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CIDADANIA E MEIO AMBIENTE 243y4

HENRI ACSELRAD(1)

No sculo 6 a . C., surgiu na filosofia de Anaximandro de Mileto a idia de lei aplicada natureza. Para explicar o nascimento e o desaparecimento das coisas, o filsofo grego transferiu para o mundo natural a idia de direito que se aplicava antes apenas vida social. Para Anaximandro, os elementos da natureza pagam pelas injustias que so cometida no mundo. E foi assim que teve origem a idia filosfica de cosmos palavra que designava anteriormente apenas a justa ordem da comunidade e do Estado. (2) A crena na idia de lei e de direito como fundamento da existncia levou o pensamento grego a projetar, no prprio universo, a imagem do cosmos scio-poltico. A ordem csmica foi pensada, assim, a partir da ordem poltica. No s na vida humana, mas tambm na natureza, devia prevalecer a isonomia, ou seja, o princpio da igualdade de todos perante a lei.

Dois mil e quinhentos anos mais tarde, as idias de Anaximandro cobrem-se de sentido ante as evidncias da crise ecolgica contempornea. O tipo de ordem estabelecido na sociedade est hoje, sem dvida, gerando desordem na natureza. A desorganizao das leis da natureza parece estar refletindo as injustias da vida social. A crise ambiental coloca portanto em questo o prprio modo de organizao da sociedade e as leis que regem sua reproduo, isto , sua continuidade.

Somos ento levados a nos perguntar: como a antiga intuio do filsofo grego se materializa nos dias de hoje? Como se relacionam os fatos sociais e os fenmenos de natureza? Que relao existiria entre o efeito estufa e a desigualdade social, entre a depleo da camada de oznio e os direitos humanos, entre o meio ambiente e a democracia? Seguindo a pista de Anaximandro, tentaremos investigar na presente crise ambiental os elementos que refletem processos de destruio de direitos e de produo de desigualdades. Assim fazendo, estaremos tambm identificando nas lutas ambientais os caminhos que levam, ao mesmo tempo, ao restabelecimento do equilbrio na natureza e construo da democracia na sociedade.

O movimento social contra a degradao do meio ambiente vem se articulando crescentemente com as lutas democrticas pela implantao de um novo modelo de cidadania. A defesa dos direitos ambientais das populaes unifica lutas sociais com distintos objetivos especficos: o o a bens coletivos como a gua e o ar, em nveis e qualidade compatveis com condies adequadas de existncia; o o a recursos naturais de uso comum necessrio existncia de grupos scio-culturais especficos como seringueiros, apanhadores de castanha e comunidade indgenas; a garantia de uso pblico do patrimnio natural constitudo por reas verdes, cursos dgua e nascentes, freqentemente degradados pelos uso privado incompatvel com os interesses coletivos da sociedade.

Essas lutas tm por objetivo geral introduzir princpios democrticos na relaes sociais mediadas pela natureza: a igualdade no usufruto dos recursos naturais e na distribuio dos custos ambientais do desenvolvimento; a liberdade de o aos recursos naturais, respeitados os limites fsicos e biolgicos da capacidade de e da natureza; a solidariedade entre as populaes que compartilham o meio ambiente comum; o respeito diversidade da natureza e os diferentes tipos de relao que as populaes com ela estabeleam; a participao da sociedade no controle das relaes entre os homens e a natureza.

Essas lutas exprimem, portanto, a busca de democratizao do controle sobre os recursos naturais. Pois, como o meio ambiente o e natural da vida e do trabalho das populaes, a luta contra a degradao ambiental tem por objetivo a preservao dos direitos dos cidados vida e ao trabalho. Como as relaes das populaes com o meio ambiente constituem formas culturais especficas de existncia dos grupos sociais, a degradao do meio ambiente , via de regra, um processo de destruio de modos de vida e do direito diversidade cultural de relacionamento das comunidades com a natureza. A crise ambiental exprime, assim, um duplo processo de expropriao das condies materiais e culturais de existncia e de trabalho das populaes. A superao desta crise a, portanto, pela restaurao e consolidao do direitos ambientais das populaes atingidas por agresses ao meio ambiente.

1 - O MEIO AMBIENTE UM BEM COLETIVO

Chamamos de meio ambiente a base natural sobre a qual se estruturam as sociedades humanas. O ar, a gua, o solo, a flora e a fauna do o e fsico, qumico e bitico para a permanncia das civilizaes humanas sobre o planeta. Ao longo dos diferentes estgios de sua evoluo histrica, estas civilizaes modificaram o meio natural: alimentaram-se de outras espcies, domesticaram plantas e animais, artificializaram a natureza para assegurar a existncia biolgica dos indivduos e a reproduo de sua organizao social.

A natureza, ao fornecer a moldura e a substncia para o desenvolvimento das sociedades, foi sendo pouco a pouco associada idia de habitat, de casa onde mora o conjunto da espcie humana. A associao da natureza idia de morada da espcie humana nos ajuda a entender o meio ambiente como um espao comum, habitado por distintos indivduos, grupos sociais e culturas. Compartilhados por todos, o ar, as guas e os solos podem ser entendidos como bens coletivos, cujo uso por alguns pode afetar o uso que deles feito por outros. A qualidade do ar que cada indivduo respira afetada pelas emisses gasosas que todas as atividades humanas provocam. O tipo de uso que os agricultores fazem do solo afeta o lenol fretico e a qualidade da guas disponveis para o consumo humano, tanto de agricultores como de no-agricultores. A destruio da cobertura florestal pode alterar o microclima de uma regio, e assim por diante.

E o que se verifica em escala local transpe-se tambm para a escala do planeta: a biosfera um espao coletivo de cujo equilbrio sensvel ao modificadora dos homens depende a existncia de indivduos e comunidades. A ao modificadora do homem sobre a natureza, no espao de uma nao, pode provocar alteraes ambientais para alm de suas fronteiras. Inmeras atividades de carter local tm implicaes sobre o equilbrio global do planeta. A biosfera caracteriza-se, assim, enquanto espao de interao global das sociedades humanas.

2 - OS "PROBLEMAS AMBIENTAIS" SO A MANIFESTAO DE UM CONFLITO ENTRE INTERESSES PRIVADO E BEM COLETIVO

O meio ambiente constitudo, basicamente, por elementos que no so veis de apropriao privada. Este o caso do ar e, em grande parte, das guas. Ningum pode, portanto, ser privado do o a estes bens, ainda que no caso da gua este o possa ser condicionado ou no pela distncia relativa dos rios, lagos e nascentes, ou pela existncia de sistemas artificiais de distribuio.

No entanto, os indivduos tm o poder de alterar as condies de uso da gua e do ar de toda uma comunidade. A privao do o gua e do ar, com a qualidade necessria existncia de um grupo humano, pode resultar, portanto, do uso imprprio que deles for feito.

A terra, por outro lado, o nico elemento da natureza que se tornou vel de apropriao privada. Com o advento do capitalismo, no sculo 18, na Inglaterra, o processo de cerco das terras ocasionou a expropriao e expulso dos camponeses de seus domnios e sua posterior transformao em proletariado assalarivel nas cidades.

A diviso da sociedade em proprietrios e no-proprietrios de terra alterou radicalmente as condies de existncia destes ltimos, que aram a depender, para sua sobrevivncia, da possibilidade de vender sua capacidade de trabalho na qualidade de assalariados. A destruio dos laos tradicionais com a terra, de onde, com seu trabalho direto, as famlias camponesas podiam extrair alimentos, embora no tenha acarretado a eliminao fsica desta, transformou profundamente sua existncia social.

Impossibilitados de se beneficiarem da fertilidade do solo por conta prpria, os ex-camponeses tornaram-se dependente da oferta de emprego por parte de capitalistas da indstria e do comrcio.

No feudalismo, a terra era distribuda segundo regras institucionais totalmente independentes das relaes de compra e venda. A sociedade capitalista regulada pelo mercado, transformou a terra em mercadoria. Entretanto, so mercadorias no sentido estrito os objetos produzidos expressamente para a venda, constitui o que certos autores chamam de "pseudo-mercadoria". Sua definio como mercadoria fictcia. E com base nessa fico que so organizados os mercados reais da terra. Conseqentemente, enquanto elemento natural do qual depende o destino dos seres humanos, a terra a a ser subordinada s leis do mercado.

A capacidade de regenerao do solo a, ento, a depender das expectativas de lucro que o mercado oferea para a compra, a venda e o uso da propriedade fundiria. As leis da natureza am, assim, a ter sua vigncia condicionada pelas leis do mercado e da produo do lucro.

Apesar de tornar-se objeto de apropriao privada, o solo, pelo uso que seus proprietrios aram a fazer dele, continuou afetando indiretamente o bem-estar coletivo, seja pela interligao que estabelece com os recursos hdricos, seja pela fertilidade que encerra, e da qual dependem as geraes futuras de proprietrios e no-proprietrios de terra, seja pelo uso que feito dos recursos biticos vegetais e animais que contm.

3 - OS "PROBLEMAS AMBIENTAIS" SO A MANIFESTAO DE CONFLITOS SOCIAIS QUE TM A NATUREZA POR E

Os elementos da natureza influenciam as condies de existncia de todos os indivduos e as condies de trabalho de grupos sociais especficos. Toda comunidade que respira o oxignio da atmosfera obrigada a aspirar tambm o material particulado emitido por uma usina siderrgica situada em sua proximidades. Neste caso, as condies de sade de todos so afetadas, particularmente as daqueles que trabalham na usina ou moram perto dela.

Por outro lado, alguns grupos sociais dependem da existncia equilibrada de determinados ecossistemas, nos quais trabalham e dos quais extraem os meios de sua subsistncia. Este o caso de pescadores artesanais, seringueiros, apanhadores de castanha e comunidades indgenas, por exemplo, cuja reproduo social depende da fertilidade dos rios e lagos, da integridade dos seringais e dos castanhais.

No caso da contaminao do ar por partculas e efluentes gasosos de origem industrial, um conflito se estabelece entre os interesses das empresas, desejosas de se livrarem, sem custos, da parcela invendvel de sua produo, precavendo-se de uma reduo em sua margem de lucratividade, e a comunidade de trabalhadores e moradores que sofre as doenas respiratrias e vive em condies sanitrias precrias. O conflito social se explica quando a comunidade percebe que a lucratividade da empresa est sendo alimentada pela precariedade das condies de existncia da populao.

No caso dos grupos sociais que vivem do extrativismo vegetal, o conflito pode advir da expanso da especulao fundiria que derruba e queima seringais e castanhais, para obter bons preos pela "terra nua", que lhe serve de reserva de valor, e para realizar lucros de revenda. Os pescadores artesanais, por sua vez, podem estabelecer uma relao conflitiva com os agentes da pesca comercial que se utilizam de rede de arrasto e de outros apetrechos com os quais praticam a sobrepesca e comprometem a reproduo dos cardumes.

Observa-se, portanto, uma luta social pelo controle dos recursos naturais e pelo uso do meio ambiente comum. Balizadas pelo sistema jurdico-legal e pelas polticas ambientais do Estado, as condies de realizao dessas lutas caracterizam os modos dominantes de apropriao social da natureza.

4 - TODA AO QUE COMPROMETE AS CONDIES AMBIENTAIS DE EXISTNCIA E TRABALHO DAS POPULAES ATENTA CONTRA DIREITOS AMBIENTAIS DE INDIVIDUOS E COLETIVIDADES

Os movimentos sociais viabilizaram e expandiram, ao longo da histria, o espao dos direitos na sociedade. A liberdade religiosa adveio das guerras de religio; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; a liberdade poltica e as conquistas sociais, do amadurecimento do movimento operrio; e assim por diante. No Estado de Bem-Estar constitudo nos pases capitalistas centrais, tais direitos estenderam-se proteo contra o desemprego, ao direito educao bsica gratuita e de qualidade, assistncia invalidez e velhice. Na sociedade brasileira, os direitos civis e polticos que foram tragados na turbulncia dos regimes autoritrios, tm vigorado nos perodos de normalidade nas instituies democrticas. As condies de exerccio de tais direitos permanecem, porm, precrias para a grande maioria da populao, desprovida dos meios de existncia necessrios sua constituio como sujeito poltico autnomo. Os direitos educao, sade, velhice so, por seu turno, apenas formais, permanentemente submersos pela crise fiscal do Estado e pela avidez das elites.

A este quadro precrio da cidadania no Brasil somam-se as limitaes que as condies ambientais de existncia colocam para o exerccio pleno dos direitos adquiridos por grande parte das populaes. Os moradores da Vila Soc, por exemplo, desprovidos de condies apropriadas de moradia, e compelidos a viver entre os oleodutos de Cubato (SP), no puderam usufruir de seus direitos civis bsicos, submetendo-se aos riscos do terrvel acidente que vitimou, em 1984, dezenas de membros daquela comunidade. Naquela ocasio, centenas de famlias de trabalhadores foram surpreendidas noite por exploses e incndios nas tubulaes em torno das quais viviam, por falta de moradia adequada. A mesma cidadania precria decore das condies ambientais de existncia em que esto inseridos os moradores de encostas perigosas, as comunidades compulsoriamente deslocadas de seu ambiente scio-cultural para a construo de hidreltricas, os moradores de reas onde houve o lanamento incontrolado de lixo qumico e outros resduos txicos, os trabalhadores vitimados pelo benzeno na indstria petroqumica, pela silicose na construo naval, etc. Vivendo e trabalhando em condies ambientais adversas, arriscadas e danosas sade, estas populaes so constrangida a exercer, de forma restrita os seus direitos de cidadania.

5 - TODO CONFLITO AMBIENTAL EXPLCITO EXPRIME A CONSCINCIA DE QUE UM DIREITO AMBIENTAL FOI AMEAADO.

Os conflitos ambientais podem ser explcitos ou implcitos. Os conflitos implcitos so aqueles em que as comunidades so atingidas por um processo de degradao ambiental do qual no tm conscincia. Em certos casos, mesmo havendo conscincia, as comunidades podem no associar a degradao ambiental s prticas de agentes sociais determinados. A inconscincia em relao ocorrncia de processos de degradao ambiental pode resultar tanto de carter no-aparente de certas transformaes ecolgicas como de sua atribuio e fenmeno naturais espontneos.

Na grande So Paulo, por exemplo, sabe-se que das 187 mil toneladas de resduos perigosos produzidos por ano, 83,1 mil toneladas so dispostas irregularmente no solo ou em corpos dgua. A desinformao faz com que a populao sofra as conseqncias da poluio sem o saber, ou, quando os sintomas de contaminao se manifestam, sem identificar suas causas reais. A percepo da existncia de um agente poluidor depende, neste caso, da eficincia da ao das agncias ficalizadoras do Estado ou da vigilncia do prprio movimento social. Foi por estas vias que se pde descobrir que, por 45 anos, uma empresa do ramo qumico do Rio de Janeiro usou regulamente mercrio para executar a eletrlise na produo de cloro-soda, depositando inadequadamente os resduos no subsolo do seu prprio parque industrial.

Mas o conflito pode, por vezes, no eclodir explicitamente, quando o processo de degradao de tal forma disseminado em suas causas que as comunidades atingidas vem-se desorientadas quanto ao sentido que deve ter sua reao. A derrubada de matas ciliares e a implantao de grandes projetos de irrigao esto esgotando os mananciais e causando grave assoreamento dos rios do norte de Minas Gerais. A morte dos rios est acarretando o xodo rural das populaes ribeirinhas que deles sempre dependeram para sobreviver. Enfraquecidas em sua capacidade de controlar os recursos naturais na regio e de garantir a preservao de seus direitos ambientais, as famlias camponesas, despossudas, emigram.

No estado de So Paulo, em 1991, 80%da rea cultivada avam por processos erosivos, sem possibilidade de regenerao, incluindo-se 6 mil baorocas - grandes fendas abertas no solo degradado. Esta eroso responsvel pelo assoreamento de grande parte dos rios paulistas. Consqentemente, a perda da capacidade de armazenamento de gua no solo levou ao aumento da freqncia das enchentes ocorridas no estado. Para as vtimas dessas calamidades, porm, difcil adquirir conscincia dos processos que ligam as enchentes eroso dos solos.

Estima-se que, no rio Paraba do Sul, so lanadas diariamente 47 mil toneladas de esgoto e de efluentes industriais. Vinte milhes de pessoas, aproximadamente, consomem gua precedentes deste rio. Em sua maioria, desconhecem as condies de potabilidade da gua que bebem. Dados da EMBRAPA, por outro lado, mostram que a derrubada de florestas ocasionou, nos ltimos 25 anos, uma queda no volume das chuvas anuais, no estado do Par, assim como um aumento no intervalo entre as chuvas. Os agricultores que plantam espcies de ciclo curto na regio tiveram, assim, que alterar suas rotinas de cultivo, por no disporem de gua de chuva em volume suficiente. reduzida, porm, a conscincia que estes agricultores possuem sobre os fatos geradores de tais alteraes ecolgicas.

Em todos esses exemplos, comunidades urbanas e rurais foram vitimadas por mudanas ambientais que desestabilizaram suas condies de trabalho e de existncia. Mas, por sua natureza abrangente, tais conflitos ambientais foram dificilmente identificados pelos grupos sociais diretamente afetados. Sua explicitao, quando ocorreu, foi resultado da atuao de organizaes da sociedade civil que, em nome do interesse coletivo, estabeleceram as conexes lgicas entre as aes predatrias e a degradao ambiental, reclamando a conseqente ao dos governos ou da Justia.

O conflito ambiental explicitado, portanto, quando as comunidades estabelecem uma associao lgica imediata entre a degradao do meio e a ao de agentes sociais determinados. Este o caso dos pescadores da baa de Sepetiba, no Rio de Janeiro, unnimes em atribuir os seguidos episdios de mortandade de peixes aos despejos de slica, ferro, zinco, cdmio e sulfato de clcio feitos por uma indstria local. Mas, em grande parte dos casos, a contaminao do meio ambiente por efluentes industriais, embora ocorra com repetida freqncia a partir de uma mesma fonte, apresentada como fato acidental. Os agentes responsveis pela contaminao tentam, assim, fazer ar por ocasional um conflito social que permanente, posto que associado aos riscos industriais que so indevidamente equacionados pelas empresas.

O acidente ambiental , na verdade, a explicitao do risco permanente a que submetida a populao. No municpio pernambucano de Igarassu, a m vedao de um veculo de carga intoxicou gravemente 108 pessoas. A empresa responsvel j havia sido autuada por lanamento de resduos txicos nos rios e por enterro inadequado de lixo qumico. Exemplos como este mostram que o uso do espao pblico para o despejo de produtos danosos sade pblica, ainda que atravs da soma de mltiplos episdios acidentais, uma prtica sistemtica. Por dia, ocorrem cinco casos de vazamento, incndios de cargas txicas ou inflamveis, no estado de So Paulo. Entre 1978 e 1991, registraram-se oficialmente 866 acidentes ambientais naquele estado, resultando na "perda" de 25 mil toneladas de produtos qumicos, que foram introduzidos indevidamente no meio ambiental atravs do solo, dos cursos dgua e da atmosfera.

Quando a contaminao do meio ambiente no se opera de forma visvel e brusca como no caso dos "acidentes ambientais", a conscincia de que a populao foi atingida em seus direitos por uma agresso ambiental pode no surgir enquanto seus sintomas no se manifestarem na sade dos indivduos e enquanto no se estabelecer a conexo lgica entre estes sintomas e as fontes geradoras da poluio. Em certos casos, esta conexo pode se dar somente alguns anos aps o aparecimento dos sintomas. Este foi o caso da contaminao dos moradores da Cidade dos Meninos, um conjunto de habitaes, no municpio de Duque de Caxias (RJ), construdas sobre uma rea onde 50 anos antes haviam sido enterradas 400 toneladas e BHC, o agrotxico conhecido como "p de broca". Quando uma pesquisa laboratorial confirmou que todos os moradores haviam mantido contato com aquele produto txico, 14 pessoas j haviam falecido de cncer.

Portanto , para que os direitos ambientais da populao possam ser preservados, indispensvel a democratizao da informao sobre as alteraes do meio ambiente. A legislao ambiental brasileira define quatro tipos de informao, cuja divulgao dever do poder pblico: a) os resultado de anlises efetuadas, quando solicitados por pessoa legitimamente interessada; b) os pedidos de licenciamento de atividades potencialmente poluidoras; c) o pedido de registro de agrotxico; d) o anncio das audincias pblicas para a apresentao de Relatrios de Impacto Sobre o Meio Ambiente. De posse dessas informaes, a sociedade civil organizada pode identificar as fontes geradoras de degradao ambiental e pleitear, na Justia, a proteo dos direitos ambientais atingidos. Na ausncia de informao cientificamente comprovada, as populaes atingidas devem, no entanto, fazer valer a fora legtima da percepo coletiva que tm das alteraes ambientais de que so vtimas. Com base nessa percepo, os atingidos podem pleitear a supresso das fontes geradoras de degradao em seu meio.

6 - AS LUTAS AMBIENTAIS TM POR OBJETIVO ATRIBUIR CARTER PBLICO AO MEIO AMBIENTE COMUM A INDIVDUOS E GRUPOS SOCIAIS.

A ordem jurdica nascida da Revoluo sa supe uma sociedade regulada pela via de contratos deliberadamente estabelecidos entre os indivduos. O Cdigo Civil derivado daquela revoluo regulamentou a troca simples, onde cada indivduo d o quanto recebe e recebe o equivalente ao que d. Supe-se a que a troca um efeito da vontade comum das partes, consignada em um contrato livremente acordado. Supe-se tambm que esta relao implica igualdade, posto que cada parte aliena e adquire, pela troca, um valor igual.

Quando pensamos no meio ambiente como o espao onde tambm se estabelecem trocas entre os indivduos e os grupos sociais, percebemos que a igualdade de direitos, concebida pela ordem jurdica oriunda do pensamento liberal, uma fico. Na realidade, sob os diferentes usos que os grupos sociais fazem do meio ambiente, desenvolve-se uma infinidade de relaes de troca involuntrias, para as quais inexistem contratos deliberados.

Seno, vejamos: o que a "poluio"? A poluio um processo pelo qual so lanados, no meio ambiente, resduos slidos, efluentes lquidos e gasosos resultantes, em sua grande maioria, da operao de processos produtivos. Ao serem lanados no meio ambiente, tais subprodutos, txico em sua grande parte, so consumidos involuntariamente pela populao. Portanto, a chamada "poluio" consiste, na verdade, em um processo de consumo forado de substncia poluentes por indivduos que no estabeleceram, para tanto, nenhum contrato voluntrio.

Assim sendo, tanto no ar que respiramos como na gua que bebemos, somos obrigados a consumir involuntariamente produtos txicos, derivados do uso que certos agentes fazem do meio ambiente comum. No h, nessas situaes, nem livre contrato, nem igualdade jurdica. H, isto sim, uma relao de troca forada, pela qual um certo nmero de empresas, privadas ou estatais, obriga regularmente os indivduos a consumirem substncias para as quais inexiste qualquer demanda monetria. Este consumo forado regular de poluentes foi tolerado, ao longo da histria do capitalismo, enquanto contra ele no se levantou a conscincia dos direitos de cidadania que eram, por esta via, continuamente desrespeitados. Soma-se, porm, a esta relao regular de troca forada aquelas decorrentes dos chamados "acidentes ambientais", atravs dos quais os prprios produtos vendveis das empresas so disseminados na atmosfera, nos rios, estradas e mares.

Por extenso, podemos perceber que todas as vtimas de agresses ambientais sofrem, involuntariamente, as conseqncias da ao privada de certos agentes econmicos sobre o meio ambiente comum. Tal ao privada em suas motivaes, por visar essencialmente lucratividade das empresas e no satisfao do interesse pblico. O carter privado dessas motivaes pode, porm, aplicar-se tanto a empresas privada propriamente ditas como a empresas estatais istradas pela lgica da eficincia privada e do lucro contbil. As vtimas de tais aes privadas, no entanto, em nenhum momento firmaram qualquer contrato em que fixassem seu consentimento para com as prticas de que so vtima. Tampouco reconheceram terem estabelecido uma suposta "troca simples entre valores iguais". As trocas foradas, mediadas pela natureza, configuram portanto agresses ambientais, e no relaes contratuais livres. Por ocasio da construo da hidreltrica de Tucuru, as populaes das ilhas do Baixo Tocantins de modo algum consentiram com o desaparecimento das espcies de pescado das quais dependiam para sobreviver. A populao ribeirinha do norte de Minas Gerais jamais consentiu que o desmatamento para a produo de carvo vegetal acarretasse a secagem dos rios de onde retiravam a sua subsistncia. Os 3 mil pescadores da baa de Todos os Santos (BA) no firmaram nenhum contrato aceitando a suspenso da pesca de frutos do mar nos trs quilmetros de manguezais atingidos pelo derramamento de 48 mil litros de leo procedentes de uma usina de asfalto da Petrobrs, em abril de 1992. Colocados ante a impossibilidade de escolher, as vtimas das agresses ambientais tm seus direitos gravemente desrespeitados.

De fato, em toda agresso ambiental, h um grupo social mais diretamente atingido em seus direitos. Mas considerando-se o meio ambiente como "patrimnio pblico a ser assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo", tal como expresso na lei 6938/1981 (Lei da Poltica Nacional de Meio Ambiente), as agresses ambientais afetam o prprio interesse pblico.

Ao definir o meio ambiente como "bem de uso comum do povo", a Constituio Federal de 1988 estabeleceu que os bens ambientais no podem ser utilizados pelo Estado ou por particulares de forma a que seja impedido o usufruto coletivo desses bens. Nesta medida, a poltica ambientais do Estado esto, em grande parte, articuladas s opes de desenvolvimento que dizem respeito ao conjunto da sociedade. Polticas ambientais democrticas supem polticas de desenvolvimento que sejam tambm norteadas pelo interesse coletivo.

A crise ambiental resulta, com efeito, da invaso da esfera pblica pela esfera privada. As lutas contra as agresses ambientais e pelo respeito aos direitos ambientais da populao so lutas pela garantia do carter pblico do meio ambiental.

O espao pblico, como assinala Claude Lefort(3), aquele onde os homens se reconhecem como iguais, discutem e decidem em comum. nesse espao que se constri um mundo comum, que mltiplo posto que reflete as perspectivas diferenciadas dos cidados, mas o mesmo posto que compartilhado por todos. Esse espao pblico, tal como concebido na democracia grega, o espao do exerccio da poltica, onde tudo decidido mediante as palavras e a persuaso, e no atravs da fora. Para os gregos, lembra Hannah Arendt (4),forcar algum mediante a violncia e ordenar ao invs de persuadir constituam os modos pr-polticos de lidar com as relaes sociais.

Vistas sob este prisma, as agresses ambientais so a expresso da imposio do interesse de poucos sobre o mundo de todos. Elas so, portanto, impedimentos construo de um mundo efetivamente mltiplo e comum. Por sua vez, as lutas contra as agresses ambientais so lutas pela construo da esfera pblica na natureza, e pela introduo da poltica na gesto do meio ambiente. pois atravs da poltica que se promover a desprivatizao do meio ambiente e se garantir o resultado aos direitos ambientais das populaes.

"Um mundo nico, ou nenhum mundo" esta a frmula que exprimiu, a partir dos anos 60, a conscincia de que o planeta um espao biofsico interligado e comum a todos os povos. "Um mundo justo, ou nenhum mundo" completaria hoje a filosofia csmica de Anaximandro de Mileto.

NOTAS

(1)Economista, pesquisador do IBASE, este texto foi publicado originalmente no livro: no Meio ambiente e democracia. Rio de Janeiro: IBASE, l992

(2) JAEGER, W. Paideia. Rio de Janeiro, Editora Martins Fontes, 1989

(3) LEFORT, C. Repensando o Poltico. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.

(4) ARENDT, H. A Condio Humana. Rio de Janeiro, Forence Universitria. 1989.

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