
Santiago Kovadloff
Professor,
ensasta, poeta e tradutor argentino.
1982:
As Mos do Medo
A
notcia se espalhou: batiam porta inesperadamente.
Anunciavam-se com autoritarismo enxuto. Apresentando-se
em grupos de quatro ou cinco enquanto seus caminhes
esperavam na rua, diziam procurar literatura proibida.
Tinham ordem de revisar as bibliotecas das casas, os armrios,
os pores. Quando encontravam obras proibidas ou proibveis
seqestravam-nas. E junto com as obras, seus leitores.
No queriam ouvir explicaes nem desculpas. Os
livros achados eram prova suficiente do delito.
O
temor se apoderou de todos. Era preciso destruir sem
hesitaes tudo quanto pudesse servir de pretexto
violncia. Enganava-se a maioria que presumia estar
salva por no guardar nas suas prateleiras materiais de
expressa orientao marxista. Igualmente perigosos,
segundo tudo o evidenciava,
eram - simplesmente pela sua linhagem-os
estudos sociolgicos, os tratados de filosofia poltica,
as monografias histrico-econmicas sobre o incerto
desenvolvimento continental, os documentos eclesisticos
que impugnavam a injustia social ou as inclemncias
do totalitarismo e as obras polticas de qualquer
orientao partidria que denunciassem a vigncia de
critrios colonialistas nas relaes impostas pelas
potncias ocidentais s naes submetidas da Amrica
Latina.
Qualquer
variante contida nesse leque temtico era suficiente
para qualquer pessoa ficar exposta priso imediata.
No havia, portanto, tempo a perder: era imprescindvel
varrer as prateleiras de riscos eventuais.
O
medo cumpriu sua tarefa. Rapidamente o desespero
deslocou a prudncia e o ltimo indcio
de sensatez se evaporou sob a coero duma rgida
autocensura. Com o corao carregado de angstia se
iniciou ento o penoso ritual da vergonha. No meio da
noite ou luz do dia, desmanchamos nossas bibliotecas.
Sem nos olharmos de frente, de costas para nossos
filhos, fizemos pedaos dezenas de ensaios, romances,
biografias, contos e poemas onde pudesse assomar o menor
indcio de conscincia social ou inquietao poltica.
Aos nossos ps, como cinzas de um tempo melhor, iam-se
acumulando as que um dia tinham sido pginas queridas,
pargrafos que sublinhamos com fervor, conceitos e
imagens que tinham contribudo nossa formao, ao
desdobramento de nossa sensibilidade, ao fortalecimento
de nossa inteligncia e do nosso amor liberdade na
luta contra o preconceito. Nada nos detinha. O eco de
qualquer o na madrugada era o eco de seus os. O
silncio mais denso ocultava a ameaa mais angustiante
e o horror da opresso se respirava sem esforo e sem
pausa. Os que tinham sido livros j no eram
seno pedaos de papel. E esses pedaos de
papel se transformaram em lixo, e o lixo literrio
ardeu nas chamas de nossos jardins, nos depsitos de
nossos incineradores, dentro dos nossos
banheiros, quando no foram sepultados na terra, longe
de nossos lares.
Uma
penosa cumplicidade cresceu entre ns: nos irmanava a
humilhao de termos queimado nossos livros. No
hesitvamos porm em nos auto-justificar. Que
podamos ter feito seno fazer o que fizemos?
Os anos 70 se esgotavam
num mar de barbrie, de terror e de
incertezas. A vida de um homem voltava, como em tempos
remotos, a no valer quase nada; e a de um leitor
suspeito, simplesmente nada. Era intil se arriscar a
morrer pela preservao dos livros que amvamos e
asfixiante viver num pas que aconselhava queim-los.
Mas desse pas tambm formava parte outra dimenso de
ns, j que no s ramos os destruidores de seus
livros; ramos, tambm, as testemunhas do que
acontecia e do que fazamos, e em relao ao futuro
ramos a memria possvel das grandes lies democrticas
aprendidas nas pginas que tinham ardido. Por isso no
hesitamos: o cenrio devia estar preparado para quando
eles chegassem. No devia haver um nico indcio que
delatasse vocao republicana, irao pelo estado
de direito, paixo pelo estudo crtico de nossa
realidade, conscincia da represso.
O
mais insignificante desses indcios seria, aos olhos de
nossos inquisidores, sinal de desobedincia. Esses
olhos no deviam se confrontar com nada que os
irritasse. Deviam deslizar atravs dos ttulos de
nossas bibliotecas com a secreta complacncia de quem
se sabe obedecido e verifica a radicalidade
da sujeio obtida. Inclusive as prateleiras demasiado
cheias podiam
resultar suspeitosas. J no importava o que
contivessem. O risco consistia, simplesmente, em que as
vissem lotadas de livros. No faltou, por isso, quem
reduzisse rpida e indiscriminadamente seu patrimnio
bibliogrfico, seguindo neste caso, um critrio
primordialmente, quantitativo. Nenhum sintoma - foi a
concluso - resultaria mais revelador da boa sade cvica
exigida pela circunstncias do que uma biblioteca
esvaziada.
No
faltou porm quem resistisse ao padecimento ivo dessa investida irracional
que forava ao extermnio dos livros. E preferiu ocult-los
a destru-los. Pensou que certos danos morais so
irreversveis. Os volumes queimados bem
poderiam, num futuro, se repor. Mas os homens que os
queimavam, poderiam se repor?
Para muitos que pensaram que no, o perigo que
ameaava era, portanto, duplo: se no ocultavam sua
paixo pelo pensamento, corriam o risco
de desaparecer para sempre, arbitrariamente
identificados com os porta-vozes do
terrorismo de esquerda graas a essa trgica premissa
da lgica do preconceito totalitrio, segundo a qual o
niilismo antiocidental e o amor ao conhecimento so sinnimos.
Por outro lado, se destruiam seus livros
convertiam-se perante si prprios no s em cmplices
da sem-razo mas em brbaros a quem a conscincia da
prpria vileza no perdoaria jamais. Optaram, ento,
por partir
com seus livros para outros stios: longe de suas
casas, longe de suas cidades, longe de suas provncias,
longe de seu pas. Porque tambm se emigrou para
continuar lendo autntica literatura. Essa literatura
que concebe a histria como estmulo criao
constante, como tarefa sempre incumprida que nos impe
a necessidade de uma viglia crtica indeclinvel
para evitar que a lei - sem a qual no podemos viver -
se transforme no dogma que no nos deixa viver. Essa
literatura, em sntese, assentada na convico de que
sem cultura pode haver demografia mas no cidadania.
Nasceram
desta feita autnticas bibliotecas
subterrneas. Elas preservaram das chamas obras
que hoje demonstram a versatilidade e a riqueza dos
interesses intelectuais dos argentinos, tanto como a j
ada solidez de uma indstria editorial que
foi paradigmtica na Amrica Latina e cujos ttulos,
por outro lado, fariam sorrir qualquer desprevenido se
soubesse que por t-los incorporados
numa prateleira poderia ter ido para a cadeia, ou
sala de torturas.
A
curiosidade de muitos freqentadores de livrarias no
resiste hoje emoo quando, em alguma mesa de
saldos, esbarra inesperadamente com um volume familiar.
As mos o tomam, acariciam sua lombada; os olhos
percebem o leve verniz amarelado que enobrece as margens
de suas pginas e ento,
num susssurro doloroso, cada um desses leitores
se diz: "Eu queimei um exemplar desse livro".
Hoje
sabemos to bem como ento, naqueles dias ainda no
longnquos, centenas de ns fomos cmplices
daqueles que desencadearam essa onda de barbrie. No
quisemos contribuir ao extermnio de nossa gerao
nos arriscando a morrer pelos nossos livros e tenho
certeza que fizemos bem. Mas j hora de verificar se
somos capazes de viver em consonncia com os ideais
democrticos que esses livros queimados nos ajudaram a
forjar. O amadurecimento desses ideais exige uma
radical autocrtica de todos ns. No creio que
possamos lhes render melhor homenagem pstuma. Nem que
haja maneira
mais adequada de evitar aos nossos filhos que amanh
suas prprias crianas devam se levantar noite para
destroar, com as mos do medo, os smbolos mais
belos da liberdade espiritual.
1983:
A Pele da Aflio
(Incio
do Governo de Raul Alfonsin)
Um
ciclo de cultura autoritria pareceria que
est se esgotando
no pas. Seus traos so bem conhecidos. Esto
definidos pela razo que d a fora e no pela fora
que d a razo.
Para
reinar como deseja, sua palavra exige silncio e
submisso. No a a polmica. incapaz de
conceber sua proposta como uma possibilidade entre
outras. Ser
apenas uma alternativa a desespera e humilha. Impaciente
e sedenta de rigidez e verticalidade, reinvindica para
si os ttulos apostlicos da verdade absoluta.
soberba, depreciativa, autosuficiente e arbitrria, e
quando j conquistou o cetro no hesita em aplicar a
represso onde no a querem ouvir, nem em recorrer ao
assassinato quando intui sua segurana comprometida por
aqueles que teimam em neg-la.
A
cultura autoritria povoou os crceres e esvaziou as
escolas. Multiplicou os cemitrios e exterminou os
centros de trabalho. Encorajou o xodo, semeou a fome e
espalhou o desespero e o ceticismo. Soube transformar o
amor em dio e a f em ressentimento.
Como
um eco terrvel e prolongado, a voz da cultura autoritria
se difundiu pelas ruas da cidade deserta. Extasiada com
a eficcia de seus recursos dissuasrios, demorou-se
contemplando a desero da inteligncia nas casas
de altos estudos e percorreu, de chicote na mo
enluvada, as prateleiras vazias das bibliotecas.
Satisfeita,
a cultura autoritria avaliou pormenorizadamente as seqelas
da censura na opinio dos mais ousados; a espessura das
formas do medo que sepultaram a vontade crtica; a
densidade da descrena, o envilecimento de fbricas e
campos; o deserto que cobria palmo a palmo o solo do pas.
Sob
suas solas agonizavam
numa mesma lama o criminoso, o operrio, o ladro, o
estudante e o poeta. A cultura autoritria no hesitou
em defini-los como diferentes expresses de uma mesma
imundcie. Mltiplas
cabeas de uma s e hbil hidra: a do comunismo
internacional.
Sim,
a cultura autoritria tem a razo que d a fora.
Mas a fora, mais cedo ou mais tarde,
morde com ferocidade a sua prpria cauda e
sangra pela ferida inesperada e, no dizer do romancista,
o patriarca ento se consome na agonia de seu prprio
outono.
A
cultura autoritria contempla hoje espantada o estilhaar
da sua prpria imagem; cheira, perturbada, sua putrefao
e no sabe que explicao lhe dar. Sua arrogncia
lhe impediu crer que
suas
contradies a devorariam, no entanto a devoram. Sua
cegueira a levou a presumir que era o eixo da
nacionalidade e descobriu, ao contrrio, que o vrtice
de sua esterilidade mais pronunciada. Como Dorian Gray
no momento derradeiro, reconheceu no retrato as marcas
profundas de seu prprio envilecimento, quis negar o
que via, investiu contra sua imagem de punhal na mo e
acabou por afund-lo no seu prprio corao.
Filha
de sua pobreza, a cultura autoritria esconde agora os
farrapos de sua retrica com mos que denunciam sua
misria, e cada um dos gestos com que tenta ocultar
suas vergonhas no consegue seno ressalt-las.
Mais
um ciclo de cultura autoritria pareceria estar se
esgotando no pas. Mas aqueles que no a promovemos
nem a apoiamos, temos as roupas rodas pela sujeira da
convivncia a que ela nos forou. Temos respirado o ar
ftido que expulsa dos seus pulmes. Temos bebido a gua
suja dos seus arroios. No soubemos, no pudemos
impedir que tanta imbecilidade e tanta mentira
contaminassem nossa melhor vontade cvica e hoje comeamos
a emergir do inferno doentes de desnimo, abatidos pela
desorientao, com o olhar desorbitado dos loucos, dos
torturados, dos famintos, dos solitrios e dos miserveis
sobreviventes.
Com
que mos construiremos a cultura da liberdade?
No solo de que convices
assentaro com firmeza nossos ps para erguer
as paredes da casa em que deveramos viver?
Tremem
as nossas mos de desconfiana. Medimos cada palavra.
As janelas, dizem, comearo a se abrir. Mas ainda
suspeitamos que h fuzis por trs de cada janela. Ser
que a besta mudou de mscara? Que novas tragdias
anuncia a apressada transformao do cenrio?
E
os mortos? Onde esto os mortos? Ser que vamos
continuar ouvindo mijar sobre seus tmulos? Quantos so
os nomes dos homens truncados que hoje s so uma
sombra na boca de uns poucos?
As
velhas vozes da selvageria mudam a entonao, suavizam
seu timbre, se afinam, pedem esquecimento. O
esquecimento no se obtm com a aprovao de um
decreto. Uma cultura sadia no pode esquecer seno
quando, previamente, recuperou seus
traumas com toda conscincia, para digerir,
madura e vagarosamente, seus duros efeitos.
Se
no h lcida superao da dor, esta dor acaba
envenenando tudo. No podemos refundar a nao de
costas sua runa. preciso olhar de frente as
pedras queimadas, os nomes calcinados, os rostos da
vileza, a saga atroz do terror e da tirania.
Ou
no haver castigo? Ou os bares se retiraro para
seus feudos apenas para restaurar o gume de suas
espadas antes de nova investida ? Continuar
sendo
o pas bastio de cafajestes e demagogos?
Mulher da vida do melhor pagador?
Troo de carne disputada pelos colmilhos
famintos da matilha?
Quem
se animar , nesta terra,
a conjugar o verbo pensar? Quem a propor e no a
ordenar? Quem a ouvir e ceder a palavra em vez de amordaar
e vociferar seu solilquio? Ainda haver stio para a
cultura da liberdade?
Os
dedos sensuais do poder percorrem de leve os rostos de
seus novos cortejadores. Ainda no se detm em nenhum.
Vo e vm; brincam com eles. Iludem, sugerem, insinuam
mas ainda no se definem e enlouquecem de desejo a
todos aqueles que se agrupam vidos perante a
promessa de suas carcias.
H
um homem, porm, que no est na fila de anelantes.
Perdeu um emprego, um amigo no exlio, um filho na
guerra. H tambm uma mulher que perdeu tudo isso e no
est, porm, nessa fila de anelantes. E h uma moa
e um moo
que tambm perderam quase tanto como isso e que
tambm no esto nessa fila de anelantes.
So
argentinos. Tm a pele chagada pela amargura. Quem
falar com eles sem t-lo em conta, no merece seno
desprezo. Eles so a semente de uma cultura possvel.
A raiz da liberdade necessria. So as entranhas do pas
enganado e humilhado pelo autoritarismo.
Marcou-os
o desespero mas esto vivos. Marcou-os a sujeio mas
esto vivos. Viram suas faculdades transformadas
em campos de extermnio intelectual. Viram seus
lugares de trabalho transformados em salas de tortura
econmica. Aprenderam, como a toupeira, a se mexer sem
luz durante longo tempo mas com o fervor e a eficincia
que nasce da boa memria e dos melhores ideais.
Privados de voz e direito so
- apesar de tudo isso e por tudo isso - o pas.
A
Argentina eventual da cultura em liberdade.
1996:
A ditadura e o presente
No
possvel ainda olhar para trs para falarmos do Processo
- isto , da ltima ditadura militar argentina que
semeou 30 mil mortos.
Ainda muito cedo para estarmos certos de
que o Processo faz parte exclusivamente de nosso
ado. Na medida em que a agem para a vida democrtica
lenta e hesitante, no podemos saber o que vai
acontecer. Qual
o poder de involuo que encerra o presente
argentino.
Na
orientao seguida por estes treze anos de vida
constitucional iniciados em 1983 com o Governo de Raul
Alfonsin, nada aconselha acreditar que estejam firmes,
entre ns, as bases do projeto democrtico. O conceito
de estabilidade se utiliza com frequncia para
falar de economia, no de Lei. que ainda no findou
na Argentina a transio total do Estado autoritrio
para a Sociedade solidria. Poderia ser de outro modo?
Poderamos estar j, aps treze anos, plenamente
instalados na margem democrtica?
claro que no, tendo em conta nossa histria.
Mas a transparncia da orientao seguida em direo
a essa margem democrtica, poderia ser j muito mais
evidente, e no o . Da que, num sentido essencial,
o Processo, sua viso das coisas, sua compreenso
do pas, o preconceito profundo que ele representa, no
tenha ficado
para trs. E na medida em que no ficou para trs,
ao relembrar os vinte anos ados desde
24 de maro de 1976, devemos olhar o que vai
acontecendo e no s o que j aconteceu. Porque no
que acontece sobrevive boa parte do que aconteceu.
Hoje
na Argentina j no h mais desaparecidos. Mas h
desempregados. A figura do desempregado, do homem para o
qual no h lugar na sociedade produtiva, substituiu a
figura do desaparecido, o homem para o qual no h
lugar na sociedade jurdica. Um e outro so produto de
uma exigncia de organizao. Organizao nacional,
num caso, organizao econmica, no outro. Mas organizao,
s vezes, tambm sinnimo de desprezo pela vida.
De
desconhecimento arrogante do valor sagrado da
vida.
Em
aspectos fundamentais no conseguimos ainda deixar de
ser uma democracia de superfcie, frvola, irresponsvel.
Uma democracia que no sente ainda visceralmente a
necessidade de combater a subestimao do homem. E
somos, por isso, uma democracia que est mais perto da
simulao do que da autenticidade.
Como
nos anos da ditadura, segue-se acreditando hoje, l
onde
o poder istrado, que a argentinidade
atributo de poucos, que no pas sobra gente.
Que a cultura no uma prioridade mas uma
maquiagem.
Tal como ento acontecia, entreter e distrair
importam hoje mais do que educar, e o intercmbio de idias
se v sepultado sob a guerra de consignas,
da retrica do triunfalismo e da difamao do
adversrio.
A
nossa uma democracia em que os homens que governam
importam mais
do que as instituies que representam. Uma
democracia na qual os homens governados importam menos
como seres humanos que como cifras de estatstica.
Uma
democracia mercantilizada no faz outra coisa do que pr
preo s suas convices. Privando-as de substncia
tica, enfraquece seu sentido mais e mais, at fazer
delas s noes funcionais, puramente operativas. Mas
nem tudo se compra.
Nem tudo se vende.
Nem tudo se soma, nem tudo se esquece.
A
ditadura imps a convico de que o futuro do pas no
exige idias mas obedincia servil. Ainda no
chegamos a entender nem de longe at que ponto essa
convico continua alicerada entre ns.
Uma sociedade civilizada no uma sociedade
obediente. uma sociedade responsvel. De homens que
tm um profundo sentido da dignidade de seus prximos.
Os
vinte anos ados desde aquele sombrio 24 de maro de
1976 em que os militares assaltaram o poder
constitucional, no falam apenas de um ado concludo.
Eles assinalam em direo a um presente
intensamente problemtico. Que o pas j no
seja um quartel no significa que seja uma nao. Uma
nao , antes de mais nada, o fruto de uma grande
conscincia tica e autocrtica; de um conceito de
cultura que embora no esteja livre de preconceitos,
luta contra os preconceitos que fazem parte de sua
realidade. Uma nao fruto de uma conscincia
aberta e engajada com a tarefa primordial de capitalizar
o sofrimento padecido. O sofrimento no fica para trs
quando ignorado e arquivado, mas quando tomado em
conta para empreender a convivncia
de outro modo que aquele que imps o terror. A
arte, a cincia, a filosofia so e podem ser sempre
manifestaes desse outro modo de conceber a convivncia
na qual o preconceito matria de denncia e no s
de obedincia.
Se
queremos que a mentalidade da ditadura seja sepultada e
superada, haver que transformar as condies sociais
e culturais que a tornaram possvel.
Haver que dignificar tudo o que o Processo
subestimou e ignorou. E isso quer dizer justia
independente, respeito, educao geral, direitos
humanos.
Lembremos
tudo o que ou desde um presente que nos mostra que o
desprezo ainda subsiste. No lembremos para evocar;
lembremos para reconhecer melhor o que nos acontece.
Saibamos
ver naquilo que nos acontece a triste herana do
que nos aconteceu.
Sem
valores espirituais no superaremos nunca a dissociao
entre tica e eficcia que hoje afoga a nao. Sem
esses valores espirituais, no superaremos nunca o
temor de que o ado volte a ser o futuro.
Desfecho
para um tempo de dilemas
Coube-nos
presenciar e protagonizar, neste fim de sculo, um fenmeno
de radicalidade inesperada: a queda do marxismo como prtica
poltica na Europa de Leste.
Trata-se, com efeito, de
um
autntico acontecimento histrico.
O fim do marxismo como modelo scio-econmico e
poltico e as consequncias planetrias desse
desmoronamento permitem reconhec-lo como um exemplo de
indubitvel contemporaneidade.
A
crise que hoje envolve o marxismo de modo to
fundamental atinge, naquilo que nos importa, a
viabilidade da concepo da histria como processo
que responde a leis iniludveis, de frrea direo e
consequncias que no podem ser contidas.
A agonia de marxismo, parece-me, no seno a
agonia da idia da histria como fatalidade; como
demonstrao de um mandato cujo acatamento redunda,
necessariamente, na instaurao da ditadura do
proletariado e o fim da luta de classes. O messianismo
poltico de inteno sistemtica e cientfica vive
assim, no sculo XX
e com a queda do marxismo europeu, a ltima de
suas derrotas conhecidas.
Em
ntima relao com essa derrota se pe em questo a
concepo materialista dialtica dos processos
sociais.
A dialtica, cuja eficcia relativa na
interpretao de tais processos seria absurdo
desconhecer, no
parece concitar j o consenso necessrio para
que nela se siga vendo um modelo paradigmtico de
pensamento.
Vinculado
crise do marxismo como prtica poltica e enunciado
terico, se encontra o fato de que, com a dissoluo
do mundo comunista europeu, se impe reconsiderar a
questo do outro, quer dizer, o problema da alteridade.
Tradicionalmente, este problema, em poltica, est
associado ao da identidade do adversrio e do inimigo.
At onde se dirigir, aps a dissoluo do conflito
desatado no
Golfo Prsico, a necessidade de continuar
concebendo o mundo no ocidental como um mundo hostil
ao Ocidente, tal como at agora ocorria com a Europa de
Leste?
Fala-se
muito em nossos dias do fim das ideologias.
Insiste-se por toda parte
que as ideologias morreram.
Creio que convm que sejamos cautelosos.
A ideologia um critrio de compreenso, uma
modalidade interpretativa assente
em valores tidos como axiomticos.
Que seus contedos mudem no implica que a
necessidade de sua existncia tenha desaparecido.
Interpretar a realidade ideologicamente significa
entender que se dispe de uma perspectiva para a concepo
dos fatos e das teorias cuja pressuposta consistncia
induz a v-la como superior, em aparncia, a qualquer
outra.
mais do que razovel considerar que no se
pode deixar de pensar e de atuar segundo uma escala de
valores e interesses.
Mas, ainda assim, mais do que razovel tambm
afirmar que a necessidade de que esses valores e
interesses revistam uma hegemonia universal constitui
uma arbitrariedade e um perigo.
Nosso
tempo no s vive a crise cultural desta luta entre
quem predica o fim das ideologias e quem considera que
essa prdica uma prova essencial de sua sobrevivncia.
Nosso tempo vive tambm uma profunda crise
resultante do que eu chamaria a reverso fundamental de
uma situao muitas vezes milenria. Durante centenas
de milhares de anos, o ser humano lutou energicamente
para se garantir um lugar na natureza. Hoje deve lutar com igual intensidade para que a natureza
encontre, em seu mundo tecnolgico, um lugar de subsistncia,
um espao de preservao.
A contaminao ambiental nascida da instrumentao
cega do poder tecnolgico induziu, mesmo assim, a
compreender melhor o alto grau de interdependncia
existente entre o homem e o que, supostamente, no
ele mesmo: neste caso, a natureza. Isso contribuiu, tambm,
para que em amplos setores de nossas sociedades
se acrescente o interesse concedido evidncia de que
nem toda lei pode ser transgredida impunemente pelo af
de domnio, pela sede de poder. O homem no s
produtor de leis. ,
tambm, produto de uma legalidade que o transcende: a
que faz dele um ser mortal e, por sua vez, somente vivel
no mbito de uma interdependncia
profunda, no apenas com seus semelhantes mas,
tambm, com quem no o , quer dizer com todos
aqueles e ainda com tudo aquilo que conforma o horizonte
do que, sem ser ele mesmo, tem a ver com ele.
At
h muito pouco tempo, a Terra esteve ameaada
abertamente pela possibilidade de uma hecatombe nuclear.
Seria ingnuo presumir que o carter velado que
comea a tomar agora essa possibilidade implica que o
risco desapareceu.
Mas razovel pensar que a distenso
Leste-Oeste, nascida da vertiginosa dissoluo do
marxismo tradicionalmente entendido, contribuir a
deslocar nossa ateno para novas perguntas.
Um
dilema no menos relevante que os anteriores , na
atualidade, o do conhecimento. A Idade Mdia viveu um
perodo - o feudal - no qual a fragmentao
territorial contrastava com a unidade infundida ao saber
pela hegemonia do pensamento teolgico cristo.
No nosso tempo, a fragmentao territorial foi
amplamente superada. Tende-se, dia a dia, para uma
maior interdependncia planetria. Mas, em compensao,
o saber se fragmentou. E
aqui onde pode se reconhecer a vigncia do
preconceito em relao cultura. Subdividido em
incontveis especialidades, o conhecimento pareceria
ter perdido, neste sculo, a conscincia de sua
essencial unidade, j que a unidade propriamente dita a
perdeu faz muito. Como faremos para recuperar essa
conscincia sem recair no verticalismo imposto pelas
disciplinas que se querem "superiores"?
As
naes da Amrica Latina ingressam no ltimo
segmento do sculo XX enfrentadas a um dilema central:
prximas do sculo XXI, seus problemas bsicos
continuam sendo os do sculo XIX. Entendo que as
democracias latino-americanas do presente vem ameaadas
sua real representatividade e sua solidez efetiva pelo
fantasma da dissociao entre a vigncia de uma vida
constitucional sem fraturas e a postergao sine
die da justia social.
A contundncia do fracasso marxista na Europa
prova que essa justia social no se atinge
necessariamente prescindindo do desenvolvimento democrtico.
A crise que implica o subdesenvolvimento em que nos
encontramos imersos na Amrica Latina no menos
rotunda que aquele fracasso e evidencia que o progresso
indispensvel no ser consequncia direta da
exclusiva prossecuo sem sobressaltos da vida
constitucional. No
suficiente a vontade popular para instaurar a
democracia. Sem
conscincia da interdependncia solidria no h
autntica conscincia pessoal. E sem conscincia
pessoal autntica no h responsabilidade cvica em
termos democrticos.
Queria,
finalmente, me referir ao que considero um dos deveres
primordiais do intelectual num
mbito scio-histrico como o
latino-americano. Creio
que uma das doenas espirituais de que continua
padecendo a vida poltica continental o
autoritarismo, a arraigada intolerncia ao debate, a
repugnncia e o horror perante o valor relativo que
possam revestir nossas convices e, em consequncia
a necessidade de conceber toda instncia alternativa
nossa como uma hostilidade, um perigo, uma ameaa
mortal.
Entendo
que quando um intelectual assume o compromisso da
militncia partidria num
contexto como o latino-americano, deveria se
consagrar a fundo e antes de mais nada a combater o
autoritarismo vigente em suas prprias filas, isto ,
tudo o que nelas compromete
os alicerces da democracia.
Se, pelo contrrio, privilegia o poder criador
de suas idias para demonstrar que ao adversrio no
lhe assiste a mais mnima parcela de razo nem o menor
segmento de direito, far da inteligncia e da
sensibilidade instrumentos ao servio da arbitrariedade
do poder, e no da verdade.
Sei
perfeitamente que entre poder e verdade no h nem
haver nunca relaes pacficas.
Mas, precisamente por isso, cabe empenhar-se em
impedir que quem homologa sua voracidade de poder ao
amor pela verdade seja o nico em tomar a palavra.
No se trata, em nosso caso, de conseguir que a
poltica se transforme num discurso e numa uma prtica
sem impurezas. Trata-se de que essas impurezas no
sejam esquecidas nem dissimuladas pela falta de escrpulos
ou pelo cinismo que desembocam na
impunidade.
Em
portugus bastante claro, por supuesto
Julio
Lerner: Como que voc chegou a dominar to bem o
portugus, tendo nascido, se criado e vivido,
praticamente toda a sua vida, ou parte significativa
dela, em Buenos Aires?
Bem,
aqui na primeira fileira est o responsvel do meu
portugus, que meu pai. Ele foi transferido pela
empresa onde ele trabalhava para c, para So Paulo,
quando eu tinha quatorze anos, eu e meu irmo, que tambm
est aqui. Os dois chegamos de Buenos Aires, ele com
treze anos e eu com quatorze. No terceiro dia eu queria
ir embora. Tinha muitas saudades de tudo. E o portugus
era um problema muito srio porque a gente falava muito
mal, muito mal, a gente sequer falava portunhol, falava
espanhol mesmo. Agora, teve uma chance excelente para ns,
eu jogava muito bem futebol, era um bom goleiro, e
jogando futebol a gente no precisa falar muito, n?
Eu consegui que meus companheiros de aula no ginsio me
aceitassem como goleiro, porque o meu portugus era um
desastre total, ento... comecei a jogar futebol, e
pouco a pouco comecei a aprender o portugus. Pouco,
realmente aos poucos. E o fato que agora eu tenho at
sobrinhos brasileiros. Mas o portugus para mim no
outra lngua, uma das maneiras em que me aconteceu a
experincia do crescimento e do desenvolvimento da
minha sensibilidade e da minha vida, da minha
cultura, me formei aqui, fiz parte do ginsio e o colgio
aqui.
Julio:
Voc estudou em que colgio?
No
Dante Aleghieri, no Colgio Dante Aleghieri. Depois
quando eu fui embora para a Argentina, para fazer a
faculdade, a comeou a saudade do portugus, e
comecei a traduzir, para matar a saudade. E assim foi,
como eu comecei o meu trabalho de difuso da literatura
e do pensamento brasileiro. E agora estou aqui e estou l,
nos dois pases e nas duas lnguas, sem dvida
nenhuma. Eu acho que lngua estrangeira aquela na
qual no aconteceu nada a gente. Quando a gente cresceu
numa lngua, ela no mais estrangeira, ela
indispensvel para se auto-reconhecer.
Julio:
Voc traduziu para o espanhol algumas obra dificlimas,
entre elas o "Morte e Vida Severina", do Joo
Cabral de Mello Neto. Agora o que muito difcil
imaginar como voc consegue verter para o espanhol
um Joo Guimares Rosa. Como que voc consegue?
Isso , num certo sentido, um "milagre".
um "milagre" que com uma grande dose de
responsabilidade pode ser feito, n? Realmente, o que
aconteceu foi que eu queria traduzir Tutamia. Eu me
ofereci para uma editora argentina para traduzir Tutamia
e pedi trs anos para fazer a traduo. O editor
pensou que eu estava louco. "Como que voc vai
levar trs anos para traduzir o livro, no mnimo, n?"
Porque o problema fundamental na traduo a msica
de uma lngua e de uma linguagem. como uma
partitura, interpretar a melodia de uma linguagem
fundamental, ento eu estudei muito essa linguagem,
ouvia o tempo todo Guimares Rosa. Fazia gravao.
Escutava o tempo todo. E quando o ritmo da sua lngua
comeou a ser para mim um pouco mais familiar, a ento
eu comecei o meu trabalho de traduo, mas levou
quatro anos e meio, e no trs. Agora para quem ama
uma lngua, a traduo uma experincia literria
to importante quanto a criao dos prprios textos.
No existe diferena nenhuma, entre o fato de traduzir
uma obra, isto , de interpret-la, porque o trabalho
de traduo um trabalho de interpretao, da
mesma maneira que a gente fala: voc ouviu a quinta
sinfonia de Beethoven, interpretada por quem? Depende
de quem interpreta. Pois ento o trabalho do tradutor,
de ouvidor.
Julio:
Comeam a chegar as perguntas do pblico...
Argentina, 30.000 desaparecidos. Brasil aproximadamente
400. possvel falar algo sobre isso?
possvel, sim. possvel, sinteticamente, possvel...
O conceito de Estado na Argentina, um conceito sempre
fraco. Ns amos da ausncia do Estado criao
de um Estado paternalista na poca de Pron, e agora
dissoluo do Estado em favor da privatizao. O
nosso Estado atualmente no tem responsabilidade protagnica
na produo da democracia. Ele tem responsabilidade na
istrao econmica da privatizao. Temos uma
democracia privatizadora. Em consequncia, essa
irresponsabilidade profunda do Estado, que ou da
inexistncia ao paternalismo, e do paternalismo
diviso intensa
das estruturas que do identidade institucional repblica,
num pas onde a justia no existe
institucionalmente, que est submetido, a justia est
submetida ao legislativo e ao poder executivo. um pas
que tem um profundo sentido da impunidade perante a lei.
A impunidade um conceito muito importante. Um
conceito segundo o qual o outro no existe. Vou
explicar isso brevemente.
O
governo militar argentino afirmava que os desaparecidos
eram auto-excludos, eram um pessoal que tinha se
banido da sociedade e no tinha sido eliminado pelo
Estado. E o raciocnio tem a sua lgica, embora
rejeitada por ns, ela deve ser ouvida, e
simples. assim: o que um subversivo?
um homem que existe margem da lei, isto , ele sai
do campo da identidade cvica, ele se exclui da
identidade cvica. Na medida em que ele a a ser um
subversivo, ento a eliminao de um subversivo a
eliminao de algum que j era ningum. uma
redundncia. Eliminar um subversivo no eliminar
algum, eliminar ningum. Ento o desaparecido,
para muitas das autoridades do processo, foram aqueles
homens que se auto-excluiam e depois desapareciam,
sumiam. Mas sumiam a partir de uma deciso ontolgica,
que era se colocar margem da lei. Qual lei?... Isto
aqui no se discute. Eu acredito que embora possamos
estabelecer relaes de parentesco entre os nossos pases,
a diferena de quantidade entre 30.000 e 300 ou 400
desaparecidos, no sentido formal, tem que ser
acrescentada essa
diferena, essa diferena tem que ser vista meia
luz. um fato fundamental na histria da Argentina,
onde a justia no existe, na verdade, como elemento
"fundacional" da democracia. O meu pas
julgou aos chefes militares do processo, provou a sua
responsabilidade e a sua culpa, e os deixou em
liberdade. A lei no pode se cumprir. Quer dizer sob o
ponto de vista dos fatos, a inexistncia da lei no
nosso pas sempre esteve muito marcada, sempre foi um
fato muito constante, e foi substituda pela autoridade
do setor. No meu pas as Foras Armadas se definiram,
no tempo do processo, como a reserva moral da nao. E
essa mentalidade, acredito, tem a ver com a histria
hispano-americana, que no sei se o Brasil teve, onde
as Foras Armadas, embora tenham tido o papel que
tiveram na ditadura, no chegaram a ser
programaticamente sanguinrias, como foram na
Argentina, porque no nosso esprito hispano-americano o
banho de sangue purificador.
P:
Gostaria que o Senhor comentasse a postura assumida
perante a ditadura argentina por dois dos mais
conhecidos escritores de seu pas: Ernesto Sbato e
Jorge Lus Borges?
Foram
posturas bem diferentes. Sbato foi desde o comeo, e
antes ainda do processo militar, um homem politicamente
muito comprometido. Ele lutou contra o peronismo, Borges
padeceu o peronismo. So coisas diferentes. Borges
padece o peronismo, Sbato luta contra o peronismo. Alm
do mais, Borges sempre teve uma atitude muito tmida
perante a ditadura, no comeo ele at se mostrou
simpatizante dela e depois se arrependeu, mas no se
pode dizer de Borges que tenha sido um homem a favor da
ditadura. No foi no. Borges foi um homem que teve uma posio de recluso, procedente at em
muitos aspectos, mas foi um homem que manifestou, por
exemplo, na Guerra das Malvinas, da Argentina com a Gr-Bretanha,
uma posio bem corajosa, bem clara. Mas civicamente
falando, a posio de Ernesto Sbato no tem comparao.
Ele para muitos de ns a representao mesmo da
responsabilidade de um intelectual, para o qual a
imaginao criadora um instrumento anti-totalitrio.
Eu gostaria de dizer duas coisa a propsito disto. H
uma incompatibilidade bsica entre a linguagem da arte
e a linguagem da ditadura. A ditadura tem uma preocupao
central que ser literal, ela no quer significar
outra coisa com o que
diz,
ela atribui sua linguagem uma literalidade total.
Quando ela diz, por exemplo, que representa o cerne
nacional, ela quer dizer isso. Isso a no um smbolo,
no metfora. Isso a o cerne nacional. Mata-se
em nome do cerne nacional. Reprime-se em nome do cerne
nacional. A arte essencialmente metafrica e democrtica,
porque a arte e a imaginao, a cincia, meu Deus, a
cincia, a filosofia, so essencialmente democrticas,
porque na medida em que elas empregam uma linguagem simblica
e metafrica, elas esto afirmando que queiram dizer
alguma coisa, aspiram dizer uma coisa. A arte exprime
por aproximao, o pensamento totalitrio exprime por
monoplio de sentido. Ele monopoliza o sentido, a arte
sugere, o pensamento cientfico sugestivo, ele no
diz o que as coisas so, ele sugere que poderiam ser de
certa maneira. Agora, h ento incompatibilidade
essencial entre a vigncia de uma ditadura e o
desenvolvimento do pensamento cientfico criador, sob o
ponto de vista das instituies do pas. Mas quando a
ditadura se apossa de um pas, a arte, o pensamento e a
criao, eles vivem na clandestinidade, eles vo
alimentando uma exigncia de um esprito crtico que
se desenvolve no que eu chamei, no seu momento, as
catacumbas da cultura. Sbato representou isto.
P:
Duas perguntas levantando praticamente o mesmo
assunto. Seria de extrema pertinncia que voc
elucidasse melhor as concluses que colhe do refluir
das experincias marxistas do Leste Europeu. Outra: o
senhor disse que a queda do Marxismo no Leste Europeu
reflete o processo dialtico da histria. Qual o
modelo de sociedade ser o seu sucessor? O processo de
globalizao seria uma resposta?
H
uma diferena muito interessante para a polmica, que
alis eu acho que deveria ser aprofundada, que a
seguinte: tem quem pensa que a queda do sistema
comunista a queda do marxismo como teoria, e tem os
que pensam que no, que o que caiu foi uma maneira de
interpret-la. Essa posio tem os seus perigos,
vejam vocs: se o platonismo no o pensamento do
Plato, se o pensamento de Plato no o
platonismo, se o sistema outra coisa que aquilo que
levado prtica, evidentemente ele tem porvir. Se
a realidade conceitual de uma teoria est sempre fora
da experincia da prtica dessa teoria, ento ela no
marxista, se marxista ela foi atingida pela sua
crise. De qualquer maneira, eu, pelo menos, eu penso que
o pensamento de Marx de jeito nenhum se esgota nessa
experincia, como o pensamento de ningum se esgota
numa experincia. Ele pode ser infinitamente
reinterpretado, revalorizado, estudado. Mas isto fala
das possibilidades que a teoria oferece interpretao.
A experincia histrica reconhecida como marxista,
enquanto ela se apresenta como marxista, quando ela cai,
ela tem de deixar de ser marxista? No sei. Enquanto o
futuro de um mundo onde no existe o comunismo, bem, o
futuro onde no existe o comunismo esse capitalismo
que estamos vendo a, a solidariedade do mercado. A
inexistncia do valor pessoal, a intranscedncia da
pessoa no um produto do comunismo, o produto de
um capitalismo muito bem desenvolvido, isto ,
desenvolvido segundo os seus prprios fins, segundo os
alvos que ele quer atingir. Ento, ns estamos numa
sociedade onde a intranscedncia da pessoa no pode
aparecer no primeiro plano do sistema, ela tem que
aparecer relacionada com o inimigo. E quem o inimigo?
preciso encontr-lo. O inimigo o mundo muulmano,
o Ir, o Fundamentalismo, ele no inimigo? Claro
que tambm ele , do capitalismo sem dvida nenhuma,
do Ocidente tambm em muitos aspectos, mas o
fundamental a figura do inimigo que preciso dela
sempre mo, porque com ela a nossa pureza ideolgica
pode ser melhor defendida. Essa luta contra o comunismo
no foi ganha pelos direitos humanos, essa luta contra
o comunismo fez mal ao comunismo, destruiu o comunismo,
mas no favoreceu no sentido absoluto a democracia. O
nico ponto que eu quero sublinhar, em relao s
democracias, que me parece extraordinariamente
importante, que as democracias so sistemas cientes
da sua contradio, na medida em que elas podem ser
espao de debate e enfrentamento, mas at um certo
ponto, at o ponto em que o sistema o permite. De
qualquer maneira, no podemos cair no maniquesmo de
acreditar que o reverso de um mal um bem , o reverso
do mal, tambm o mal, tambm o bem, e o desafio,
para mim, mais importante que temos pela frente
aceitar a complexidade de uma realidade que no vai a
caminho da sua purificao
definitiva,
mas a caminho da criao de
contradies hoje inditas, hoje imprevisveis.
Isso no quer dizer abolio do problemtico,
progresso quer dizer criao de novos problemas.
P:
Haveria alguma relao entre a colonizao hispnica
e a portuguesa? Com
a fragilidade democrtica reinante em nosso continente,
qual seria?
Veja,
relacionamentos devem haver. Tem que haver. Acredito que
h relacionamentos. O que no devemos fazer cair
numa colocao mecanicista, segundo a qual, se ns
somos filhos de portugueses e espanhis, ento nossos
pases fatalmente
ho de ser decadentes. Porque ento deveramos
pensar que os Estados Unidos, por serem descendentes de
ingleses, conseguiram ser um imprio eficaz. No
por isso que conseguiram. Na histria de nossos pases
latino-americanos, a dificuldade para a transio
vida democrtica viu-se tambm impelida pelo fato de
que ns tentamos fazer uma transio muito retrica
das estruturas coloniais s estruturas republicanas.
Essa agem foi feita com uma grande velocidade, com
uma grande irresponsabilidade e estamos tambm a pagar
os preos prprios desta contradio nascida da
velocidade com que os processos foram feitos, e do
sentido retrico com que foram feitos. Mas no
culpando o ado que ns vamos encontrar as razes
dos nossos conflitos. Mas pensando um pouco mais qual
concepo do ado e do presente ns temos, que
elaborao temos feito da nossa histria, como que
colocamos a questo do ado na reflexo do
pensamento vivo do presente me parece que h relao,
mas no h uma relao mecnica. Ns
somos o que fizeram de ns. Somos o que fizemos
com aquilo que fizeram de ns.
Julio:
Voc poderia, por gentileza, dizer novemente essa ltima
frase?
Eu
acredito que ns no somos o que fizeram de ns,
somos o que ns fazemos com o que fizeram de ns.
Tenha certeza de que o destino que damos ao nosso
condicionamento o que define uma cultura. o que a
gente faz com aquilo que fizeram da gente. Eu no posso
culpar meu pai e minha me de meus problemas. Sim, eu
posso ver como eu trabalhei os problemas criados pela
convivncia. Seno, h um conceito de inocncia
muito infantil e muito pouco interessante, segundo o
qual - se tivessem me deixado - eu teria sido livre.
P:
Avalie as conseqncias do modelo noliberal na
Argentina.
Vamos
ser um pouco sintticos. Eu disse na minha palestra uma
coisa na qual eu acredito profundamente. Esse modelo noliberal
tem criado uma sociedade mais eficaz e menos tica.
uma consequncia muito importante do conceito de
democracia ao qual ns tivemos o com a queda da
ditadura. A democracia se estruturou como um sistema
ordenado, com um poder executivo que absorveu os outros
dois, o judicirio e o legislativo, e que tem feito da
populao do pas a expresso de um dilema que a
ditadura no quis resolver, seno atravs da represso,
e que foi colocado pela democracia, primeiramente, como
um problema insolvel, por Raul Alfonsim, porque
Alfonsim no queria eliminar toda essa populao
de gente que trabalhava para o Estado, e que trabalhava
num estado profundamente improdutivo, porque o Estado
argentino, prvio a essa reforma iniciada agora pelo
novo presidente, esse Estado argentino, intil,
infrutfero, estril. Pois ento, acredito que o
modelo triunfou tambm na Argentina, no s na
Argentina, mas a caracterstica fundamental desse
modelo a prescindibilidade da noo de pessoa. O
conceito de pessoa que cai com a instalao desse
modelo, e qual o ncleo, o mago desse conceito de
pessoa? Pessoa sou eu e meu prximo, pessoa no sou
eu. No meu relacionamento com o outro constituo uma
pessoa. Eu sou meus vnculos, eu no sou eu sozinho,
eu sou meus vnculos. Agora como o conceito de Estado
na Argentina no depende da noo de vinculao,
seno de negociao, evidente que o prximo a a
ser no o que ele representa como pessoa, mas sim o que
ele representa como capital. De maneira exclusiva, isto
, dessa maneira e mais nada. A ento que o
modelo
noliberal na Argentina, em certo sentido, continua
trabalhando sob uma noo da pessoa como desaparecida,
s que agora a justia legitima essa noo. possvel
organizar o pas, se se produz a dissociao entre tica
e eficcia, isto , se os resultados nada tem a ver
com o problema do bem e do mal, da pessoa e do prximo.
P:
Na Argentina existe algo parecido com a imagem de
homem cordial, que existe no Brasil?
Quais as consequncias disso no imaginrio do
pas?
Hoje,
no almoo com o Belisrio, com o Dalmo, o Julio e a
Margarida Genevois, surgiu um esteritipo que foi
lembrado, que o seguinte: no imaginrio argentino, o
argentino homem uma pessoa que acredita que ningum
gosta dele... J o brasileiro aquele que acha que
todo mundo gosta dele! E essa idia exprime um pouco a
existncia de outros esteretipos que so
interessantes, segundo os quais podemos ver a identidade
nacional. Para mim o mago do esteretipo argentino
o autoritarismo. um povo que tem uma paixo pela
violncia muito forte, muito forte, ns estivemos a
ponto de "ganhar" uma guerra da Inglaterra,
mas no sei o que aconteceu, mas estamos a, n?... O
grau de veracidade que teve o fato de um enfrentamento
militar com a Inglaterra como favorvel Argentina
foi unnime. Essa guerra ganhamos, j tnhamos ganho
uma, no sculo dezenove, agora amos ganhar mais
outra... Teve um problema no meio com a OTAN, mais isso
secundrio... Essa tendncia violncia, essa
tendncia onipotncia, uma espcie de onipotncia
muito grande, tem suas nuances, tem seus pontos fracos,
e tem seus encantos tambm. Evidentemente ningum vive
num pas em que s existe a violncia e ningum se
sente representativo apenas da violncia no pas onde
vive. O meu pas um pas com pessoas imensamente
fraternais, cordiais, simpticas e com grande conscincia
dos dilemas da Argentina, em termos de solidariedade,
como qualquer pas. Ns tambm temos gente assim.
P:
O Senhor poderia explicar melhor porque ainda no
existe democracia na Argentina e
tambm no Brasil, e explicar tambm melhor a
comparao dos desaparecidos com os atuais
desempregados?
A
idia de uma certa continuidade. Como que, por
exemplo, a Argentina ingressa na democracia, porque
fracassa o modelo militar. O modelo militar no
fracassa pela fora cvica que o enfrenta, fracassa
devorado pelas suas prprias contradies. Foi a
guerra com a Inglaterra que acabou com a possibilidade
de um governo militar. Ele se enfraqueceu, esse governo,
e cedeu, ofereceu o poder civilidade, em certas condies.
A nossa democracia no foi conquistada com conscincia
cvica ainda, porque as nossas instituies
representativas no tem autonomia crtica para o exerccio
das suas funes, elas esto submetidas ao poder
executivo de uma maneira profundamente autoritria. Ento
a transio vida democrtica no foi realizada em
funo das instituies, mas sim em funo dos
partidos e dos homens, das negociaes e no das
instituies, e isso afetou profundamente a nossa
democracia, que ela simulada. Em relao entre o
ponto de convergncia entre desaparecidos e
desempregados o seguinte, o desaparecido no tem
identidade jurdica, ele no ningum perante a
lei. No existe essa figura. Na medida em que o indulto
foi legitimado pelos governos civis, a figura do
desaparecido no tem existncia jurdica, no h
ningum que o seja. O desempregado no existe tambm
para o sistema, ele no produzido pela democracia. A
democracia no tem a coragem de aceitar as contradies
que ela gera, dizendo bem, aqui estamos com um estado
que vai delegar as suas responsabilidades em instituies
privadas, e o produto do desmantelamento de um estado
sem consistncia e sem produtividade, necessariamente,
o desemprego. No que estamos expulsando pessoas
de um emprego produtivo, estamos expulsando pessoas de
instituies que so fantasmas. Agora, at a, at
podemos aceitar as coisas, a dissoluo de um estado
improdutivo gera desemprego. Mas o desempregado, ele
ou no produto da nao, ele ou no parte
da realidade? O que quer dizer que ele no tenha
futuro, o que quer dizer que ele de imediato vai ser a vtima,
sempre a vtima., Quem o desempregado? No
o homem que tem poder, o homem que no representa
nada. Ele no tem onde exprimir o seu protesto, ele vai
sair rua e reprimido, como de fato reprimido,
na Argentina pelo menos. Agora ele no pode ser
incorporado pelo sistema, porque o sistema vai se
estruturar com menos gente do que existe. Todo o dilema
do meu pas foi sempre o seguinte: vamos organizar o
sistema para trinta milhes de pessoas, ou vamos
prescindir de dez milhes? Buenos Aires tem nove, a
provncia de Buenos Aires tem doze, depois tem o resto.
Ento, o problema fundamental que h uma desapario,
um aniquilamento, uma destruio do direito do homem,
que tem que desaparecer com o estado obsoleto, o estado
que no presta, no s ele desaparece, com ele o
empregado tambm, a pessoa, a pessoa desaparece como
realidade. Ento nesse sentido uma continuao
cultural, no conceito, justamente, preconceito, segundo
o qual onde no est o poder, no h realidade.
P:
O que voc acha do fato de suas obras serem
traduzidas para vrias lnguas, menos o portugus?
Diversos intelectuais brasileiros sofrem o mesmo
problema. O que voc acha desse pequeno intercmbio
cultural Brasil - Argentina?
Eu
acho fundamental esse intercmbio. Eu acho importantssimo
e pessoalmente comovente. Agora o fato de eu no ter
sido traduzido para o portugus exprime por uma parte a
conscincia crtica dos editores. Da outra parte, que
eu ainda no tive sorte, mas eu vou ter. Eu vou ter.
Aproveito
para agradecer ao secretrio Belisrio dos Santos
Junior. E a Jlio Lerner e Margarida Genevois,
organizadores desse simpsio to atual, pelo convite
que me fizeram. Agradeo tambm a todos pela ateno.
Muito obrigado.
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