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Estratgias de Superao da Discriminao tnica e Religiosa no Brasil 18w2y

Roseli Fischmann* 1j45u

"No se trata de duvidar da misria humana - do domnio que as coisas e os maus exercem sobre o homem (). Mas ser homem saber que assim. A liberdade consiste em saber que a liberdade est em perigo. Mas saber ou ter conscincia ter tempo para evitar e prevenir o momento da inumanidade."

Emmanuel Levinas - Totalidade e Infinito

Um tema forte e delicado

Pressupostos terico-metodolgicos da temtica

Algumas experincias de trabalho

Ensino Religioso em escolas pblicas - a discusso do Estado de So Paulo

Pluralidade Cultural como tema curricular transversal para as escolas de ensino fundamental

Manual Direitos Humanos no Cotidiano, a valorizao da diversidade e do pluralismo

Rede Unesco das Amricas e Caribe de Cientistas para a Tolerncia e a Solidariedade

Alguns apontamentos sobre intencionalidade, esperana e o papel da educao, guisa de concluso

Bibliografia

Um tema forte e delicado k5444

Tratar da temtica da discriminao tnica e religiosa tratar de identidade, autonomia, alteridade, valores, tradies, smbolos, indivduos, coletividades, singularidades, pluralidades. tratar tambm de fronteiras, relaes intra e inter-grupos, incluses, excluses.

O cuidado que se pode observar, no rol de categorias apresentadas, de no usar conectivos, aditivos ou alternativos, devido complexidade dos vnculos que se estabelecem entre eles.

A propsito, a prpria categoria vnculos tem sentido especial, assim como a idia de que se estabelecem, ou seja, algo que um construdo e no um dado. Vnculos entre indivduos e seus grupos - tnicos, religiosos - de origem tm tal fora, que dificilmente se encontra quem os conteste. Podem ser mais ou menos valorizados, plenamente aceitos ou absolutamente rejeitados - jamais sero um dado neutro na vida de algum.

Por etnias e religies fazem-se guerras, como tem demonstrado a Histria Mundial em todos os tempos. Por isso, tratar da discriminao religiosa e tnica e tratar da possibilidade da Paz. Como lembra Javier Pres de Cuellar, "a cultura da paz, da democracia e dos direitos humanos constitui um todo evidentemente indivisvel, assim como os direitos civis e polticos e os direitos econmicos, sociais e culturais"[1]

De fato, absolutamente insuficiente a perspectiva da paz como ausncia de guerra. De certa forma, a humanidade est ainda parcialmente imersa no que Raymond Aron denomina "paz de impotncia", onde no se d a guerra pela perspectiva de extermnio mtuo, frente s armas de que o inimigo tambm dispe[2].

Talvez o sobressalto do Absurdo, somado barbrie quotidianamente espalhada pelas ruas das grandes metrpoles e, mais ainda, por todo o Terceiro Mundo traga o despertar definitivo, no mais s de alguns, para a imperiosa necessidade de alcanarmos a "paz de satisfao": "as unidades polticas deveriam, antes de mais nada, deixar de ambicionar a extenso de sua soberania a territrios ou pases estrangeiros (...). Alm da satisfao, nascida do respeito por um princpio de legitimidade, deve haver a suspenso da rivalidade em termos de terras e de homens, de foras, de idias e de amor-prprio"[3].

interessante observar que o mundo acadmico no diretamente relacionado s discusses referentes Poltica e ao Direito Internacional tambm tem dado ateno a esta problemtica, a partir de diferentes enfoques, em geral plenos de perplexidade e indagaes. So alertas, implantados aqui e ali, como buscando tirar aqueles que se dedicam descoberta, elaborao e divulgao do conhecimento cientfico, de sua rotina auto-centrada.

interessante observar que diferentes autores, de diferentes reas, tm - e j h algumas dcadas - clamado por que se d ateno aos rumos que a Humanidade vem tomando. Vejamos alguns.

O arquelogo Grahame Clark, em seu livro A Identidade do Homem[4] afirma: "Para uma abordagem mais positiva do futuro necessitamos, sobretudo, de uma percepo contempornea do que significa ser humano. S assim poderemos definir os valores que precisamos sustentar se quisermos reter o nosso 'status' adquirido por anteados predominantemente pr-histricos, no transcurso de muitos milhares de geraes. Da perspectiva inaugurada pela arqueologia e suas disciplinas associadas, o nosso problema no consiste em como absorver ou processar mais materiais, ou mesmo como dividi-los em pores mais iguais. , antes, como manter, em face de crescentes ameaas, uma qualidade de vida sem paralelo para a nossa prpria espcie"[5].

Apresentando uma crtica postura adotada pelos cientistas, que, ao rejeitarem religies e ignorarem preocupaes bsicas de leigos, abandonam a questo bsica da identidade - "o que significa ser humano" - que persegue desde sempre a Humanidade. Afirma, assim: "Por muito til e vlido que possa ser, para fins de laboratrio, descrever um ser humano em termos de seus componentes qumicos contidos numa frmula ou mesmo, em um nvel superior, como uma organizao de protoplasma sensvel, isso totalmente intil para uma pessoa em busca de sua identidade"[6].

Feito o alerta ao mundo cientfico, Clark dirige-se anlise da organizao econmica e seus reflexos nas sociedades, particularmente levando em conta a acelerao do ritmo de mudana e lembrando que muitos avanos tecnolgicos, hoje alcanados em minutos, dependeram de descobertas ancestrais, cultivados ao longo de geraes, por culturas que, em si, desapareceram.

Comparando o empobrecimento do banco gentico provocado pela extino de espcies animais e vegetais, homogeneizao da cultura humana que hoje vivemos, a qual "desafia a nossa prpria identidade como homens", Clark pondera: "um dos dilemas das sociedades ps-industriais, por enquanto s parcialmente percebido, consiste em como reconciliar as tendncias homogeneizantes de um mundo cada vez mais organizado na base da tecnologia mecnica, racionalidade e cincia natural, com a diversidade de valores humanos que sintetizam a histria dos homens"[7]

Como se observa, j no se coloca a questo apenas em termos de organizao poltica, mas h um esforo para ponderar acerca da interferncia da organizao mundial na vida cotidiana dos seres humanos, em especial no que se refere a como preservam sua prpria dignidade.

Talvez possamos lembrar, aqui, ainda que brevemente, da anlise do filsofo Jean Baudrillard, ao apontar a relao existente entre aquilo que tem sido servido como "alimento cultural", de maneira geral, propiciando o fim do social, transformado em quase irrestrita massificao. Contudo, esse trabalho escrito originalmente em 1979, previa que, ao contrrio da percepo vigente que indica uma ividade extrema das massas, as reaes que podero ainda advir so, em verdade, imprevisveis[8]. Nessa anlise, Baudrillard lana mo do conceito de massa em Fsica, mostrando, ento, que tudo que endereado s massas humanas recebido, porm, no ivamente; d-se, segundo sua anlise, assimilao e processamento, uma elaborao inconsciente, no visvel, e, por isso, incontrolvel. Alm disso, a forma de "devoluo" dos contedos assimilados pode ser esperada: o que no significa, claro, que se possa saber 'o que' esperar[9].

Assim, o que identificado por Clark como uma busca de afirmao de dignidade, que pode resultar, no raro, em conflitos violentos[10], complementado, por Baudrillard, analiticamente, a partir de outra perspectiva terica, afirmando a no-ividade das massas e, sim, a imprevisibilidade quanto ao momento e qualidade de sua ao.

Neste ponto, a discusso assume concretude imediata. Podemos, por exemplo, entender a ecloso de guerras tnicas em vrios pontos do mundo, assim como os movimentos de afirmao de identidade tnica, em suas diversas manifestaes. Frente a um mundo homogeneizador, onde a violncia do preconceito e da discriminao tnica, embora injustas apenas parte do processo, a reao possvel - em busca da dignidade dada pela identidade definida, clara, assumida, valorizada - apenas comea a se manifestar. Contudo, quais os rumos que tomaro, ou podero tomar, tais manifestaes?

O rumo da violncia e do confronto o mais direto e, de certa forma, mais simples, porm o menos humano, no sentido em que Grahame Clark nos relembra, em termos das conquistas alcanadas desde nossos ancestrais pr-histricos, para nos constituirmos como espcie.

Aqui, um autor que oferece a contribuio mais carregada de um forte "pathos" humanitrio Konrad Lorenz. Considerado "pai da Etologia", cincia que estuda o comportamento animal, prmio Nobel de Medicina em 1972, Lorenz tem uma vasta obra, cuja contribuio mais marcante a anlise da espcie humana comparativamente a outras espcies animais, a qual conclui, surpreendentemente, que ns, seres humanos, estamos em desvantagem, por nossas prprias escolhas.

Lorenz afirma que a espcie humana a nica, dentre as espcies, que usa seu diferencial em relao s demais contra si mesma, e no em busca de preservao e aprimoramento. Assim, o raciocnio abstrato, formal, e a linguagem verbal levaram, por um lado, a um aprimoramento tecnolgico jamais imaginado em outros tempos pelo ser humano. Por outro lado, concorreram para o desenvolvimento de sentimentos de posse, promoveram deslocamentos de conscincia, disseminaram doutrinao e ividade.

Os resultados facilmente visveis dessa situao encontram-se nos resultados da seleo intra-especfica, no caso humano, dada pela concorrncia generalizada. Em outras espcies a seleo feita pela via intra-especfica mostra-se cheia de armadilhas para o prprio processo de evoluo, onde nem sempre o que seria melhor para a espcie o que vence. Ora, seres humanos dotados de razo, assistimos e, muitas vezes, promovemos essa linha de "evoluo", em verdade demolidora da espcie.

Frente a uma anlise como essa, Lorenz v sada: a imprevisibilidade caracterstica de todos os seres vivos - inegvel, apesar da tendncia humana de procurar dominar a teleologia - uma garantia de possibilidade de mudana de rumo. Mais ainda, lembra que a cultura criao humana, podendo, portanto, ser alterada por quem a desenvolveu.

Ora, se a imprevisibilidade o que garante a liberdade, indicando-nos, portanto, limitaes quanto ao que podemos conhecer e prever, por outro lado essa mesma liberdade que nos permite programar aes visando reverter o quadro em que se encontra, ainda no momento, a espcie humana. E, para isso, reservado papel de destaque para a educao.

Citando Andr Malraux, Pres de Cuellar lembra que o mundo da cultura "no o da imortalidade, o da metamorfose"[11]. A solido que vivemos ns, seres humanos, neste final de milnio a de quem contempla a si; contemplando-nos, em nossas imagens, perfeitamente adequadas s exigncias externas[12], vemos esmaecer, distante, nossa identidade, nossa dignidade. Metamorfose meno de esperana, lembrando que j trazemos em ns o que poderemos ser. transformao que no se faz ao acaso, mas cheia, sim, de busca e intencionalidade, como nos ensina Lorenz. E onde a educao instrumento privilegiado.

Nesse sentido, a prpria acepo da educao ampliada, ao contemplar a questo das minorias, assim como se aprofunda o sentido universal dos Direitos Humanos. Vejamos.

A vida humana, enquanto ao e reflexo, distingue-se de todas as demais formas de vida. Em uma perspectiva evolucionista, diferentes espcies desenvolveram diferentes respostas s circunstncias do meio ambiente, como forma de sobreviverem a elementos hostis. Os seres humanos, com sua racionalidade, criaram sistemas de cultura, diversificando-se entre si mais a partir de diferentes cosmologias, que a partir de diferenas biolgicas, expressas em caractersticas fsicas, como cor da pele, formato dos olhos, textura dos cabelos, etc.

Um dado que corrobora a afirmao dessa diferenciao feita pela cultura, refere-se aos processos de aculturao imposta a imigrantes, em diferentes partes do planeta, em diferentes momentos histricos. Muitas vezes, perdido o solo original, e freqentemente deparando com sentimentos de xenofobia (ainda que difusos, ou encobertos), o ser humano v-se na iminncia de adaptar-se, ou fenecer, quando no lhe dada a alternativa de evadir-se. A metfora do camaleo sobre a manta escocesa, expressa por Woody Allen em Zelig, daquele que capaz de se adaptar de forma incondicional, no tempo exato, para sobreviver, fala tambm de certa esquizoidia, distante da desejvel integridade do ser humano.

O jogo de submeter o estrangeiro[13], tem sido suficientemente forte, na histria da humanidade, a ponto de se constituir esse termo - estrangeiro - em referncia metafrica freqentemente adotada na literatura, no cinema, nas artes em geral. Morte em Veneza, O Estrangeiro, so alguns exemplos dessa referncia.

J no apenas como metfora, encontra-se o jogo de submisso operando sobre aquele que se encontra indefeso - a inocncia, a ingenuidade, e, sobretudo, toda forma de excluso, frequentemente so interpretados como fraqueza e incompetncia, certo tipo de displacement, algum que est deslocado como um aptrida, frente a um mundo no qual a competitividade exacerbada ensina a tentar sempre vencer a qualquer custo - vitria que tem, ento, o significado de sobrepor-se, de forma autoritria, aos vencidos.

Convm lembrar que a derrota em uma guerra significou, por diversas vezes na histria, a vivncia da escravido, como conseqncia. Os perdedores, vistos como mais fracos, ou supostamente menos competentes, viam-se escravizados, em uma prtica reconhecida e legitimada naqueles tempos. Paulatinamente, a barbrie da escravido ganhou tal aceitao, que j no era necessrio vencer a guerra - bastava comprar o escravo que traria o direito ao cio e ao reconhecimento de prestgio social - a guerra fora ganha por outros meios.

Da mesma forma, a legitimao da desigualdade, pelas estruturas de senhor e servo, prncipe e sdito, ou a ser matizada pela expanso do capitalismo moderno, na definio da posse dos meios de produo. Exacerbada a desigualdade entre indivduos e grupos humanos, nosso sculo assistiu guerras que colocaram o tema da dominao entre Estados, assim como a retomada intensa e dramtica de lutas internas, por motivos tnicos e/ou religiosos, e ainda a luta pela hegemonia sobre territrios, na definio de fronteiras.

A barbrie do Holocausto, de Hiroshima e Nagasaki, na Segunda Guerra Mundial, deixaram o terrvel registro de at onde o ser humano capaz de chegar. Com a morte de milhes no genocdio perpetrado de forma brutal, e a criao cientfica posta a servio da morte, a humanidade pode olhar-se a si, e perceber quo incontrolveis so as tendncias humanas destruio e violncia.


* Pedagoga, mestre, doutora e livre docente em Educao pela Universidade de So Paulo, sendo professora no Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da USP, onde tambm coordena o projeto Discriminao, preconceito, estigma: relaes de etnia em educao, assim como a implantao, em cooperao com a UNESCO - Unidade da Tolerncia e da Paz, Paris -, da Rede Cientfica das Amricas e Caribe para a Tolerncia e Solidariedade. Recentemente designada pelo Conselho Executivo da UNESCO para integrar o Grupo de Trabalho Especial sobre Educao para Direitos Humanos, como representante regional da Amrica Latina e Caribe, em nome do Brasil. Fellow de The John D. and Catherine T.MacArthur Foundation, Chicago, no perodo de 1994 a 1997, junto ao Programa de Populao.

[1] Cullar, Javier Peres de - "Um Plano Marshall para a cultura e o desenvolvimento", in: Folha de So Paulo, 19/02/1994, p. A-3. Esta discusso inicial baseia-se, parcialmente, no captulo 1 de Transformao de Narciso: Percursos, Dilogos, Reflexes em Educao, Tese de Livre Docncia apresentada Faculdade de Educao da USP em agosto de 1994.

[2] Em substituio "paz de potncia", como por exemplo a "Pax Romana", onde o imprio se preserva sem questionamento, por impossibilidade dos submetidos. Sem dvida haver quem identifique, ainda, uma hegemonia norte-americana tal, que preferiria esta categoria quela que indico acima. Contudo, minha compreenso que o fato de o aparato blico, incluindo arsenal nuclear, estar muito disseminado por diversos pases, torna vital o equilbrio nas relaes internacionais. Contudo, est claro que essa classificao no to simples. Citao ref. Aron, Raymond - Paz e Guerra entre as Naes, 2 ed., Braslia, EdUNB, 1986

[3] Aron, Raymond - op.cit., pp. 231-232

[4] Clark, Grahame - "A identidade do homem - Uma explorao arqueolgica", Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985 - (original, 1983)

[5] Idem, ibid., p.15

[6] Idem, ibid., p.21

[7] Idem, ibid.,pp. 22-23. Ver captulo 6 deste trabalho

[8] De certa forma, os acontecimentos ocorridos no Leste Europeu, incluindo a queda do Muro de Berlim, pioneira no suceder de fatos, corroborou a anlise prospectiva de Baudillard.

[9] Baudrillard, Jean - " sombra das maiorias silenciosas - O fim do social e o surgimento das massas", So Paulo, Brasiliense, 1985

[10] Citando Clark: - "A fora das razes culturais de tais convices (que tm na diversidade cultural elemento constitutivo da dignidade humana) pode ser vista nas reivindicaes de autonomia local, no raras vezes escoradas na violncia, por parte de grupos afogados por alguns dos Estados mais avanados da Europa ocidental" - Clark, G. - op.cit., p.155

[11] Pres de Cuellar, J. - op.cit.

[12] A respeito, sempre oportuno lembrar o indispensvel Goffman, E. - A representao do eu na vida cotidiana, Petrpolis, Vozes, vrias edies

[13] Hannah Arendt trabalhar a questo do estrangeiro como sendo certo sentimento comum, que partilhamos em nossa condio humana, de no nos sentirmos nem em casa, nem vontade no mundo, tema recorrente ao longo de sua obra.

Barrington Moore Jr.., em seu livro Injustia - as bases sociais da obedincia e da revolta - lembra que necessrio haver normas bsicas, que sobrevivam necessidade de a sociedade estar refazendo a cada vez seu contrato social. A obedincia a tais normas constitui-se, nesse caso, num gesto de maturidade, pela adeso aos valores da sociedade especfica em que se vive. Haveria, aqui, includas na normatizao e no contrato, formas de coero social previstas, assim como de punio, consideradas por todos como justas.

Por outro lado, existem alguns elementos, como a opresso e a injustia, que, uma vez surgidos, podem significar uma ruptura do contrato social, frente a qual prprio da maturidade no mais obedecer, mas resistir. Moore Jr. destaca, ento, que o perigo est nas sociedades onde se encontraram formas de controlar toda resistncia, onde a injustia vista como inevitvel, e portanto se sufoca na base toda indignao e ira moral geradas pelo sentimento de injustia.

Mais ainda, com freqncia desenvolvem-se argumentos de justificao da situao, significativos de experincias de auto-anulao, como na citao de Octvio Paz, ao lado de certo orgulho na resignao [1], que de fato estratgia para tornar tolervel suas vidas. Adorno e Horkheimer, por sua vez, tratam de certa atitude que denominam metaforicamente de mentalidade ciclista: aquele que calca o que est embaixo, enquanto se curva ao que est acima.

sobretudo frente a ordens injustas ou a uma ordem opressiva que se revelam a autonomia moral e a coragem moral. Barrington Moore Jr. identifica trs qualidades da autonomia moral:

A primeira qualidade pode ser chamada de coragem moral, no sentido de uma capacidade de resistir a poderosas e ameaadoras presses sociais para a obedincia a regras ou ordens opressivas ou destrutivas. A segunda qualidade a capacidade intelectual para reconhecer que as regras e as presses so de fato opressivas. (...). A terceira capacidade, a inventividade moral, mais rara (...). a capacidade de criar, a partir das tradies culturais vigentes, padres historicamente novos de condenao ao que existe.[2]

Tratando dos efeitos do poder de presso do grupo sobre o julgamento expresso por um indivduo, com base em experimentos de Asch, Moore Jr. enfatiza que um nico aliado pode fornecer suficiente apoio para capacitar uma pessoa a elaborar um julgamento correto[3]. A mesma concluso resultou do famoso experimento de Stanley Milgran, envolvendo cobaias humanas pseudo-submetidas a choques por ordem de pseudo-experimentadores a agentes que demonstraram sua capacidade de resistir a ordens cruis, ou, ao contrrio, de extrapol-las. Nesse experimento, a oferta de apoio social foi a mais eficaz variante no solapamento da autoridade cruel e sdica do experimentador.[4]

Entre outras concluses do longo e denso estudo de Barrington Moore Jr.., a capacidade de identificar a opresso e a injustia tratada como sendo central na busca da construo de uma situao social mais justa a cada vez. Da mesma forma, o desenvolvimento do sentido de inevitabilidade como sendo ilusrio - ou seja, a compreenso de que h certas condies desumanas, dolorosas ou degradantes das quais no se necessitam, no se podem e no se devem ar.

A reverso do sentido de inevitabilidade significa que as pessoas possam compreender que a dificuldade na alterao de certa situao dolorosa vigente no significa que a mesma integre a ordem natural das coisas, sendo por isso inevitvel, mas que essa dificuldade talvez diga respeito a outras dificuldades, como tradies arraigadas ou outros interesses, que no a melhoria da qualidade da vida humana.

Nesses processos pelos quais se desenvolve a capacidade de identificao da opresso e da injustia, e de solapamento do sentido de inevitabilidade, a informao desempenha um papel crucial, assim como o debate aberto e esclarecido[5], que possa servir como o apoio social, de que tratou Moore Jr.., capaz de fortalecer o discernimento facilitador do sentimento de injustia, dando e capacidade de resistncia.

Neste ponto evidencia-se a relevncia da escola, seja como favorecedora de informao, seja como facilitadora de processos que conduzam formao da capacidade crtica, bem como de habilidades de expresso de opinio e, sobretudo, de resistncia opresso.[6]

No mbito social, as minorias tm representado a personalizao da possibilidade de se colocar em discusso os processos humanos de dominao, muitas vezes por seu sofrimento, como j vimos. Theodor Adorno e colaboradores desenvolveram em sua obra Personalidade Autoritria uma srie de reflexes com base em pesquisas empricas quantitativas e qualitativas, que so de extrema relevncia para essa temtica. Devido aos limites deste trabalho, procurarei destacar alguns mais especificamente ligados temtica educacional.

Adorno constatou em suas pesquisas que quanto mais submisso um indivduo, maior sua tendncia ao autoritarismo - submete-se, porque legitima o que o outro faz, e se estivesse em seu lugar, faria igual ou pior. Assim, constatou que existem traos presentes na personalidade autoritria, que tendem a apresentar atitude preconceituosa e a legitimar formas vrias de discriminao de minorias, a includas ns mulheres, os homossexuais, todos aqueles que integram etnias ou religies no dominantes, alm das crianas. Essa formas de discriminao incluem comportamentos violentos, agressivos, excludentes.

Da mesma forma, so personalidades que submetem-se em campo pblico a toda e qualquer autoridade, ainda que arbitrria, enquanto submetem, freqentemente de forma violenta, aqueles com os quais convive no domnio privado da famlia.

Um dos principais mritos do trabalho de Theodor Adorno operar esse vnculo entre a temtica das minorias e o fortalecimento da democracia. Aquilo que pareceria interesse de alguns, na verdade coloca-se como a evidncia da relevncia da proteo ao espao pblico, s relaes igualitrias, as quais podemos chamar de emancipadoras, ao respeito a todo e qualquer indivduo, como base da democracia.

interessante observar que a Declarao dos Direitos das Minorias Nacionais ou tnicas, Lingsticas ou Religiosas proclamada pela Assemblia Geral das Naes Unidas em dezembro de 1992, incorpora essas concluses, destacando que a pluralidade cultural (a incluindo todas as especificaes citadas na Declarao) a base visvel do pluralismo poltico. Enquanto esse pode, em algumas circunstncias, apresentar-se de forma excessivamente vaga e abstrata, a preservao, proteo e promoo das identidades e tradies diversas de uma comunidade nacional podem significar o constante mirar da pluralidade. Ou seja, de fato interesse de todos, e no de alguns.

No trabalho de Adorno, a questo de medidas voltadas para a superao do racismo, da discriminao tnica e religiosa em geral, apresentada como pauta para a sociedade que se quer construir e manter de forma democrtica. Em especial, uma pauta para a educao de todos, uma vez que seria, em sua anlise, uma forma eficiente de prevenir o surgimento de personalidades autoritrias, que viessem a fundamentar, em suas vidas cotidianas, o surgimento do autoritarismo e do totalitarismo, no nvel da organizao poltica.

Da mesma forma, uma pauta para a educao a elaborao de propostas que visem enriquecer a capacidade argumentativa [7]. Nesse sentido, o ponto mais fundamental refere-se possibilidade de formao de indivduos capazes de escapar tentao maniquesta. Novamente aqui, a existncia da diversidade tnica, religiosa, cultural crucial, porque ensina a relativizar afirmaes, bem como a desenvolver a conscincia de que existem tantos sistemas humanos, quanto nos impossvel conhec-los a todos. Ou seja, amos a entender que nosso conhecimento - e portanto nosso julgamento - necessariamente limitado, o que nos obriga a uma tolerncia efetiva para com a diversidade, para com o outro, base da negociao democrtica.

Ainda prope Adorno, como medidas preventivas ao surgimento do totalitarismo, mesmo reconhecendo a inutilidade de receitas nesse campo, trabalhos que evitem clichs, to ao gosto de ditadores, mesmo os camuflados, que falam em nome da democracia. No mesmo sentido, desenvolver flexibilidade, capacidade e gosto para lidar com mudanas, serviro para evitar a rigidez e a constncia quase obsessivas, caractersticas da personalidade autoritria. Nesse sentido, na escola, revezar papis, a possibilidade de assimilar contribuies da comunidade so dados essenciais para o desenvolvimento da permeabilidade e flexibilidade.

s propostas de Adorno podemos somar as de Barrington Moore Jr.., do papel da educao no desenvolvimento da autonomia moral[8], mesmo quando se considera que essa autonomia muito limitada pelas circunstncias. Apoiando-se em Freud, destaca a importncia de que as crianas tenham modelos adultos com os quais possam assumir compromissos morais, base do adensamento da autoridade (no autoritarismo) na sociedade. Em suas propostas destaca-se a manuteno da capacidade de se indignar frente injustia e opresso, portanto da capacidade de resistncia ao arbtrio, o questionamento do consenso criado e aceito dos processos de dominao.

Retornando a Konrad Lorenz, a base de suas propostas para a educao ser a valorizao do ser humano, enquanto criador, como sujeito scio-cultural, e enquanto ser dotado de capacidade de compaixo. Atente-se que a noo de compaixo que traz reflexo no guarda relao com a viso piegas do termo, mas sim com seu sentido etimolgico compaixo, a capacidade de sentir com, de mobilizar-se por. Entende Lorenz que a educao tem o papel de desenvolver a sensibilidade e a conscincia, de promover uma revalorizao dos valores. Mais ainda, ao oferecer conhecimento, deve fundamentar-se em uma perspectiva epistemolgica que se funde na aceitao dos limites do conhecimento do ser humano, sujeito, sempre e necessariamente, aos interesses do conjunto da humanidade. Ao colocar esse tema tico, volta-se ao universal kantiano, de que o limite da ao humana o de que cada ser humano seja tratado como fim em si, jamais um instrumento de outro ou de seus interesses.

Pressupostos terico-metodolgicos da temtica[9] sr3m

Diz Levinas que "a tica, 'j por si mesma', uma ptica". Em meu credo de pesquisadora completo: "a tica uma ptica", instaura a conduta, define a direo metodolgica.

Trabalhar com questes inerentes condio humana assumir um compromisso, e em especial no caso da pesquisa educacional, estabelece premissas metodolgicas claras: a melhoria das condies bsicas de vida do sujeito da pesquisa a finalidade da busca do conhecimento, no s como indivduo, mas tambm como partcipe de uma coletividade social. Em particular o estudo das relaes de etnia - singularidade a ser valorizada e ampliada pela participao na pluralidade, em um processo de construo de novos paradigmas de relacionamento entre indivduos, entre comunidades e entre estas e a sociedade - remete discusso do que esse sujeito como espcie humana, ameaada de "demolio", como dramaticamente nos ensina Konrad Lorenz.

Proponho, ento, um trabalho que compe pesquisa e interveno educacional. Levinas que nos traz reflexo a certeza de que o contato com o Outro e a busca do Absolutamente Outro o verdadeiro ensino. Assim, que melhor tema haveria para uma interveno educacional que a busca da compreenso objetiva de como se d a negao do Outro pelo preconceito, pela discriminao, pela estigmatizao? Ora, trata-se de estudar, investigar, aprender e apreender, em um processo que, ao mesmo tempo que identifica o problema, busca alternativas para sua superao. Nesse sentido no pode ser uma atividade solitria, mas sim solidria, tratando-se de indispensvel integrao entre aes tericas e aes prticas, em uma dinmica de revezamentos[10].

Por lidar com temas do cotidiano, onde h um conhecimento vulgar estabelecido. trata-se tambm de superar obstculos epistemolgicos arraigados, entre outros motivos, por inrcia do esprito, pela valorizao indevida de idias, o que acaba por se opor circulao de valores, onde "aquilo que se julga saber claramente ofusca aquilo que se deveria saber" [11].

A proposta, ento, a participao de representantes de movimentos e organizaes tnicas e de minorias religiosas, em interao com o mundo acadmico, como um investimento na possibilidade de rediscusso das fontes de autoridade na construo do saber sobre etnias, ao mesmo tempo em que se tecem novas relaes da prtica com a teoria.

Abrange o levantamento constante dos "Paradigmas do Outro", tal como se apresentam em crianas e adolescentes das escolas, considerando o "Outro Visvel" e o "Outro No-Visto". Este discernimento particularmente relevante para o Brasil, cuja composio populacional abriga cosmopolitismo peculiar e raro pluralismo, vivido s vezes de maneira apenas virtual por parcelas da populao.

Tal levantamento de "Paradigmas do Outro" busca a explicitao de caractersticas tnicas auto-atribudas e hetero-atribudas, visando identificar a existncia de preconceito (latente ou patente), discriminao (implcita ou explcita) e estigma (no sentido atribudo a este termo por Goffman).

Preliminarmente esclareo que conceituo "Paradigmas do Outro" apoiando-me em Thomas Kuhn e Emmanuel Levinas. O termo "paradigma", tal como utilizado por Kuhn, tem uma riqueza heurstica insubstituvel para nosso trabalho. Analisando a organizao do mundo cientfico, Kuhn ressalta que "os cientistas nunca aprendem conceitos, leis e teorias de uma forma abstrata e isoladamente. Em lugar disso, esses instrumentos intelectuais so, desde o incio, encontrados numa unidade histrica e pedagogicamente anterior, onde so apresentados juntamente com suas aplicaes e atravs delas"[12].

Estabelecendo um paralelismo entre a organizao do pensamento cientfico e a organizao do pensamento da vida cotidiana, proponho uma hiptese segundo a qual as manifestaes de preconceito, discriminao e estigma tm uma "unidade histrica e pedagogicamente anterior", da qual seriam uma aplicao. Seria, portanto, uma modalidade de "paradigma de senso comum", que por encontrar-se articulado traduz-se em expectativas com relao ao comportamento do Outro, configurando o que chamarei de "sndrome DPE", propiciando, frequentemente, condies objetivas suficientes para sua confirmao, como nos processos de "profecia auto-realizadora".

Lembra Kuhn que "na cincia (...) a novidade somente emerge com dificuldade (dificuldade que se manifesta atravs de uma resistncia) contra um pano de fundo fornecido pelas expectativas"[13]. No campo da "sndrome DPE", a mudana dessas expectativas depende - e estas so outras hipteses: (a) do conhecimento objetivo, pelo sujeito, do "paradigma do Outro" do qual ele portador; (b) do contato direto e intencional com o Outro, o qual esteja ciente do "paradigma" que norteia seu interlocutor.

De Levinas aproveito o conceito de Outro e Outrem (em especial Levinas, 1988), parafraseando-o, aqui, ao nomear o "Outro visvel" e o "Outro no-visto", diferenciao indispensvel no estudo das relaes de etnia e entre minorias religiosas, onde freqentemente, como j foi dito, o Outro um contato virtual, o que traz complexidade social e analtica.

Algumas experincias de trabalho 4z1h18

Os protagonistas desses trabalhos que temos desenvolvido so movimentos sociais, por meio de ativistas e lideranas, terceiro setor, universidade, mdia, governo, agncias internacionais. Para facilitar relatos e anlises do que tem sido realizado com base nesses paradigmas, esses interlocutores aparecem um a um, assim como na sistematizao de resultados alcanados tratamos evento por evento. Contudo, na prtica, tudo se entrelaa e se compe em um processo de interao rico e dinmico.

Ou seja, sem a interveno, a pesquisa teria sido menos instigante e menos exigente, com relao preparao terica, definio metodolgica e busca de resultados. Sem a pesquisa, a interveno poderia reduzir-se a empirismo.

A urgncia da temtica, gerando uma atitude de prontido desses interlocutores - universidade, comunidades, mdia, governo -, assim como a consolidao de vnculos de apoio internacional tm sido cruciais para que atender os compromissos ticos assumidos com as comunidades, entre ns que partilhamos a proposta e com agncias financiadoras.

emos a um brevssimo relato de algumas experincias mais significativas, em nvel nacional e internacional, do trabalho desenvolvido com base no referencial terico e metodolgico citado, onde a valorizao, respeito e presena direta de diversos grupos de minorias, e em particular tnicas e religiosas, tem sido central.

Ensino Religioso em escolas pblicas - a discusso do Estado de So Paulo 174t1a

Em 1995, o tema do ensino religioso em escolas pblicas constituiu-se em fonte de cooperao entre nosso trabalho e o Governo Estadual. Tal cooperao foi to mais significativa, quanto mais sria a crise suscitada pela Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - Seo So Paulo. O Governo do Estado de So Paulo no aceitou sua proposta de impor ensino religioso, alegando exigncia constitucional, porm, de fato, dentro de certa concepo que feria os direitos das minorias religiosas e de todos os alunos, por impedir a livre escolha, o que se encontra previsto na Constituio.

A Secretaria de Educao pediu-me a cooperao, dela resultando a proposta e efetiva criao de uma Comisso Especial do Governo do Estado, com representantes de diversos setores governamentais, para a qual fui nomeada como um dos membros, no caso, representante da Universidade Pblica.

O trabalho da Comisso estendeu-se de julho de 1995 a janeiro de 1996, envolvendo ampla participao das comunidades de minorias religiosas, mobilizadas por intermdio das comunidades que participavam de nosso projeto. Foi uma lio de cidadania, pela seriedade e prontido das comunidades que estiveram presentes em defesa de todas as crianas e adolescentes que estudam em escolas pblicas, reafirmando o direito de respeito e valorizao, como na Declarao das Minorias da ONU.

A mobilizao significou a dedicao de muitos, que se empenharam em divulgar a importncia da liberdade de religio, da laicidade do Estado, como presente na Constituio Federal, e, assim, a reafirmao da importncia do respeito liberdade de conscincia e de pensamento.

A imprensa e os meios de comunicao, de maneira geral, foram parceiros ativos e decisivos para aquela que foi uma vitria, embasada em parecer jurdico da professora Anna Cndida da Cunha Ferraz, da Faculdade de Direito da USP, preparado por nossa solicitao.

Essa vitria repetiu-se na promulgao da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional, em dezembro de 1996, quando essa abordagem da temtica foi vitoriosa, aps debate acirrado no Congresso.

Contudo, lei complementar posterior, de julho de 1997, deu nova redao ao artigo referente ao ensino religioso, criando uma situao de ambigidade e ameaa aos direitos fundamentais, que, sem dvida, o tempo j demonstra o desacerto. Essa nova situao, gerada como resultado de presso da CNBB na fase preparatria da visita do Papa Joo Paulo II ao Brasil em outubro de 1997, dever ser corrigida em prol da cidadania, uma vez que a mobilizao havida em So Paulo em 1995, demonstrou exausto os perigos desse tipo de exposio compulsria de crianas religio - sem garantias s minorias - no ambiente da escola pblica.

Pluralidade Cultural como tema curricular transversal para as escolas de ensino fundamental 2ul4s

O documento Pluralidade Cultural, do qual fui redatora e especialista junto equipe geral, integrante dos temas transversais dos Parmetros Curriculares Nacionais - PCNs. inovador, em nvel nacional, porque pela primeira vez temos a temtica da pluralidade e da diversidade tnico-racial presente como poltica pblica de educao para todo o territrio nacional, em uma perspectiva que privilegia a voz dos sujeitos desse processo, valorizando, portanto, as populaes brasileiras. Foi redigido com base em toda a experincia que desenvolvemos em nosso projeto, com a participao de lideranas das comunidades como pareceristas da proposta preliminar, fato indito na histria da educao brasileira.

proposto, tambm, em interao com os demais temas transversais, a saber, Sade, Educao Sexual, tica, Meio Ambiente, colaborando para entrela-los na abordagem que faz dos direitos humanos, da liberdade de conscincia, de opinio, dos direitos da criana e do adolescente, da temtica da igualdade entre homens e mulheres, em uma proposta que toma em considerao a realidade da sala de aula, portanto vivel, apresentada para ser efetivada. Prope, alm disso, estratgia didtica de intercmbio, cooperando para o adensamento dos projetos pedaggicos das escolas, pela via da interao com a sociedade e comunidades, voltando-se para o conhecimento da diversidade regional, cultural e poltica brasileira.

Os valores que so ali trabalhados voltam-se para o fortalecimento da auto-estima de professores e professoras, pessoal auxiliar e istrativo e, de forma central, alunos e alunas, voltando-se para a valorizao das origens de todos, ao mesmo tempo em que afirma a inviolabilidade do direito individual de escolha dos rumos que cada um escolha dar sua vida. Trata, tambm, da urgncia da disseminao do conhecimento dos direitos humanos e do respeito mxima que estabelece todos os direitos humanos para todos.

Encontra-se em aplicao em todo o territrio nacional, no ensino fundamental (oferecido no Brasil a crianas e adolescentes de 7 a 14 anos).

Manual Direitos Humanos no Cotidiano, a valorizao da diversidade e do pluralismo 4qt26

A repercusso de diversas iniciativa do projeto que coordenamos, assim como do documento de Pluralidade Cultural, levaram a outra experincia formidvel de entrelaamento teoria-prtica. O Secretrio Nacional de Direitos Humanos, Dr. Jos Gregori, convidou nosso projeto a colaborar com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos - SNDH, pedindo que concebssemos projeto de elaborao de um manual de direitos humanos para a sociedade, como estabelecido no Programa Nacional de Direitos Humanos.

A familiaridade e envolvimento do Terceiro Setor, a consolidao de uma abordagem de valorizao da voz dos sujeitos do processo social, a ampliao temtica da perspectiva da diversidade - tudo se constitui em fortalecimento de estratgias de superao da discriminao tnica e religiosa - em ao. Assim, processo que no se interrompe, porm gera produtos a cada novo desafio surgido, realimentando-se, consolidando-se e diversificando formas de presena no cenrio acadmico, social, cultural e poltico.

O manual, que envolve mais de 30 artistas das artes visuais, mais de 50 personalidades, como escritores, jornalistas, artistas, religiosos, mais de 60 ONGS, alm da equipe do projeto. Expressa uma abordagem efetivamente em prol da pluralidade, apresentando, na prtica, a diversidade que tanto valorizamos.

Rede Unesco das Amricas e Caribe de Cientistas para a Tolerncia e a Solidariedade 2a4a6t

Em novembro de 1997, realizou-se o Seminrio Internacional Cincia, Cientistas e a Tolerncia, em cooperao com a UNESCO, Unidade da Tolerncia e da Paz, envolvendo quase todas as unidades da Universidade de So Paulo, por intermdio de seus Programas de Ps-Graduao, trazendo cientistas de diversos pases das Amricas e Caribe, assim como da Europa. Foi patrocinado pela USP, UNESCO, FAPESP, Fundao Alexandre de Gusmo, do Itamaraty, Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, por intermdio do Coordenador do Sistema da ONU no Brasil e pelo Consulado-Geral dos Estados Unidos da Amrica em So Paulo - USIS.

Estruturou-se em Grupos de Trabalho e englobou processo do qual resultou a Criao da Rede das Amricas e Caribe para a Tolerncia e Solidariedade, associada s demais redes regionais da UNESCO. A Rede das Amricas encontra-se em fase preliminar de organizao, porm anuncia-se como uma grande oportunidade de trabalho, que h de florescer. Traz a possibilidade de envolvimento e participao efetiva de colegas de diversas reas cientficas, discutindo a temtica da tolerncia, dos direitos humanos, da tica e da cincia, na perspectiva de constituir-se em ncleo disseminador de novas iniciativas.

Alguns apontamentos sobre intencionalidade, esperana e o papel da educao, guisa de concluso 1u6g2d

Frente situao em que se encontra a humanidade, onde a misria de muitos faz a riqueza de poucos, onde a ameaa da guerra persiste, e se efetiva em vrios pontos do planeta, com os riscos de aniquilao fsica total da espcie, onde os valores culturais tm sido homogeneizados gradativamente, em prejuzo da preservao de tradies s quais se liga a prpria dignidade humana, o caminho ditado pela racionalidade, pela intencionalidade e, sobretudo, pela tica, aquele que conduz construo de um mundo livre, porque justo e fraterno, pela via da solidariedade.

O que poderia ser proposto, ento, como relevante, quando se pensa na educao como fator de transformao dos rumos da espcie humana? Um primeiro aspecto destacar, do conceito amplo e de fato indivisvel de educao, a sua acepo de Educao para Direitos Humanos, pauta que est plenamente assimilada como parte fundamental da formao e consolidao de uma Cultura da Paz, solidificadora de laos internacionais como os propostos na constituio das Naes Unidas. Quais as relaes entre a educao assim concebida, a temtica das minorias e a possibilidade da consolidao dos direitos humanos? Tomemos algumas sugestes de Lorenz, combinando-as s experincias decorrentes de nosso trabalho.

Um primeiro aspecto liga-se possibilidade da criana e do jovem experimentarem o prazer da criao. Para tanto, uma rea privilegiada a das Artes, pelo que oferece em termos de possibilidades criativas e de fruio do belo, elemento recomendado por Lorenz.

De fato, o desenvolvimento do senso esttico pode estar ligado, segundo esse autor, tanto percepo de harmonias e desarmonias, e o papel desempenhado pelo ser humano no estabelecimento das mesmas, quanto ao desenvolvimento da sensibilidade.

Aqui, Lorenz oferece-nos algumas das mais belas pginas de esperana na educao e no ser humano. Limitando seu argumento, objetiva e declaradamente, ao mundo material - no por renegar crenas, mas por considerar ser essa a nica forma de se atingir o que h de universal no ser humano - Lorenz aplica-se em explicar o valor da compaixo para a espcie humana. Afirma, por exemplo:

"No reneguemos as dores que nos so causadas pela compaixo. (...) O sofrimento incomparavelmente mais antigo do que a compaixo; o sofrimento surgiu, e nisto no h o que se possa mudar, juntamente com a vivncia subjetiva de uma criatura, juntamente com a inevitvel morte de um indivduo qualquer que ele seja - muitos milhes de anos antes de surgir a compaixo. (...) Essa caracterstica de compartilhar dos sentimentos de outra pessoa s existe, com absoluta certeza, quando um indivduo se sente ligado a outro por laos de amor. O amor por seres vivos uma emoo importantssima, imprescindvel. Pois esta emoo que transfere ao homem, a este ser que tudo domina, a responsabilidade pela vida no planeta. A pessoa responsvel no pode 'alijar de si' nem 'reprimir em si' os sofrimentos de outras criaturas, sobretudo em se tratando de outras criaturas humanas, suas semelhantes. Assim, no nada fcil sua tarefa".[14]

Neste sentido, Lorenz acentua que uma das formas com as quais se evita a compaixo "desviando o olhar" - como se diz popularmente, "o que os olhos no vem, o corao no sente". Nesse sentido, Lorenz prope que a educao aponte os obstculos que se colocam reverso do quadro de auto-demolio em que se encontra a humanidade, desenvolvendo nas crianas e jovens a capacidade de resposta a esses obstculos. Talvez possamos complementar com a abordagem do historiador Barrington Moore Jr.., que d educao o papel, que me parece complementar a essa proposta de Lorenz, de desenvolver nos indivduos imunidades quanto a perda da capacidade de se indignar. Com base nesses valores, a discriminao que leva excluso a a ser encarada, sempre, como alvo de indignao, enquanto todos aqueles que sofrem a excluso so percebidos com compaixo, ou seja, com a capacidade de sentir como o Outro e mobilizar-se por ele.

No mesmo sentido, podemos propor, com Lorenz, uma revalorizao dos valores, onde se comece, por exemplo, por revalorizar a verdade, em contraposio a uma linguagem que adotou a mentira como forma de obter vantagem na competio. Sobretudo, que se possa revalorizar o ser humano, cada ser humano que vive sobre a face do planeta, colocando a servio da vida humana, digna e autnoma, todos os esforos de reorganizao jurdica internacional e internamente, em cada nao.

Ao tratar desses valores que aos poucos a Humanidade viu serem perdidos no horizonte do desenvolvimento tecnolgico e do ritmo frentico de mudana, Lorenz assemelha-se a Allen Wheelis, autor que prope retomarmos o contato com as geraes adas, para recapturarmos o senso de tempo - tema no qual as tradies religiosas, em particular de minorias, tm prtica acumulada.

As propostas de Lorenz podem tambm ser compostas com as do j citado Grahame Clark - mostrando que a preservao de valores das diversas tradies indispensvel preservao da prpria espcie humana. Clark quem alerta, ainda, que se uma mo carrega a preservao, a outra deve levar o esforo de preserv-la de si mesma, evitando a fossilizao, o que se faz, apenas, com a permeabilidade a outras tradies e adaptabilidade aos diferentes momentos. Um desafio, portanto.

Destacamos, ainda, com Lorenz e outros autores, como Bachelard, a necessidade de uma atitude epistemolgica de humildade, frente aceitao dos limites do conhecimento humano. A transformao da espcie humana e a transformao do indivduo colocam-se, assim, como renovao, tanto para sua investigao, quanto para sua prtica da agenda educacional - algo to antigo quanto a prpria humanidade.

preciso lembrar que esse aspecto ligado sensibilidade e afetividade, complementa-se com uma perspectiva tica. Nesse sentido, a anlise de Emmanuel Levinas muito oportuna, porque rene, analiticamente, o que indissocivel eticamente, ou seja autonomia e alteridade. Sua reflexo sobre tal indissociabilidade segue assim:

"a coletividade em que eu digo 'tu' ou 'ns' no um plural de 'eu'. Eu, tu, no so indivduos de um conceito comum. Nem a posse, nem a unidade do nmero, nem a unidade do conceito me ligam a outrem. Ausncia de ptria comum que faz do Outro - o Estrangeiro; o Estrangeiro que perturba o 'em sua casa'. Mas o estrangeiro quer dizer tambm o livre. Sobre ele no posso 'poder', porquanto escapa ao meu domnio num aspecto essencial, mesmo que eu disponha dele: que ele no est inteiramente no meu lugar. Mas eu, que no tenho conceito comum com o Estrangeiro, sou, tal como ele, sem gnero. Somos o Mesmo e o Outro. A conjuno 'e' no indica aqui nem adio, nem poder de um termo sobre o outro".[15]

Nessa proposio que rene, em uma mesma prioridade - porque interseco ontognese e filognese - autonomia, alteridade, compaixo, em resumo, tica e sensibilidade, expressa como compaixo, que podemos depositar esperana no papel a ser desempenhado pela educao para o nosso tempo e do lugar central desempenhado pelas minorias, em particular tnicas e religiosas, como conscincia da riqueza cultural que a diversidade humana.

Bibliografia 6n3r37

Adorno, T. et alii - The Authoritarian Personality, New York, Harper and Brothers, 1950.

Adorno, T. & Horkheimer, M. Dialtica do esclarecimento, 2 ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo, So Paulo, Perspectiva, 1982.

Baudrillard, Jean. sombra das maiorias silenciosas - o fim do social e o surgimento das massas. So Paulo, Brasiliense, 1985.

Bobbio, Norberto. A era dos direitos, Rio de Janeiro, Campus, 1992

Castoriadis, Castoriadis. A instituio imaginria da sociedade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982

Habermas, Jrgen - Cincia e tcnica como ideologia, in Pensadores XLVIII, So Paulo, Abril, 1975

Lafer, Celso. A reconstruo dos direitos humanos, 1 reimpr., So Paulo, Companhia das Letras, 1988.

Lorenz, Konrad. A demolio do homem - crtica falsa ideologia do progresso, So Paulo, Brasiliense, 1988.

Marcuse, Herbert - A ideologia da sociedade industrial - O homem unidimensional, 6 ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1982

Moore-Jr.., Barrington. Injustia - as bases sociais da obedincia e da revolta, So Paulo, Brasiliense, 1987

Weber, Max. Ensaios de Sociologia, 5 ed., Rio de Janeiro, Guanabara, 1982.



[1] Moore-Jr.., Barrington. Injustia - as bases sociais da obedincia e da revolta, So Paulo, Brasiliense, 1987, p.96.

[2] idem, ibid.,pp. 136-137.

[3] idem, ibid., p. 139. Moore Jr. enfatiza, na seqncia de sua argumentao, que h boas razes para se considerar que o inverso tambm ocorra, ou seja, que basta um nico apoio para que um julgamento incorreto seja consolidado.

[4] Idem, ibid, pp. 140-144.

[5] Esclarecido, aqui, no sentido adotado por Adorno e Horkheimer. Cf. Adorno, T. & Horkheimer, M. Dialtica do esclarecimento, 2 ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.

[6] Apenas para citar alguns autores que t6em lidado com a temtica, alm de Paulo Freire e tericos que tm partilhado de seu pensamento, convm lembrar Michael Apple, Henry Giroux, apenas para ficarmos em alguns nomes exemplificativos dessa preocupao na educao.

[7] Esse tema tambm aparece em Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo, So Paulo, Perspectiva, 1982.

[8] Moore Jr.. baseia-se em Piaget e Kohlberg, alm do aqui citado Adorno.

[9] Essa discusso foi apresentada pela primeira vez pela autora no texto inicial do projeto vitorioso Discriminao, preconceito, estigma: relaes de etnia entre crianas e adolescentes em escolas de So Paulo e no atendimento sade, como parte do concurso de bolsas individuais promovido por The John D, and Catherine T. MacArthur Foundation, Chicago, processo iniciado no Brasil em novembro de 1993, e que serviu como base para consolidar uma proposta de trabalho de um grupo que se empenha coletivamente na temtica, em campo social, desde 1990.

[10] Deleuze, in Foucault,1984: 69-70

[11] Bachelard, 1984: 166

[12] Kuhn, 1987: 71

[13] Kuhn, 1987: 91

[14] Lorenz, K. - op. cit., pp.199-200. Uma anlise da questo da identidade, incluindo a ao do indivduo e da escola, est no captulo 4.

[15] Levinas, Emmanuel - "Totalidade e infinito", Lisboa, Edies Setenta, 1988, pp. 26-27.O aprofundamento desta proposta, incluindo implicaes epistemolgicas, assunto do "apndice prospectivo" deste trabalho.

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