Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
Direitos Humanos
Desejos Humanos
Educao EDH
Cibercidadania
Memria Histrica
Arte e Cultura
Central de Denncias
Banco de Dados
MNDH Brasil
ONGs Direitos Humanos
ABC Militantes DH
Rede Mercosul
Rede Brasil DH
Redes Estaduais
Rede Estadual RN
Mundo Comisses
Brasil Nunca Mais
Brasil Comisses
Estados Comisses
Comits Verdade BR
Comit Verdade RN
Rede Lusfona
Rede Cabo Verde
Rede Guin-Bissau
Rede Moambique

Represso, Imaginao e Preconceito: O Caso Argentino 213g4b

Santiago Kovadloff

Professor, ensasta, poeta e tradutor argentino.

1982: As Mos do Medo

A notcia se espalhou: batiam porta inesperadamente. Anunciavam-se com autoritarismo enxuto. Apresentando-se em grupos de quatro ou cinco enquanto seus caminhes esperavam na rua, diziam procurar literatura proibida. Tinham ordem de revisar as bibliotecas das casas, os armrios, os pores. Quando encontravam obras proibidas ou proibveis seqestravam-nas. E junto com as obras, seus leitores. No queriam ouvir explicaes nem desculpas. Os livros achados eram prova suficiente do delito.

O temor se apoderou de todos. Era preciso destruir sem hesitaes tudo quanto pudesse servir de pretexto violncia. Enganava-se a maioria que presumia estar salva por no guardar nas suas prateleiras materiais de expressa orientao marxista. Igualmente perigosos, segundo tudo o evidenciava, eram - simplesmente pela sua linhagem-os estudos sociolgicos, os tratados de filosofia poltica, as monografias histrico-econmicas sobre o incerto desenvolvimento continental, os documentos eclesisticos que impugnavam a injustia social ou as inclemncias do totalitarismo e as obras polticas de qualquer orientao partidria que denunciassem a vigncia de critrios colonialistas nas relaes impostas pelas potncias ocidentais s naes submetidas da Amrica Latina.

Qualquer variante contida nesse leque temtico era suficiente para qualquer pessoa ficar exposta priso imediata. No havia, portanto, tempo a perder: era imprescindvel varrer as prateleiras de riscos eventuais.

O medo cumpriu sua tarefa. Rapidamente o desespero deslocou a prudncia e o ltimo indcio de sensatez se evaporou sob a coero duma rgida autocensura. Com o corao carregado de angstia se iniciou ento o penoso ritual da vergonha. No meio da noite ou luz do dia, desmanchamos nossas bibliotecas. Sem nos olharmos de frente, de costas para nossos filhos, fizemos pedaos dezenas de ensaios, romances, biografias, contos e poemas onde pudesse assomar o menor indcio de conscincia social ou inquietao poltica. Aos nossos ps, como cinzas de um tempo melhor, iam-se acumulando as que um dia tinham sido pginas queridas, pargrafos que sublinhamos com fervor, conceitos e imagens que tinham contribudo nossa formao, ao desdobramento de nossa sensibilidade, ao fortalecimento de nossa inteligncia e do nosso amor liberdade na luta contra o preconceito. Nada nos detinha. O eco de qualquer o na madrugada era o eco de seus os. O silncio mais denso ocultava a ameaa mais angustiante e o horror da opresso se respirava sem esforo e sem pausa. Os que tinham sido livros j no eram seno pedaos de papel. E esses pedaos de papel se transformaram em lixo, e o lixo literrio ardeu nas chamas de nossos jardins, nos depsitos de nossos incineradores, dentro dos nossos banheiros, quando no foram sepultados na terra, longe de nossos lares.


Uma penosa cumplicidade cresceu entre ns: nos irmanava a humilhao de termos queimado nossos livros. No hesitvamos porm em nos auto-justificar. Que podamos ter feito seno fazer o que fizemos? Os anos 70 se esgotavam num mar de barbrie, de terror e de incertezas. A vida de um homem voltava, como em tempos remotos, a no valer quase nada; e a de um leitor suspeito, simplesmente nada. Era intil se arriscar a morrer pela preservao dos livros que amvamos e asfixiante viver num pas que aconselhava queim-los. Mas desse pas tambm formava parte outra dimenso de ns, j que no s ramos os destruidores de seus livros; ramos, tambm, as testemunhas do que acontecia e do que fazamos, e em relao ao futuro ramos a memria possvel das grandes lies democrticas aprendidas nas pginas que tinham ardido. Por isso no hesitamos: o cenrio devia estar preparado para quando eles chegassem. No devia haver um nico indcio que delatasse vocao republicana, irao pelo estado de direito, paixo pelo estudo crtico de nossa realidade, conscincia da represso.

O mais insignificante desses indcios seria, aos olhos de nossos inquisidores, sinal de desobedincia. Esses olhos no deviam se confrontar com nada que os irritasse. Deviam deslizar atravs dos ttulos de nossas bibliotecas com a secreta complacncia de quem se sabe obedecido e verifica a radicalidade da sujeio obtida. Inclusive as prateleiras demasiado cheias podiam resultar suspeitosas. J no importava o que contivessem. O risco consistia, simplesmente, em que as vissem lotadas de livros. No faltou, por isso, quem reduzisse rpida e indiscriminadamente seu patrimnio bibliogrfico, seguindo neste caso, um critrio primordialmente, quantitativo. Nenhum sintoma - foi a concluso - resultaria mais revelador da boa sade cvica exigida pela circunstncias do que uma biblioteca esvaziada.

No faltou porm quem resistisse ao padecimento ivo dessa investida irracional que forava ao extermnio dos livros. E preferiu ocult-los a destru-los. Pensou que certos danos morais so irreversveis. Os volumes queimados bem poderiam, num futuro, se repor. Mas os homens que os queimavam, poderiam se repor? Para muitos que pensaram que no, o perigo que ameaava era, portanto, duplo: se no ocultavam sua paixo pelo pensamento, corriam o risco de desaparecer para sempre, arbitrariamente identificados com os porta-vozes do terrorismo de esquerda graas a essa trgica premissa da lgica do preconceito totalitrio, segundo a qual o niilismo antiocidental e o amor ao conhecimento so sinnimos. Por outro lado, se destruiam seus livros convertiam-se perante si prprios no s em cmplices da sem-razo mas em brbaros a quem a conscincia da prpria vileza no perdoaria jamais. Optaram, ento, por partir com seus livros para outros stios: longe de suas casas, longe de suas cidades, longe de suas provncias, longe de seu pas. Porque tambm se emigrou para continuar lendo autntica literatura. Essa literatura que concebe a histria como estmulo criao constante, como tarefa sempre incumprida que nos impe a necessidade de uma viglia crtica indeclinvel para evitar que a lei - sem a qual no podemos viver - se transforme no dogma que no nos deixa viver. Essa literatura, em sntese, assentada na convico de que sem cultura pode haver demografia mas no cidadania.

Nasceram desta feita autnticas bibliotecas subterrneas. Elas preservaram das chamas obras que hoje demonstram a versatilidade e a riqueza dos interesses intelectuais dos argentinos, tanto como a j ada solidez de uma indstria editorial que foi paradigmtica na Amrica Latina e cujos ttulos, por outro lado, fariam sorrir qualquer desprevenido se soubesse que por t-los incorporados numa prateleira poderia ter ido para a cadeia, ou sala de torturas.

A curiosidade de muitos freqentadores de livrarias no resiste hoje emoo quando, em alguma mesa de saldos, esbarra inesperadamente com um volume familiar. As mos o tomam, acariciam sua lombada; os olhos percebem o leve verniz amarelado que enobrece as margens de suas pginas e ento, num susssurro doloroso, cada um desses leitores se diz: "Eu queimei um exemplar desse livro".


Hoje sabemos to bem como ento, naqueles dias ainda no longnquos, centenas de ns fomos cmplices daqueles que desencadearam essa onda de barbrie. No quisemos contribuir ao extermnio de nossa gerao nos arriscando a morrer pelos nossos livros e tenho certeza que fizemos bem. Mas j hora de verificar se somos capazes de viver em consonncia com os ideais democrticos que esses livros queimados nos ajudaram a forjar. O amadurecimento desses ideais exige uma radical autocrtica de todos ns. No creio que possamos lhes render melhor homenagem pstuma. Nem que haja maneira mais adequada de evitar aos nossos filhos que amanh suas prprias crianas devam se levantar noite para destroar, com as mos do medo, os smbolos mais belos da liberdade espiritual.

1983: A Pele da Aflio

(Incio do Governo de Raul Alfonsin)

Um ciclo de cultura autoritria pareceria que est se esgotando no pas. Seus traos so bem conhecidos. Esto definidos pela razo que d a fora e no pela fora que d a razo.

Para reinar como deseja, sua palavra exige silncio e submisso. No a a polmica. incapaz de conceber sua proposta como uma possibilidade entre outras. Ser apenas uma alternativa a desespera e humilha. Impaciente e sedenta de rigidez e verticalidade, reinvindica para si os ttulos apostlicos da verdade absoluta.

soberba, depreciativa, autosuficiente e arbitrria, e quando j conquistou o cetro no hesita em aplicar a represso onde no a querem ouvir, nem em recorrer ao assassinato quando intui sua segurana comprometida por aqueles que teimam em neg-la.

A cultura autoritria povoou os crceres e esvaziou as escolas. Multiplicou os cemitrios e exterminou os centros de trabalho. Encorajou o xodo, semeou a fome e espalhou o desespero e o ceticismo. Soube transformar o amor em dio e a f em ressentimento.

Como um eco terrvel e prolongado, a voz da cultura autoritria se difundiu pelas ruas da cidade deserta. Extasiada com a eficcia de seus recursos dissuasrios, demorou-se contemplando a desero da inteligncia nas casas de altos estudos e percorreu, de chicote na mo enluvada, as prateleiras vazias das bibliotecas.

Satisfeita, a cultura autoritria avaliou pormenorizadamente as seqelas da censura na opinio dos mais ousados; a espessura das formas do medo que sepultaram a vontade crtica; a densidade da descrena, o envilecimento de fbricas e campos; o deserto que cobria palmo a palmo o solo do pas.

Sob suas solas agonizavam numa mesma lama o criminoso, o operrio, o ladro, o estudante e o poeta. A cultura autoritria no hesitou em defini-los como diferentes expresses de uma mesma imundcie. Mltiplas cabeas de uma s e hbil hidra: a do comunismo internacional.

Sim, a cultura autoritria tem a razo que d a fora. Mas a fora, mais cedo ou mais tarde, morde com ferocidade a sua prpria cauda e sangra pela ferida inesperada e, no dizer do romancista, o patriarca ento se consome na agonia de seu prprio outono.

A cultura autoritria contempla hoje espantada o estilhaar da sua prpria imagem; cheira, perturbada, sua putrefao e no sabe que explicao lhe dar. Sua arrogncia lhe impediu crer que


suas contradies a devorariam, no entanto a devoram. Sua cegueira a levou a presumir que era o eixo da nacionalidade e descobriu, ao contrrio, que o vrtice de sua esterilidade mais pronunciada. Como Dorian Gray no momento derradeiro, reconheceu no retrato as marcas profundas de seu prprio envilecimento, quis negar o que via, investiu contra sua imagem de punhal na mo e acabou por afund-lo no seu prprio corao.

Filha de sua pobreza, a cultura autoritria esconde agora os farrapos de sua retrica com mos que denunciam sua misria, e cada um dos gestos com que tenta ocultar suas vergonhas no consegue seno ressalt-las.

Mais um ciclo de cultura autoritria pareceria estar se esgotando no pas. Mas aqueles que no a promovemos nem a apoiamos, temos as roupas rodas pela sujeira da convivncia a que ela nos forou. Temos respirado o ar ftido que expulsa dos seus pulmes. Temos bebido a gua suja dos seus arroios. No soubemos, no pudemos impedir que tanta imbecilidade e tanta mentira contaminassem nossa melhor vontade cvica e hoje comeamos a emergir do inferno doentes de desnimo, abatidos pela desorientao, com o olhar desorbitado dos loucos, dos torturados, dos famintos, dos solitrios e dos miserveis sobreviventes.

Com que mos construiremos a cultura da liberdade? No solo de que convices assentaro com firmeza nossos ps para erguer as paredes da casa em que deveramos viver?

Tremem as nossas mos de desconfiana. Medimos cada palavra. As janelas, dizem, comearo a se abrir. Mas ainda suspeitamos que h fuzis por trs de cada janela. Ser que a besta mudou de mscara? Que novas tragdias anuncia a apressada transformao do cenrio?

E os mortos? Onde esto os mortos? Ser que vamos continuar ouvindo mijar sobre seus tmulos? Quantos so os nomes dos homens truncados que hoje s so uma sombra na boca de uns poucos?

As velhas vozes da selvageria mudam a entonao, suavizam seu timbre, se afinam, pedem esquecimento. O esquecimento no se obtm com a aprovao de um decreto. Uma cultura sadia no pode esquecer seno quando, previamente, recuperou seus traumas com toda conscincia, para digerir, madura e vagarosamente, seus duros efeitos.

Se no h lcida superao da dor, esta dor acaba envenenando tudo. No podemos refundar a nao de costas sua runa. preciso olhar de frente as pedras queimadas, os nomes calcinados, os rostos da vileza, a saga atroz do terror e da tirania.

Ou no haver castigo? Ou os bares se retiraro para seus feudos apenas para restaurar o gume de suas espadas antes de nova investida ? Continuar sendo o pas bastio de cafajestes e demagogos? Mulher da vida do melhor pagador? Troo de carne disputada pelos colmilhos famintos da matilha?

Quem se animar , nesta terra, a conjugar o verbo pensar? Quem a propor e no a ordenar? Quem a ouvir e ceder a palavra em vez de amordaar e vociferar seu solilquio? Ainda haver stio para a cultura da liberdade?

Os dedos sensuais do poder percorrem de leve os rostos de seus novos cortejadores. Ainda no se detm em nenhum. Vo e vm; brincam com eles. Iludem, sugerem, insinuam mas ainda no se definem e enlouquecem de desejo a todos aqueles que se agrupam vidos perante a promessa de suas carcias.


H um homem, porm, que no est na fila de anelantes. Perdeu um emprego, um amigo no exlio, um filho na guerra. H tambm uma mulher que perdeu tudo isso e no est, porm, nessa fila de anelantes. E h uma moa e um moo que tambm perderam quase tanto como isso e que tambm no esto nessa fila de anelantes.

So argentinos. Tm a pele chagada pela amargura. Quem falar com eles sem t-lo em conta, no merece seno desprezo. Eles so a semente de uma cultura possvel. A raiz da liberdade necessria. So as entranhas do pas enganado e humilhado pelo autoritarismo.

Marcou-os o desespero mas esto vivos. Marcou-os a sujeio mas esto vivos. Viram suas faculdades transformadas em campos de extermnio intelectual. Viram seus lugares de trabalho transformados em salas de tortura econmica. Aprenderam, como a toupeira, a se mexer sem luz durante longo tempo mas com o fervor e a eficincia que nasce da boa memria e dos melhores ideais. Privados de voz e direito so - apesar de tudo isso e por tudo isso - o pas. A Argentina eventual da cultura em liberdade.

1996: A ditadura e o presente

No possvel ainda olhar para trs para falarmos do Processo - isto , da ltima ditadura militar argentina que semeou 30 mil mortos. Ainda muito cedo para estarmos certos de que o Processo faz parte exclusivamente de nosso ado. Na medida em que a agem para a vida democrtica lenta e hesitante, no podemos saber o que vai acontecer. Qual o poder de involuo que encerra o presente argentino.

Na orientao seguida por estes treze anos de vida constitucional iniciados em 1983 com o Governo de Raul Alfonsin, nada aconselha acreditar que estejam firmes, entre ns, as bases do projeto democrtico. O conceito de estabilidade se utiliza com frequncia para falar de economia, no de Lei. que ainda no findou na Argentina a transio total do Estado autoritrio para a Sociedade solidria. Poderia ser de outro modo? Poderamos estar j, aps treze anos, plenamente instalados na margem democrtica? claro que no, tendo em conta nossa histria. Mas a transparncia da orientao seguida em direo a essa margem democrtica, poderia ser j muito mais evidente, e no o . Da que, num sentido essencial, o Processo, sua viso das coisas, sua compreenso do pas, o preconceito profundo que ele representa, no tenha ficado para trs. E na medida em que no ficou para trs, ao relembrar os vinte anos ados desde 24 de maro de 1976, devemos olhar o que vai acontecendo e no s o que j aconteceu. Porque no que acontece sobrevive boa parte do que aconteceu.

Hoje na Argentina j no h mais desaparecidos. Mas h desempregados. A figura do desempregado, do homem para o qual no h lugar na sociedade produtiva, substituiu a figura do desaparecido, o homem para o qual no h lugar na sociedade jurdica. Um e outro so produto de uma exigncia de organizao. Organizao nacional, num caso, organizao econmica, no outro. Mas organizao, s vezes, tambm sinnimo de desprezo pela vida. De desconhecimento arrogante do valor sagrado da vida.

Em aspectos fundamentais no conseguimos ainda deixar de ser uma democracia de superfcie, frvola, irresponsvel. Uma democracia que no sente ainda visceralmente a necessidade de combater a subestimao do homem. E somos, por isso, uma democracia que est mais perto da simulao do que da autenticidade.


Como nos anos da ditadura, segue-se acreditando hoje, l onde o poder istrado, que a argentinidade atributo de poucos, que no pas sobra gente. Que a cultura no uma prioridade mas uma maquiagem. Tal como ento acontecia, entreter e distrair importam hoje mais do que educar, e o intercmbio de idias se v sepultado sob a guerra de consignas, da retrica do triunfalismo e da difamao do adversrio.

A nossa uma democracia em que os homens que governam importam mais do que as instituies que representam. Uma democracia na qual os homens governados importam menos como seres humanos que como cifras de estatstica.

Uma democracia mercantilizada no faz outra coisa do que pr preo s suas convices. Privando-as de substncia tica, enfraquece seu sentido mais e mais, at fazer delas s noes funcionais, puramente operativas. Mas nem tudo se compra. Nem tudo se vende. Nem tudo se soma, nem tudo se esquece.

A ditadura imps a convico de que o futuro do pas no exige idias mas obedincia servil. Ainda no chegamos a entender nem de longe at que ponto essa convico continua alicerada entre ns. Uma sociedade civilizada no uma sociedade obediente. uma sociedade responsvel. De homens que tm um profundo sentido da dignidade de seus prximos.

Os vinte anos ados desde aquele sombrio 24 de maro de 1976 em que os militares assaltaram o poder constitucional, no falam apenas de um ado concludo. Eles assinalam em direo a um presente intensamente problemtico. Que o pas j no seja um quartel no significa que seja uma nao. Uma nao , antes de mais nada, o fruto de uma grande conscincia tica e autocrtica; de um conceito de cultura que embora no esteja livre de preconceitos, luta contra os preconceitos que fazem parte de sua realidade. Uma nao fruto de uma conscincia aberta e engajada com a tarefa primordial de capitalizar o sofrimento padecido. O sofrimento no fica para trs quando ignorado e arquivado, mas quando tomado em conta para empreender a convivncia de outro modo que aquele que imps o terror. A arte, a cincia, a filosofia so e podem ser sempre manifestaes desse outro modo de conceber a convivncia na qual o preconceito matria de denncia e no s de obedincia.

Se queremos que a mentalidade da ditadura seja sepultada e superada, haver que transformar as condies sociais e culturais que a tornaram possvel. Haver que dignificar tudo o que o Processo subestimou e ignorou. E isso quer dizer justia independente, respeito, educao geral, direitos humanos.

Lembremos tudo o que ou desde um presente que nos mostra que o desprezo ainda subsiste. No lembremos para evocar; lembremos para reconhecer melhor o que nos acontece. Saibamos ver naquilo que nos acontece a triste herana do que nos aconteceu.

Sem valores espirituais no superaremos nunca a dissociao entre tica e eficcia que hoje afoga a nao. Sem esses valores espirituais, no superaremos nunca o temor de que o ado volte a ser o futuro.

Desfecho para um tempo de dilemas

Coube-nos presenciar e protagonizar, neste fim de sculo, um fenmeno de radicalidade inesperada: a queda do marxismo como prtica poltica na Europa de Leste. Trata-se, com efeito, de


um autntico acontecimento histrico. O fim do marxismo como modelo scio-econmico e poltico e as consequncias planetrias desse desmoronamento permitem reconhec-lo como um exemplo de indubitvel contemporaneidade.

A crise que hoje envolve o marxismo de modo to fundamental atinge, naquilo que nos importa, a viabilidade da concepo da histria como processo que responde a leis iniludveis, de frrea direo e consequncias que no podem ser contidas. A agonia de marxismo, parece-me, no seno a agonia da idia da histria como fatalidade; como demonstrao de um mandato cujo acatamento redunda, necessariamente, na instaurao da ditadura do proletariado e o fim da luta de classes. O messianismo poltico de inteno sistemtica e cientfica vive assim, no sculo XX e com a queda do marxismo europeu, a ltima de suas derrotas conhecidas.

Em ntima relao com essa derrota se pe em questo a concepo materialista dialtica dos processos sociais. A dialtica, cuja eficcia relativa na interpretao de tais processos seria absurdo desconhecer, no parece concitar j o consenso necessrio para que nela se siga vendo um modelo paradigmtico de pensamento.

Vinculado crise do marxismo como prtica poltica e enunciado terico, se encontra o fato de que, com a dissoluo do mundo comunista europeu, se impe reconsiderar a questo do outro, quer dizer, o problema da alteridade. Tradicionalmente, este problema, em poltica, est associado ao da identidade do adversrio e do inimigo. At onde se dirigir, aps a dissoluo do conflito desatado no Golfo Prsico, a necessidade de continuar concebendo o mundo no ocidental como um mundo hostil ao Ocidente, tal como at agora ocorria com a Europa de Leste?

Fala-se muito em nossos dias do fim das ideologias. Insiste-se por toda parte que as ideologias morreram. Creio que convm que sejamos cautelosos. A ideologia um critrio de compreenso, uma modalidade interpretativa assente em valores tidos como axiomticos. Que seus contedos mudem no implica que a necessidade de sua existncia tenha desaparecido. Interpretar a realidade ideologicamente significa entender que se dispe de uma perspectiva para a concepo dos fatos e das teorias cuja pressuposta consistncia induz a v-la como superior, em aparncia, a qualquer outra. mais do que razovel considerar que no se pode deixar de pensar e de atuar segundo uma escala de valores e interesses. Mas, ainda assim, mais do que razovel tambm afirmar que a necessidade de que esses valores e interesses revistam uma hegemonia universal constitui uma arbitrariedade e um perigo.

Nosso tempo no s vive a crise cultural desta luta entre quem predica o fim das ideologias e quem considera que essa prdica uma prova essencial de sua sobrevivncia. Nosso tempo vive tambm uma profunda crise resultante do que eu chamaria a reverso fundamental de uma situao muitas vezes milenria. Durante centenas de milhares de anos, o ser humano lutou energicamente para se garantir um lugar na natureza. Hoje deve lutar com igual intensidade para que a natureza encontre, em seu mundo tecnolgico, um lugar de subsistncia, um espao de preservao. A contaminao ambiental nascida da instrumentao cega do poder tecnolgico induziu, mesmo assim, a compreender melhor o alto grau de interdependncia existente entre o homem e o que, supostamente, no ele mesmo: neste caso, a natureza. Isso contribuiu, tambm, para que em amplos setores de nossas sociedades se acrescente o interesse concedido evidncia de que nem toda lei pode ser transgredida impunemente pelo af de domnio, pela sede de poder. O homem no s produtor de leis. , tambm, produto de uma legalidade que o transcende: a que faz dele um ser mortal e, por sua vez, somente vivel no mbito de uma interdependncia profunda, no apenas com seus semelhantes mas, tambm, com quem no o , quer dizer com todos aqueles e ainda com tudo aquilo que conforma o horizonte do que, sem ser ele mesmo, tem a ver com ele.


At h muito pouco tempo, a Terra esteve ameaada abertamente pela possibilidade de uma hecatombe nuclear. Seria ingnuo presumir que o carter velado que comea a tomar agora essa possibilidade implica que o risco desapareceu. Mas razovel pensar que a distenso Leste-Oeste, nascida da vertiginosa dissoluo do marxismo tradicionalmente entendido, contribuir a deslocar nossa ateno para novas perguntas.

Um dilema no menos relevante que os anteriores , na atualidade, o do conhecimento. A Idade Mdia viveu um perodo - o feudal - no qual a fragmentao territorial contrastava com a unidade infundida ao saber pela hegemonia do pensamento teolgico cristo. No nosso tempo, a fragmentao territorial foi amplamente superada. Tende-se, dia a dia, para uma maior interdependncia planetria. Mas, em compensao, o saber se fragmentou. E aqui onde pode se reconhecer a vigncia do preconceito em relao cultura. Subdividido em incontveis especialidades, o conhecimento pareceria ter perdido, neste sculo, a conscincia de sua essencial unidade, j que a unidade propriamente dita a perdeu faz muito. Como faremos para recuperar essa conscincia sem recair no verticalismo imposto pelas disciplinas que se querem "superiores"?

As naes da Amrica Latina ingressam no ltimo segmento do sculo XX enfrentadas a um dilema central: prximas do sculo XXI, seus problemas bsicos continuam sendo os do sculo XIX. Entendo que as democracias latino-americanas do presente vem ameaadas sua real representatividade e sua solidez efetiva pelo fantasma da dissociao entre a vigncia de uma vida constitucional sem fraturas e a postergao sine die da justia social. A contundncia do fracasso marxista na Europa prova que essa justia social no se atinge necessariamente prescindindo do desenvolvimento democrtico. A crise que implica o subdesenvolvimento em que nos encontramos imersos na Amrica Latina no menos rotunda que aquele fracasso e evidencia que o progresso indispensvel no ser consequncia direta da exclusiva prossecuo sem sobressaltos da vida constitucional. No suficiente a vontade popular para instaurar a democracia. Sem conscincia da interdependncia solidria no h autntica conscincia pessoal. E sem conscincia pessoal autntica no h responsabilidade cvica em termos democrticos.

Queria, finalmente, me referir ao que considero um dos deveres primordiais do intelectual num mbito scio-histrico como o latino-americano. Creio que uma das doenas espirituais de que continua padecendo a vida poltica continental o autoritarismo, a arraigada intolerncia ao debate, a repugnncia e o horror perante o valor relativo que possam revestir nossas convices e, em consequncia a necessidade de conceber toda instncia alternativa nossa como uma hostilidade, um perigo, uma ameaa mortal.

Entendo que quando um intelectual assume o compromisso da militncia partidria num contexto como o latino-americano, deveria se consagrar a fundo e antes de mais nada a combater o autoritarismo vigente em suas prprias filas, isto , tudo o que nelas compromete os alicerces da democracia. Se, pelo contrrio, privilegia o poder criador de suas idias para demonstrar que ao adversrio no lhe assiste a mais mnima parcela de razo nem o menor segmento de direito, far da inteligncia e da sensibilidade instrumentos ao servio da arbitrariedade do poder, e no da verdade.

Sei perfeitamente que entre poder e verdade no h nem haver nunca relaes pacficas. Mas, precisamente por isso, cabe empenhar-se em impedir que quem homologa sua voracidade de poder ao amor pela verdade seja o nico em tomar a palavra. No se trata, em nosso caso, de conseguir que a poltica se transforme num discurso e numa uma prtica sem impurezas. Trata-se de que essas impurezas no sejam esquecidas nem dissimuladas pela falta de escrpulos ou pelo cinismo que desembocam na impunidade.


Em portugus bastante claro, por supuesto

Julio Lerner: Como que voc chegou a dominar to bem o portugus, tendo nascido, se criado e vivido, praticamente toda a sua vida, ou parte significativa dela, em Buenos Aires?

Bem, aqui na primeira fileira est o responsvel do meu portugus, que meu pai. Ele foi transferido pela empresa onde ele trabalhava para c, para So Paulo, quando eu tinha quatorze anos, eu e meu irmo, que tambm est aqui. Os dois chegamos de Buenos Aires, ele com treze anos e eu com quatorze. No terceiro dia eu queria ir embora. Tinha muitas saudades de tudo. E o portugus era um problema muito srio porque a gente falava muito mal, muito mal, a gente sequer falava portunhol, falava espanhol mesmo. Agora, teve uma chance excelente para ns, eu jogava muito bem futebol, era um bom goleiro, e jogando futebol a gente no precisa falar muito, n? Eu consegui que meus companheiros de aula no ginsio me aceitassem como goleiro, porque o meu portugus era um desastre total, ento... comecei a jogar futebol, e pouco a pouco comecei a aprender o portugus. Pouco, realmente aos poucos. E o fato que agora eu tenho at sobrinhos brasileiros. Mas o portugus para mim no outra lngua, uma das maneiras em que me aconteceu a experincia do crescimento e do desenvolvimento da minha sensibilidade e da minha vida, da minha cultura, me formei aqui, fiz parte do ginsio e o colgio aqui.

Julio: Voc estudou em que colgio?

No Dante Aleghieri, no Colgio Dante Aleghieri. Depois quando eu fui embora para a Argentina, para fazer a faculdade, a comeou a saudade do portugus, e comecei a traduzir, para matar a saudade. E assim foi, como eu comecei o meu trabalho de difuso da literatura e do pensamento brasileiro. E agora estou aqui e estou l, nos dois pases e nas duas lnguas, sem dvida nenhuma. Eu acho que lngua estrangeira aquela na qual no aconteceu nada a gente. Quando a gente cresceu numa lngua, ela no mais estrangeira, ela indispensvel para se auto-reconhecer.

Julio: Voc traduziu para o espanhol algumas obra dificlimas, entre elas o "Morte e Vida Severina", do Joo Cabral de Mello Neto. Agora o que muito difcil imaginar como voc consegue verter para o espanhol um Joo Guimares Rosa. Como que voc consegue? Isso , num certo sentido, um "milagre".

um "milagre" que com uma grande dose de responsabilidade pode ser feito, n? Realmente, o que aconteceu foi que eu queria traduzir Tutamia. Eu me ofereci para uma editora argentina para traduzir Tutamia e pedi trs anos para fazer a traduo. O editor pensou que eu estava louco. "Como que voc vai levar trs anos para traduzir o livro, no mnimo, n?" Porque o problema fundamental na traduo a msica de uma lngua e de uma linguagem. como uma partitura, interpretar a melodia de uma linguagem fundamental, ento eu estudei muito essa linguagem, ouvia o tempo todo Guimares Rosa. Fazia gravao. Escutava o tempo todo. E quando o ritmo da sua lngua comeou a ser para mim um pouco mais familiar, a ento eu comecei o meu trabalho de traduo, mas levou quatro anos e meio, e no trs. Agora para quem ama uma lngua, a traduo uma experincia literria to importante quanto a criao dos prprios textos. No existe diferena nenhuma, entre o fato de traduzir uma obra, isto , de interpret-la, porque o trabalho de traduo um trabalho de interpretao, da mesma maneira que a gente fala: voc ouviu a quinta sinfonia de Beethoven, interpretada por quem? Depende de quem interpreta. Pois ento o trabalho do tradutor, de ouvidor.

Julio: Comeam a chegar as perguntas do pblico... Argentina, 30.000 desaparecidos. Brasil aproximadamente 400. possvel falar algo sobre isso?


possvel, sim. possvel, sinteticamente, possvel... O conceito de Estado na Argentina, um conceito sempre fraco. Ns amos da ausncia do Estado criao de um Estado paternalista na poca de Pron, e agora dissoluo do Estado em favor da privatizao. O nosso Estado atualmente no tem responsabilidade protagnica na produo da democracia. Ele tem responsabilidade na istrao econmica da privatizao. Temos uma democracia privatizadora. Em consequncia, essa irresponsabilidade profunda do Estado, que ou da inexistncia ao paternalismo, e do paternalismo diviso intensa das estruturas que do identidade institucional repblica, num pas onde a justia no existe institucionalmente, que est submetido, a justia est submetida ao legislativo e ao poder executivo. um pas que tem um profundo sentido da impunidade perante a lei. A impunidade um conceito muito importante. Um conceito segundo o qual o outro no existe. Vou explicar isso brevemente.

O governo militar argentino afirmava que os desaparecidos eram auto-excludos, eram um pessoal que tinha se banido da sociedade e no tinha sido eliminado pelo Estado. E o raciocnio tem a sua lgica, embora rejeitada por ns, ela deve ser ouvida, e simples. assim: o que um subversivo? um homem que existe margem da lei, isto , ele sai do campo da identidade cvica, ele se exclui da identidade cvica. Na medida em que ele a a ser um subversivo, ento a eliminao de um subversivo a eliminao de algum que j era ningum. uma redundncia. Eliminar um subversivo no eliminar algum, eliminar ningum. Ento o desaparecido, para muitas das autoridades do processo, foram aqueles homens que se auto-excluiam e depois desapareciam, sumiam. Mas sumiam a partir de uma deciso ontolgica, que era se colocar margem da lei. Qual lei?... Isto aqui no se discute. Eu acredito que embora possamos estabelecer relaes de parentesco entre os nossos pases, a diferena de quantidade entre 30.000 e 300 ou 400 desaparecidos, no sentido formal, tem que ser acrescentada essa diferena, essa diferena tem que ser vista meia luz. um fato fundamental na histria da Argentina, onde a justia no existe, na verdade, como elemento "fundacional" da democracia. O meu pas julgou aos chefes militares do processo, provou a sua responsabilidade e a sua culpa, e os deixou em liberdade. A lei no pode se cumprir. Quer dizer sob o ponto de vista dos fatos, a inexistncia da lei no nosso pas sempre esteve muito marcada, sempre foi um fato muito constante, e foi substituda pela autoridade do setor. No meu pas as Foras Armadas se definiram, no tempo do processo, como a reserva moral da nao. E essa mentalidade, acredito, tem a ver com a histria hispano-americana, que no sei se o Brasil teve, onde as Foras Armadas, embora tenham tido o papel que tiveram na ditadura, no chegaram a ser programaticamente sanguinrias, como foram na Argentina, porque no nosso esprito hispano-americano o banho de sangue purificador.

P: Gostaria que o Senhor comentasse a postura assumida perante a ditadura argentina por dois dos mais conhecidos escritores de seu pas: Ernesto Sbato e Jorge Lus Borges?

Foram posturas bem diferentes. Sbato foi desde o comeo, e antes ainda do processo militar, um homem politicamente muito comprometido. Ele lutou contra o peronismo, Borges padeceu o peronismo. So coisas diferentes. Borges padece o peronismo, Sbato luta contra o peronismo. Alm do mais, Borges sempre teve uma atitude muito tmida perante a ditadura, no comeo ele at se mostrou simpatizante dela e depois se arrependeu, mas no se pode dizer de Borges que tenha sido um homem a favor da ditadura. No foi no. Borges foi um homem que teve uma posio de recluso, procedente at em muitos aspectos, mas foi um homem que manifestou, por exemplo, na Guerra das Malvinas, da Argentina com a Gr-Bretanha, uma posio bem corajosa, bem clara. Mas civicamente falando, a posio de Ernesto Sbato no tem comparao. Ele para muitos de ns a representao mesmo da responsabilidade de um intelectual, para o qual a imaginao criadora um instrumento anti-totalitrio. Eu gostaria de dizer duas coisa a propsito disto. H uma incompatibilidade bsica entre a linguagem da arte e a linguagem da ditadura. A ditadura tem uma preocupao central que ser literal, ela no quer significar outra coisa com o que


diz, ela atribui sua linguagem uma literalidade total. Quando ela diz, por exemplo, que representa o cerne nacional, ela quer dizer isso. Isso a no um smbolo, no metfora. Isso a o cerne nacional. Mata-se em nome do cerne nacional. Reprime-se em nome do cerne nacional. A arte essencialmente metafrica e democrtica, porque a arte e a imaginao, a cincia, meu Deus, a cincia, a filosofia, so essencialmente democrticas, porque na medida em que elas empregam uma linguagem simblica e metafrica, elas esto afirmando que queiram dizer alguma coisa, aspiram dizer uma coisa. A arte exprime por aproximao, o pensamento totalitrio exprime por monoplio de sentido. Ele monopoliza o sentido, a arte sugere, o pensamento cientfico sugestivo, ele no diz o que as coisas so, ele sugere que poderiam ser de certa maneira. Agora, h ento incompatibilidade essencial entre a vigncia de uma ditadura e o desenvolvimento do pensamento cientfico criador, sob o ponto de vista das instituies do pas. Mas quando a ditadura se apossa de um pas, a arte, o pensamento e a criao, eles vivem na clandestinidade, eles vo alimentando uma exigncia de um esprito crtico que se desenvolve no que eu chamei, no seu momento, as catacumbas da cultura. Sbato representou isto.

P: Duas perguntas levantando praticamente o mesmo assunto. Seria de extrema pertinncia que voc elucidasse melhor as concluses que colhe do refluir das experincias marxistas do Leste Europeu. Outra: o senhor disse que a queda do Marxismo no Leste Europeu reflete o processo dialtico da histria. Qual o modelo de sociedade ser o seu sucessor? O processo de globalizao seria uma resposta?

H uma diferena muito interessante para a polmica, que alis eu acho que deveria ser aprofundada, que a seguinte: tem quem pensa que a queda do sistema comunista a queda do marxismo como teoria, e tem os que pensam que no, que o que caiu foi uma maneira de interpret-la. Essa posio tem os seus perigos, vejam vocs: se o platonismo no o pensamento do Plato, se o pensamento de Plato no o platonismo, se o sistema outra coisa que aquilo que levado prtica, evidentemente ele tem porvir. Se a realidade conceitual de uma teoria est sempre fora da experincia da prtica dessa teoria, ento ela no marxista, se marxista ela foi atingida pela sua crise. De qualquer maneira, eu, pelo menos, eu penso que o pensamento de Marx de jeito nenhum se esgota nessa experincia, como o pensamento de ningum se esgota numa experincia. Ele pode ser infinitamente reinterpretado, revalorizado, estudado. Mas isto fala das possibilidades que a teoria oferece interpretao. A experincia histrica reconhecida como marxista, enquanto ela se apresenta como marxista, quando ela cai, ela tem de deixar de ser marxista? No sei. Enquanto o futuro de um mundo onde no existe o comunismo, bem, o futuro onde no existe o comunismo esse capitalismo que estamos vendo a, a solidariedade do mercado. A inexistncia do valor pessoal, a intranscedncia da pessoa no um produto do comunismo, o produto de um capitalismo muito bem desenvolvido, isto , desenvolvido segundo os seus prprios fins, segundo os alvos que ele quer atingir. Ento, ns estamos numa sociedade onde a intranscedncia da pessoa no pode aparecer no primeiro plano do sistema, ela tem que aparecer relacionada com o inimigo. E quem o inimigo? preciso encontr-lo. O inimigo o mundo muulmano, o Ir, o Fundamentalismo, ele no inimigo? Claro que tambm ele , do capitalismo sem dvida nenhuma, do Ocidente tambm em muitos aspectos, mas o fundamental a figura do inimigo que preciso dela sempre mo, porque com ela a nossa pureza ideolgica pode ser melhor defendida. Essa luta contra o comunismo no foi ganha pelos direitos humanos, essa luta contra o comunismo fez mal ao comunismo, destruiu o comunismo, mas no favoreceu no sentido absoluto a democracia. O nico ponto que eu quero sublinhar, em relao s democracias, que me parece extraordinariamente importante, que as democracias so sistemas cientes da sua contradio, na medida em que elas podem ser espao de debate e enfrentamento, mas at um certo ponto, at o ponto em que o sistema o permite. De qualquer maneira, no podemos cair no maniquesmo de acreditar que o reverso de um mal um bem , o reverso do mal, tambm o mal, tambm o bem, e o desafio, para mim, mais importante que temos pela frente aceitar a complexidade de uma realidade que no vai a caminho da sua purificao


definitiva, mas a caminho da criao de contradies hoje inditas, hoje imprevisveis. Isso no quer dizer abolio do problemtico, progresso quer dizer criao de novos problemas.

P: Haveria alguma relao entre a colonizao hispnica e a portuguesa? Com a fragilidade democrtica reinante em nosso continente, qual seria?

Veja, relacionamentos devem haver. Tem que haver. Acredito que h relacionamentos. O que no devemos fazer cair numa colocao mecanicista, segundo a qual, se ns somos filhos de portugueses e espanhis, ento nossos pases fatalmente ho de ser decadentes. Porque ento deveramos pensar que os Estados Unidos, por serem descendentes de ingleses, conseguiram ser um imprio eficaz. No por isso que conseguiram. Na histria de nossos pases latino-americanos, a dificuldade para a transio vida democrtica viu-se tambm impelida pelo fato de que ns tentamos fazer uma transio muito retrica das estruturas coloniais s estruturas republicanas. Essa agem foi feita com uma grande velocidade, com uma grande irresponsabilidade e estamos tambm a pagar os preos prprios desta contradio nascida da velocidade com que os processos foram feitos, e do sentido retrico com que foram feitos. Mas no culpando o ado que ns vamos encontrar as razes dos nossos conflitos. Mas pensando um pouco mais qual concepo do ado e do presente ns temos, que elaborao temos feito da nossa histria, como que colocamos a questo do ado na reflexo do pensamento vivo do presente me parece que h relao, mas no h uma relao mecnica. Ns somos o que fizeram de ns. Somos o que fizemos com aquilo que fizeram de ns.

Julio: Voc poderia, por gentileza, dizer novemente essa ltima frase?

Eu acredito que ns no somos o que fizeram de ns, somos o que ns fazemos com o que fizeram de ns. Tenha certeza de que o destino que damos ao nosso condicionamento o que define uma cultura. o que a gente faz com aquilo que fizeram da gente. Eu no posso culpar meu pai e minha me de meus problemas. Sim, eu posso ver como eu trabalhei os problemas criados pela convivncia. Seno, h um conceito de inocncia muito infantil e muito pouco interessante, segundo o qual - se tivessem me deixado - eu teria sido livre.

P: Avalie as conseqncias do modelo noliberal na Argentina.

Vamos ser um pouco sintticos. Eu disse na minha palestra uma coisa na qual eu acredito profundamente. Esse modelo noliberal tem criado uma sociedade mais eficaz e menos tica. uma consequncia muito importante do conceito de democracia ao qual ns tivemos o com a queda da ditadura. A democracia se estruturou como um sistema ordenado, com um poder executivo que absorveu os outros dois, o judicirio e o legislativo, e que tem feito da populao do pas a expresso de um dilema que a ditadura no quis resolver, seno atravs da represso, e que foi colocado pela democracia, primeiramente, como um problema insolvel, por Raul Alfonsim, porque Alfonsim no queria eliminar toda essa populao de gente que trabalhava para o Estado, e que trabalhava num estado profundamente improdutivo, porque o Estado argentino, prvio a essa reforma iniciada agora pelo novo presidente, esse Estado argentino, intil, infrutfero, estril. Pois ento, acredito que o modelo triunfou tambm na Argentina, no s na Argentina, mas a caracterstica fundamental desse modelo a prescindibilidade da noo de pessoa. O conceito de pessoa que cai com a instalao desse modelo, e qual o ncleo, o mago desse conceito de pessoa? Pessoa sou eu e meu prximo, pessoa no sou eu. No meu relacionamento com o outro constituo uma pessoa. Eu sou meus vnculos, eu no sou eu sozinho, eu sou meus vnculos. Agora como o conceito de Estado na Argentina no depende da noo de vinculao, seno de negociao, evidente que o prximo a a ser no o que ele representa como pessoa, mas sim o que ele representa como capital. De maneira exclusiva, isto , dessa maneira e mais nada. A ento que o


modelo noliberal na Argentina, em certo sentido, continua trabalhando sob uma noo da pessoa como desaparecida, s que agora a justia legitima essa noo. possvel organizar o pas, se se produz a dissociao entre tica e eficcia, isto , se os resultados nada tem a ver com o problema do bem e do mal, da pessoa e do prximo.

P: Na Argentina existe algo parecido com a imagem de homem cordial, que existe no Brasil? Quais as consequncias disso no imaginrio do pas?

Hoje, no almoo com o Belisrio, com o Dalmo, o Julio e a Margarida Genevois, surgiu um esteritipo que foi lembrado, que o seguinte: no imaginrio argentino, o argentino homem uma pessoa que acredita que ningum gosta dele... J o brasileiro aquele que acha que todo mundo gosta dele! E essa idia exprime um pouco a existncia de outros esteretipos que so interessantes, segundo os quais podemos ver a identidade nacional. Para mim o mago do esteretipo argentino o autoritarismo. um povo que tem uma paixo pela violncia muito forte, muito forte, ns estivemos a ponto de "ganhar" uma guerra da Inglaterra, mas no sei o que aconteceu, mas estamos a, n?... O grau de veracidade que teve o fato de um enfrentamento militar com a Inglaterra como favorvel Argentina foi unnime. Essa guerra ganhamos, j tnhamos ganho uma, no sculo dezenove, agora amos ganhar mais outra... Teve um problema no meio com a OTAN, mais isso secundrio... Essa tendncia violncia, essa tendncia onipotncia, uma espcie de onipotncia muito grande, tem suas nuances, tem seus pontos fracos, e tem seus encantos tambm. Evidentemente ningum vive num pas em que s existe a violncia e ningum se sente representativo apenas da violncia no pas onde vive. O meu pas um pas com pessoas imensamente fraternais, cordiais, simpticas e com grande conscincia dos dilemas da Argentina, em termos de solidariedade, como qualquer pas. Ns tambm temos gente assim.

P: O Senhor poderia explicar melhor porque ainda no existe democracia na Argentina e tambm no Brasil, e explicar tambm melhor a comparao dos desaparecidos com os atuais desempregados?

A idia de uma certa continuidade. Como que, por exemplo, a Argentina ingressa na democracia, porque fracassa o modelo militar. O modelo militar no fracassa pela fora cvica que o enfrenta, fracassa devorado pelas suas prprias contradies. Foi a guerra com a Inglaterra que acabou com a possibilidade de um governo militar. Ele se enfraqueceu, esse governo, e cedeu, ofereceu o poder civilidade, em certas condies. A nossa democracia no foi conquistada com conscincia cvica ainda, porque as nossas instituies representativas no tem autonomia crtica para o exerccio das suas funes, elas esto submetidas ao poder executivo de uma maneira profundamente autoritria. Ento a transio vida democrtica no foi realizada em funo das instituies, mas sim em funo dos partidos e dos homens, das negociaes e no das instituies, e isso afetou profundamente a nossa democracia, que ela simulada. Em relao entre o ponto de convergncia entre desaparecidos e desempregados o seguinte, o desaparecido no tem identidade jurdica, ele no ningum perante a lei. No existe essa figura. Na medida em que o indulto foi legitimado pelos governos civis, a figura do desaparecido no tem existncia jurdica, no h ningum que o seja. O desempregado no existe tambm para o sistema, ele no produzido pela democracia. A democracia no tem a coragem de aceitar as contradies que ela gera, dizendo bem, aqui estamos com um estado que vai delegar as suas responsabilidades em instituies privadas, e o produto do desmantelamento de um estado sem consistncia e sem produtividade, necessariamente, o desemprego. No que estamos expulsando pessoas de um emprego produtivo, estamos expulsando pessoas de instituies que so fantasmas. Agora, at a, at podemos aceitar as coisas, a dissoluo de um estado improdutivo gera desemprego. Mas o desempregado, ele ou no produto da nao, ele ou no parte da realidade? O que quer dizer que ele no tenha futuro, o que quer dizer que ele de imediato vai ser a vtima, sempre a vtima., Quem o desempregado? No


o homem que tem poder, o homem que no representa nada. Ele no tem onde exprimir o seu protesto, ele vai sair rua e reprimido, como de fato reprimido, na Argentina pelo menos. Agora ele no pode ser incorporado pelo sistema, porque o sistema vai se estruturar com menos gente do que existe. Todo o dilema do meu pas foi sempre o seguinte: vamos organizar o sistema para trinta milhes de pessoas, ou vamos prescindir de dez milhes? Buenos Aires tem nove, a provncia de Buenos Aires tem doze, depois tem o resto. Ento, o problema fundamental que h uma desapario, um aniquilamento, uma destruio do direito do homem, que tem que desaparecer com o estado obsoleto, o estado que no presta, no s ele desaparece, com ele o empregado tambm, a pessoa, a pessoa desaparece como realidade. Ento nesse sentido uma continuao cultural, no conceito, justamente, preconceito, segundo o qual onde no est o poder, no h realidade.

P: O que voc acha do fato de suas obras serem traduzidas para vrias lnguas, menos o portugus? Diversos intelectuais brasileiros sofrem o mesmo problema. O que voc acha desse pequeno intercmbio cultural Brasil - Argentina?

Eu acho fundamental esse intercmbio. Eu acho importantssimo e pessoalmente comovente. Agora o fato de eu no ter sido traduzido para o portugus exprime por uma parte a conscincia crtica dos editores. Da outra parte, que eu ainda no tive sorte, mas eu vou ter. Eu vou ter.

Aproveito para agradecer ao secretrio Belisrio dos Santos Junior. E a Jlio Lerner e Margarida Genevois, organizadores desse simpsio to atual, pelo convite que me fizeram. Agradeo tambm a todos pela ateno. Muito obrigado.

Desde 1995 dhnet-br.diariodetocantins.com Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: [email protected] Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Not
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
Hist
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Mem
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multim