado por cima de pranchas de madeira muito escorregadias. A prancha era uma espcie de arela de madeira, estreita, que ficava entre o sal e a barcaa. A maioria das vezes o embarque se dava durante a noite. No havia energia eltrica e a iluminao era feita por uma espcie de farol grande, uma lamparina com capacidade para 1 litro de querosene, que se chamava piraca. A ventania muito forte s vezes apagava a chama, mas o percurso tinha que ser feito, e era feito no escuro, rapidamente, sobre uma prancha que dependendo da inclinao mdia de 3 a 4 metros de altura. “E uma tronqueira danada esperando l embaixo. A gente ia s no giro” (55). Se a pessoa perdia o equilbrio, despencava l embaixo.
Na ausncia de qualquer socorro por parte da empresa, cabia aos trabalhadores resolverem as emergncias. “O transporte era uma rede. Amarravam a rede colocando um pau bem grande, botavam o sujeito na rede e o pessoal vinha deixar aqui em Mossor” (56). Faziam o trajeto a p. Ida e volta. E ainda perdiam o dia de trabalho. Mesmo assim o pessoal vinha. A solidariedade entre os trabalhadores de salina sempre ressaltada em todos os depoimentos do perodo. “Na barra de Mossor, Areia Branca, Grossos e Macau, trabalhavam uns 5.000 trabalhadores e nunca registrou um assassinato” (57). Essa afirmativa vinha sempre acompanhada com referncias a outras categorias, principalmente aos ferrovirios, bem inferiores numericamente, cerca de 2.000, e que de “vez em quando vinham 3 ou 4 esfaqueados para Mossor” (58).
Essa solidariedade, essa harmonia entre os operrios do sal, to enfatizada, talvez tenha a ver com dois aspectos. Em primeiro lugar, eles ficavam retidos na salina, convivendo no trabalho, e no galpo durante toda a semana e s vezes at durante 15 dias corridos. Ao final de cada semana se dirigiam a Mossor principalmente os que l moravam. Outros, oriundos das cidades circunvizinhas, onde inclusive ficara a famlia, desciam da salina apenas de 15 em 15 dias. A convivncia diria e contnua sob uma disciplina de trabalho violenta, debaixo de condies de trabalho duras, e – principalmente antes da existncia do sindicato – sem uma organizao, nestas circunstncias como se se voltassem entre si, uma comunidade unida pela fraternidade e marcada pelo fato de estarem submetidos s mesmas condies de explorao.
Sua importncia, econmica era incontestvel, seus ombros carregavam a parte mais significativa das riquezas geradas na regio. Na poca da safra havia sempre cerca de 10 navios cargueiros ancorados espera do carregamento de sal que seria levado para abastecer o mercado do sul do Pas. Nesse perodo, as salinas absorviam toda a mo-de-obra assalarivel da regio, sob um regime de trabalho brutal, capaz de transformar homens jovens e fortes em indivduos precocemente envelhecidos, s vezes cegos, a pele de tal forma castigada pelo contato com o sal que, em muitos casos, os ps cheios de rachaduras deformavam os dedos, separando-os a ponto de no mais poderem calar sapatos.
Terminada a vida til, quando esvaziados de toda a energia e j no dispunham de foras para furar o sal, para faz-lo em pedaos ou transport-los nos ombros, restava-lhes poucas alternativas de sobrevivncia. Combalidos para exercer atividades que demandassem esforo fsico, o futuro muitas vezes lhes reservava viver s custas de familiares ou at mesmo a mendicncia sem disfarces. Com o agravante de, no caso de acidentes de trabalho – que no eram poucos – como no havia nenhum respaldo por parte das empresas, que lhes assegurasse qualquer benefcio, esse futuro ser-lhes antecipado.

4.3.2 – As Condies de Trabalho

Como toda atividade sazonal, o trabalho na salina era uma fonte de insegurana e angstia para o trabalhador. Ao final de cada jornada, eles sentiam o peso da ameaa do desemprego. Vivam sob o risco de no poder garantir a sua sobrevivncia e de sua famlia. Da a associao natural com a atividade rural o que lhes favorecia a possibilidade de se manterem ocupados durante grande parte do ano. Portanto, os operrios das salinas eram constitudos por dois grupos. Havia os que permaneciam ligados exclusivamente s salinas, eram os profissionais. Outros, de origem rural, trabalhavam os primeiros seis meses do ano na agricultura e durante a entressafra, ingressavam nas salinas. Normalmente provinham da Vrzea do Au e cidades prximas.
As condies de trabalho eram muito duras. A jornada de trabalho era de 10 a 12 horas dirias. Comeava pouco depois da meia-noite, para evitar a excessiva claridade do sol, que refletida na brancura do sal, formava uma luminosidade incandescente, invel aos olhos. No havia iluminao, trabalhavam no escuro, orientando-se pelo brilho dos montes de sal. Permaneciam nas salinas durante toda a semana, descendo para a cidade aos sbados. Ficavam alojados em galpes cobertos de telhas, sem paredes laterais, expostos ao vento e chuva.
O trabalho era realizado por tarefa e a produo era medida em alqueires. O alqueire oficial composto por 31 cuias, mas na salina era estendido para 36 cuias. Essa diferena era para compensar o possvel desgaste do sal sob o efeito do vento e da chuva. Dessa maneira, era descontado antecipadamente do trabalhador o possvel prejuzo, atravs do trabalho no pago.
A claridade era a grande inimiga do operrio da salina. Eles procuravam burlar o sol iniciando as jornadas pelas 2 horas da madrugada e indo at o meio-dia. Muitos sofriam com problemas de viso, ocasionados pelo excesso de luminosidade, resultante da incidncia dos raios solares sobre os montes alvos de sal. A intensa luminosidade irritava os olhos que ficavam vermelhos, lacrimejando, e dependendo do grau de irritao, eram obrigados a se retirar do trabalho, por no terem condies de continuar se expondo ao sol. “Parecia que o sujeito estava com conjuntivite” (59). No havia assistncia mdica, ou remdios. O doente que se considerasse impossibilitado para o servio que se retirasse. Como eles ganhavam por produo, ausentar-se significava no dispor de recursos para fazer frente s despesas, suas e da famlia.
Embora nociva aos operrios, a claridade no era o nico obstculo a ser enfrentado. Outro grande temor era de que apanhassem “maxixe”. Assim eles denominavam um tumor grande que tinha um “carnego” e que deixava marcas, uns buracos, onde se formavam. Esses tumores decorriam do contato direto da pele com as impurezas do sal. Comeava com uma pequena erupo no “p” do cabelo e evolua para um tumor grande e extremamente doloroso. O “maxixe” nascia com mais freqncia na perna, do joelho para baixo, que permanecia em contato direto com a gua. No entanto, nada impedia que nascesse em outras partes do corpo, sendo bastante para isso o contato com a gua salgada. Tanto que havia muitos casos de nascerem “maxixes” no ombro, porque no ato de transportar o sal, que era feito 2 a 2, atravs de balaios suspensos por cordas presas a um pau sustentado no ombro, se o operrio no tivesse cuidado e asse as mos sujas de sal no ombro, estava correndo o risco de que nascessem tumores em seus ombros.
No havia tratamentos para os tumores. O trabalhador tinha de ar a dor e esperar que “amadurecesse”. Ento eram espremidos para expulsar o “carnego” e todo o pus que estava retido. Estourar o “maxixe verde”, diziam os trabalhadores, era risco certo de infeco. Neste caso, sobrevinha febre alta e dores inveis, impossibilitando-o para continuar no trabalho. Era freqente que os trabalhadores tivessem at 3 tumores ao mesmo tempo, o que significava trabalhar sob alta temperatura e muitas dores.
Ao ser perguntado sobre as condies de sade na salina, o operrio Chico Guilherme resumiu: “Tinha estragar a sola dos ps, as rachaduras nos ps, tinha os maxixes, tinha a claridade. O excesso de claridade acabava com a vida da gente. Ao meio dia o sal mais alvo do que neve, a gente olhando para o sal faz um reflexo como que seja um vidro, parece mentira. O resto era queda, acidente, quebrar perna...” (60).
Apesar do numeroso contingente operrio e dos riscos de acidentes, no havia sequer material de primeiros socorros. Quando o operrio ficava impossibilitado para o trabalho por doena ou acidente – na ausncia de qualquer assistncia ou reconhecimento de acidente de trabalho – a soluo era “ir para casa morrer de fome” (61). Nesses momentos se evidenciava a solidariedade operria. Os trabalhadores faziam circular uma lista de contribuies que eles chamavam de “rateio” e atravs dela reuniam uma pequena ajuda que era entregue ao trabalhador doente at que ele se recuperasse e “pudesse voltar pra salina, para ganhar”.
As salinas distavam at 48km de Mossor. Um dos itens permanentes da pauta de reivindicaes dos operrios era o transporte por conta da empresa. No conseguiam, o que os obrigava a fazer o percurso a p, tanto na ida, como na volta. O grupo de trabalhadores se juntava e saa caminhando. Chegavam a Mossor ao raiar do dia. “Saa aquela turma, 10, 12, com um saco nas costas, conversando, contando histrias... um terreno plano, plancie... parecia gado quando vem do serto” (62). Somente na dcada de 40 eles conseguiriam o atendimento dessa reivindicao: transporte de ida e volta por conta da empresa. Algumas salinas ficavam mais prximas, 3 lguas ou 18 km, as mais distantes ficavam a 8 lguas ou 48 km.
Outro problema para os trabalhadores das salinas era a gua. Apesar da reivindicao antiga para que a empresa se encarregasse do fornecimento de gua, as empresas no concordavam. Ento os operrios se cotizavam para pagar o abastecimento de gua que vinha de uma distncia de 4 lguas, ou seja, 24 km. Cada trabalhador pagava 1.500 ris pela gua, que ficava em tonis, sem cobertura, exposta ao sol forte da salina. Alm disso, era compartilhada com os animais, que serviam de conduo aos feitores.

“No tinha aparelho sanitrio, o sujeito defecava no leito da mar, depois de ficar muito tempo ao sol, virava aquele torro. O animal habituou-se a comer aquilo e depois vinha beber gua no tambor. Lavava a boca e deixava cair aquela baba dentro do tonel. Ns desorganizados ramos impotentes pra eles, a ponto de algum trabalhador reclamar e teve patro que disse: eu tenho nojo que o meu cavalo, que o meu burro, beba com vocs” (63).

O feitor ficava tomando conta da gua. Formava-se uma fila, porque era proibido beber longe do tonel. Tinha que ser ali, s vistas do feitor, para que o trabalhador no usasse um pouco de gua doce para lavar os ps ou o rosto. Lavar-se com gua doce era a nica forma de se livrar das impurezas da gua salgada que infectavam a pele e traziam os “maxixes”. Mesmo a gua sendo paga pelos prprios trabalhadores, o consumo era racionado e controlado.

“A gente trabalhava suando, a camisa molhada de suor, aonde aquele suor corria, caa o pingo de sal e ficava aquela lista branca. Era arriscado at sair maxixe no rosto. E se a gente lavasse o rosto com gua doce, tirava o risco. Mas eles no deixavam lavar. Diziam que era desperdcio” (64).

A proibio era to severa que se algum fosse visto utilizando a gua de outra maneira que no fosse bebendo, era multado em 5.000 ris. E a gua era paga pelo trabalhador! Mas, por ter ado no rosto, ele era obrigado a pagar essa multa que na poca correspondia aos valores necessrios para pagar 2 kg de carne. No entanto, o nico recurso preventivo contra os tumores era a higiene e no deixar a pele por muito tempo em contato com o sal. Era um problema imenso, porque o tipo de trabalho, muito pesado e exposto, exigia banhos e no dispondo de gua doce, o operrio tomava banho de mar, ficava salgado. “A gua s vezes estava com 2, 3 graus. E a gente no tinha o direito de tirar o sal do corpo. Por isso dava maxixe” (65).
Alm dos maxixes, do transporte e da gua, havia os acidentes. As quedas eram freqentes. A operao de transportar o sal era feita em cima de pranchas de madeiras, que molhadas ficavam escorregadias e noite, era uma cilada. “Uma vez eu ca numa barcaa, tinha um salzinho dentro, eu fiquei todo ralado, mas comecei a trabalhar novamente” (66). Podia ter se dado mal, porque o sal velho desgastado pela chuva fica muito duro, “corta mais do que ponta de faca. Corta como ostra e at parecido com a ostra” (67).
A tarefa de descascar o sal tambm envolvia riscos de acidentes. Depois de colhido e transportado nos balaios, o sal era organizado em montes no formato de uma pirmide, permanecendo ali durante 6 meses. Era o perodo da “cura”. O sal ficava exposto ao sol e chuva desprendendo as impurezas. Ao p do monte escorria um caldo grosso, a salmoura. O perodo de cura influa diretamente na qualidade do sal. Terminado o perodo de descanso, o monte se transformava num todo compacto, endurecido. Era chegado o momento de quebrar o sal. “A gente vai descascar, tirar aquele casco por cima, aquelas lapadas como um beiju e aquela parte da pedra se desprende l de cima do serrote, aquilo corta que s navalha” (68). No foram raros os casos de trabalhadores acidentados nestas circunstncias.
Portanto, o trabalho na salina era realizado sob condies as mais desfavorveis ao trabalhador. No havia da parte das empresas a menor sensibilidade para as questes de alojamento, segurana, transporte e sade. A mo-de-obra farta, disponvel e barata agia como um mecanismo de compresso: baixa remunerao e pssimas condies de trabalho.
Mesmo direitos j plenamente conquistados pela classe trabalhadora e aceite pelos patres em outros lugares, como repouso semanal remunerado e seguro por acidente de trabalho, no conseguiam romper a intransigncia dos patres mossoroenses. Somente a ameaa de greve levava-os, obrigava-os, fazia com que conseguir. Mesmo assim, nem sempre acompanhavam as conquistas, como por exemplo, o direito s frias, que somente viria a ser reconhecido em 1947.
Os trabalhadores, cujas mos construam as grandes riquezas da regio, eram submetidos s pssimas condies de sade e higiene. Muitos ficavam tuberculosos. Outros tinham a viso comprometida pela excessiva exposio ao sol.
A mercadoria comercializada no barraco, apesar da qualidade inferior, custava de duas a trs vezes o preo normal do mercado. Todo operrio de salina, nessa poca de trabalho manual, tinha um calo no ombro. Eles carregavam balaios cheios de sal, suspensos por um pau apoiado nos ombros de dois homens. “Era um negcio bonito, para quem estava de fora, mas, quando a gente entrava no jogo, tremia as pernas (...)” (69).
Em decorrncia, muitos tiveram a coluna vertebral afetada, ficaram tortos para o resto da vida. Alm do mais, as constantes escaramuas entre operrios, patres e prepostos, fizeram com que eles ficassem visados pela polcia. E era l no ombro, naquele calo, que a polcia ia com a mo, em busca de sua identidade.

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