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As Cidadanias Mutiladas 4t243b

Milton Santos

Professor universitrio, gegrafo e escritor

O tema que me traz aqui no um tema de minha especialidade, mas um tema da minha convivncia. Por isso, no me proponho a fazer uma conferncia, mas a manter uma conversa sem plano. Pretendo comear esta conversa fazendo algumas perguntas: o que ser um cidado? O que ser um indivduo completo, isto , um indivduo forte? O que ser classe mdia? Ser classe mdia ser cidado? O que ser cidado neste pas? E finalmente, os negros neste pas so cidados?

Ser cidado, perdoem-me os que cultuam o direito, ser como o estado, ser um indivduo dotado de direitos que lhe permitem no s se defrontar com o estado, mas afrontar o estado. O cidado seria to forte quanto o estado. o indivduo completo aquele que tem a capacidade de entender o mundo, a sua situao no mundo e que se ainda no cidado, sabe o que poderiam ser os seus direitos.

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neste sentido que me pergunto se a classe mdia formada de cidados. Eu digo que no. Em todo caso, no Brasil no o , porque no preocupada com os direitos, mas com privilgios. O processo de desnaturao da democracia amplia a prerrogativa da classe mdia, ao preo de impedir a difuso de direitos fundamentais para a totalidade da populao. E o fato de que a classe mdia goze de privilgios, no de direitos, que impede aos outros brasileiros ter direitos. E por isso que no Brasil quase no h cidados. H os que no querem ser cidados, que so as classes mdias, e h os que no podem ser cidados, que so todos os demais, a comear pelos negros que so cidados. Digo-o por cincia prpria. No importa a festa que me faam aqui ou ali, o cotidiano me indica que no sou cidado neste pas.

Poderamos traar a lista das cidadanias mutiladas neste pas. Cidadania mutilada no trabalho, atravs das oportunidades de ingresso negadas. Cidadania mutilada na remunerao, melhor para uns do que para outros. Cidadania mutilada nas oportunidades de promoo. Cidadania mutilada tambm na localizao dos homens, na sua moradia. Cidadania mutilada na circulao. Esse famoso direito de ir e devir, que alguns nem imaginam existir, mas que na realidade tolhido para uma parte significativa da populao. Cidadania mutilada na educao. Quem por acaso eou ou permaneceu na maior universidade deste estado e deste pas, a USP, no tem nenhuma dvida de que ela no uma universidade para negros. E na sade tambm, j que tratar da sade num pas onde a medicina elitista e os mdicos se comportam como elitistas, supe frequentemente o apelo s relaes, aquele telefone que distingue os brasileiros entre os que tem e os que no tem a quem pedir um pistolo. Os negros no tem sequer a pedir para ser tratados. E o que dizer dos novos direitos, que a evoluo tcnica contempornea sugere, como o direito imagem e ao livre exerccio da individualidade? E o que dizer tambm do comportamento da polcia e da justia, que escolhem como tratar as pessoas em funo do que elas parecem ser.

Penso haver trs dados centrais para entender essas questes do preconceito, do racismo, da discriminao. O primeiro a corporalidade, o segundo a individualidade e o terceiro

a questo da cidadania. So as trs questes que vo ser a base da maneira como estamos juntos, da maneira como nos vemos juntos, da maneira como pretendemos continuar juntos. Resumindo, a corporalidade inclui dados objetivos, a individualidade inclui dados subjetivos e a cidadania inclui dados polticos e propsitos jurdicos. A corporeidade nos leva a pensar na localizao ( talvez pudessemos chamar de lugaridade ), a destreza de cada um de ns, isto , a capacidade de fazer coisas bem ou mal, muito ou pouco e as possibilidades da decorrentes. E a aparece em resumo, o meu corpo, o corpo do lugar, o corpo da mundo. Eu sou visto, no meio, pelo meu corpo. Quem sabe o preconceito no vir do exame da minha individualidade, nem da considerao da minha da cidadania, mas da percepo da minha corporalidade. A individualidade permita, a partir do bom senso , alcanar certo grau de exerccio da transindivilidade, e a a conscincia do outro e dos outros, a conscincia do mundo. E afinal a cidadania, que o exerccio de direitos e supe a cincia dos direitos que temos e a capacidade de reivindicar mais. Como tudo isso est ligado ao grau de conscincia, voltamos, por conseguinte, questo da individualidade.

Eu tinha feito a anotao seguinte: A instruo superior no garantia de individualidade superior. A cidadania no garantia de individualidade forte, nem a individualidade forte garantia de cidadania e liberdade, o meu caso. Desculpem mas estou tentando utilizar a mim mesmo como exemplo. Tenho instruo superior, creio ser personalidade forte, mas no sou um cidado integral deste pas. O meu caso como o de todos os negros deste pas, exceto quando apontado como exceo. E ser apontado como exceo, alm de ser constrangedor para aquele que o , constitui algo de momentneo, impermanente, resultado de uma integrao casual.

Da porque a anlise das situaes do preconceito no Brasil supe um estudo da formao scio-econmica brasileira. No h outra forma de encarar o problema. Tudo tem de ser visto atravs de como o pas se formou, de como o pas e de como o pas pode vir a ser. Tudo isso se inclui na realidade da formao scio-econmica brasileira. O ado como carncia, o presente como situao, o futuro como uma perspectiva.

O modelo cvico brasileiro herdado da escravido, tanto o modelo cvico cultural como o modelo cvico poltico. A escravido marcou o territrio, marcou os espritos e marca ainda hoje as relaes sociais deste pas. Mas tambm um modelo cvico subordinado economia, uma das desgraas deste pas. H pases em que o modelo cvico corre emparelhado com a economia e em muitas manifestaes da vida coletiva se coloca acima dela. No Brasil a economia decide o que do modelo cvico possvel instalar. O modelo cvico residual em relao ao modelo econmico e se agravou durante os anos do regime autoritrio, e se agrava perigosamente nesta chamada democracia brasileira. A prpria territorializao corporativa, os recursos nacionais sendo utilizados sobretudo a servio das corporaes, o resto sendo utilizado para o resto da sociedade. O clculo econmico no mostra como as cidades se organizam para serem utilizadas por algumas empresas, por algumas pessoas. So as corporaes que utilizam o essencial dos recursos pblicos e essa uma das razes pelas quais as outras camadas da sociedade no tm o s condies essenciais da vida aos chamados servios sociais. No caso dos negros, isso o que se a.

Um outro dado a acrescentar que a situao dos negros no Brasil uma situao estrutural e cumulativa o que mostra a diferena com outras minoridades ( que no so minorias ). Vemos com frequncia comparar, ou por lado a lado, a briga dos negros com a briga das mulheres e com a briga de outras minorias, inclusive algumas que recentemente se levantaram para exigir direitos. No d para por tudo no mesmo saco, como se faz. Sobretudo no d pelo seguinte: por exemplo, as mulheres comearam sua luta recentemente, mas j conseguem resultados que os negros no obtm. Isso basta para mostrar que as situaes no so iguais. As mulheres lutam dentro da sociedade, enquanto os negros no fazem parte da sociedade que manda. A situao deles uma situao estrutural e cumulativa, onde cada progresso obtido ao nvel do pas no representa melhoria efetiva correspondente de sua situao como grupo.

A situao parece se agravar com o presente processo de globalizao, que tem efeito sobre todos os aspectos da vida, incluindo a questo do preconceito. Vejamos por exemplo alguns elementos caractersticos desta fase da histria, como o retorno com fora do darwinismo social, condenando as pessoas consideradas inferiores na sociedade mundial. At as prprias tcnicas com que trabalhamos hoje se afirmam em dados de fora, pois a tcnica mais forte expulsa as outras, toma o lugar das outras e se impe. Como temos de trabalhar com sistemas tcnicos, um resultado reflexo dessa necessidade o comportamento darwinstico. O presente clima internacional est sendo desfavorvel s pessoas consideradas inferiores na sociedade mundial. H um clima contra as raas chamadas inferiores. Esse clima j existia antes, mas com a globalizao ele se agrava e se adensa, da constantes julgamentos de valor das pessoas em virtude de raa, sua origem e tambm em relao aos imigrantes. O Brasil, por ser um pas tradicionalmente aberto, grande vtima dessas tendncias perversas universalizantes. Basta lembrar, neste outrora intitulado pas do homem cordial, o tratamento odioso freqentemente oferecido aos migrantes internos. Estados e municpios no se pejam de colocar barreiras nas suas fronteiras para impedir a entrada de migrantes considerados indesejveis. Tal fermento de anti-solidariedade nacional se justifica at mesmo por certos discursos carregados de semente de desagregao. a perversidade da globalizao, consagrando os mais fortes, e pela mesma ocasio naturalizando os racismos, os preconceitos, as discriminaes. assim, tambm, que se chega a considerar normal, por exemplo, 1.300.000 de desempregados na cidade de So Paulo e milhes neste pas, onde h dezenas de milhes de pobres. Tudo isso busca respaldo na idia de que precisamos organizar o pas, para facilitar a globalizao e para que ele entre no primeiro mundo. Que bobagem! Uma bobagem cientificamente respaldada, a gente aceitar a naturalizao da perversidade , que parece tambm ser a norma primeira do comportamento dos polticos da ordem global e da ordem nacional.

Essa globalizao tem tambm aspectos curiosos. Vejamos essa polarizao mundial pelos ndios, que repetimos aqui dentro. natural que se defenda os ndios, pois eles merecem nossa ajuda, mas no considerando-os como natureza mas como seres humanos. Mas a confuso estabelecida por muitos entre a causa indgena e causa ecolgica folcloriza a campanha e impede a ampliao do seu alcance. Talvez por isso tambm a causa negra fica em segundo plano, j que os negros no fazem propriamente parte da natureza, mas da produo, o que complica tudo, pois a produo causadora de conflitos reais e duradouros. A verdade que o discurso oficial, o discurso social no Brasil, privilegia uma parcela da sociedade que tem problemas e desconsidera uma massa da populao que tem problemas maiores, porque faz parte do processo da poltica.

E finalmente neste environment internacional, esse discurso dos direitos humanos muito fcil, se no acompanhado do discurso dos direitos do homem, isto , de cada homem. Enquanto o que se tem feito tratar dos chamados direitos humanos, os direitos da cada homem no tm um tratamento adequado. Alis, frequente que o homem tenha os seus direitos acatados, quando h especularizao, e onde h especularizao no h nem direito nem homem, mas apenas discurso. Eu creio que isso faz parte tambm da maneira como a chamada liderana da formao social brasileira trata as diversas questes. Neste particular, uma questo que me parece importante de ser tocada a questo do contrato sob o qual ns vivemos hoje. Porque o Brasil no bem democracia, mas uma democracia de mercado. O que central o mercado, no o homem.

Trs sculos de Iluminismo, uma luta consequente dos filsofos, depois de intelectuais e de polticos para a ampliao dos direitos e, de repente, tudo parece ter sido perdido. O centro do Universo deixa de ser o homem para ser o dinheiro, no o dinheiro produtor, mas o dinheiro em estado puro, com seus sacerdotes, que so banqueiros, seus templos que so os bancos.

Nessa concepo da sociedade, no mundo e, sobretudo, neste pas, o homem residual. A democracia de mercado impe a competitividade como norma central, uma competitividade obtida atravs de normas privadas que arrastam as normas pblicas. O que domina nessa democracia de mercado o elogio da tcnica, como se ela se auto-satisfizesse e, preeminncia da racionalidade sem razo, tpica do processo econmico do fim do sculo e obstculo florao do pensamento.

Por outro lado reina o consumo, que magnifica o ideal contemporneo de ter, no lugar do ideal de ser , que leva a aceitao da objetificao como se fosse a objetividade e faz os homens aceitarem ser coisas, recusando, por conseguinte, a individualidade forte. Por isso, na democracia de mercado o consumidor mais que perfeito e o cidado se contenta em ser usado, com a morte da poltica, numa situao em que as eleies so um ato de consumo eleitoral e o debate poltico substitudo pelas pesquisas de inteno de voto. As pesquisas no so o debate poltico. A idia de resultados afasta a idia de valores. Por isso no h democracia neste pas, h apenas um a democracia de mercado, na qual os mais fracos no ho de esperar nada e os negros muito menos.

Tudo isso condimentado pelas duas violncias centrais do nosso tempo: a violncia do dinheiro e a violncia da informao. So as duas grandes violncias que perturbam o conhecimento do mundo e atrofiam a conduo da conscincia. Nos pases onde essa violncia do dinheiro, essa violncia da informao no tm limites, a conduo de uma conscincia cvica realmente difcil. porisso que neste momento estamos assistindo, neste pas, ao assassinato da idia de nao. O que de mais grave ocorre atualmente no Brasil este assassinato cotidiano da idia de nao. Essa destruio dessa idia de conjunto, expressada nas sries de medidas provisrias a que assistimos o mais grave crime cometido neste pas nos ltimos trinta anos. Esse abandono da solidariedade... A sorte que a nao comea a se refugiar nas cidades, a despeito dos poderosos do mercado e dos poderosos de estado. As cidades esto reconstruindo a nao. E a sorte dos negros, como a sorte dos pobres, que eles esto sobretudo nas cidades. Nestas, as mazelas no so absolutas, mas contraditrias.

A globalizao agrava as crises urbanas e, ampliando o fenmeno da escassez, aumenta a pobreza e a misria e estimula a violncia. A sorte que a globalizao que a est no obrigatoriamente a que vai ficar. A que ns estamos agora vivendo uma globalizao perversa, mas os materiais de que dispomos hoje no mundo so suficientes para fazermos uma outra globalizao, mais humana.

Pela primeira vez na histria recente das tcnicas o homem no precisa ser escravo da mquina. Se atualmente ainda , este no um fato da tcnica, mas da organizao. E junto a isso, veja-se o papel de um novo cotidiano produzido pelo processo da globalizao. Essa multiplicao de individualidades, isto , de possibilidades de interpretao do mundo, do lugar e de si mesmo, uma nova riqueza ainda no explorada devidamente. Quanto mais diferentes somos, mais interpretaes existem e, desse modo, os conflitos so mais ricos e a possibilidade de negociao se torna mais franca, mais aberta, mais produtiva. Isso tambm ajudado pela nova mobilidade dos homens. Nunca os homens foram to mveis, nunca eles foram to numerosos e viveram to fora de seu nascimento. uma enorme riqueza que hoje se verifica no mundo inteiro sobretudo nas cidades, com a chegada de gente de outras raas, de outras religies, de outros cheiros . Os americanos propam ao mundo cheirar igual, com os famosos desodorantes. No conseguiram.

E o fato de que o mundo acelera a sua globalizao pode ser uma boa causa, se pensarmos que a cidade o lugar onde as pessoas se movimentam mais, produzindo contatos numerosos e crescentes. As classes mdias dormentes, mas agora atingidas pela crise do ajustamento, comeam tambm a despertar, j que so as carncias que do a cada um a conscincia de sua posio.

O adormecimento das classes mdias, nas fases de prosperidade, reduziu a possibilidade de se perceber a precariedade da situao de ser homem. Alis, essa superioridade dos pobres, dos migrantes, das minorias, pelo fato de no terem o pleno s modernidades e, por conseguinte, entender, a partir das carncias, o seu ser no mundo e o seu existir na formao social nacional, esse aguamento das contradies aparece como uma esperana, ou pelo menos uma promessa.

Por outro lado, esses esboos de moralidade internacional que se desenham e esse discurso mesmo da moralidade interna quem sabe um dia permitiro tornar positivos alguns efeitos de campanhas e movimentos hoje isolados. Mas o que recentemente vem sendo produzido a pretexto de tratar da problemtica do negro no Brasil a pletora de discursos ornamentais que um dia poder possibilitar uma tomada de posio, uma negociao mais adequada e sincera. Primeiro preciso deixar de lado os discursos bobos e os discursos choramingas. Depois precisamos nos despedir das situaes ornamentais, onde predomina a gesticulao ritual e vazia, esses festejos que consagram, apenas um dia, o melhor da hipocrisia nacional.

Urge que emos aos verdadeiros projetos. Para isso, impe aos negros tomar conscincia de que no suficiente conhecer seu prprio campo, mas indispensvel conhecer o campo do outro, ou ainda melhor, conhecer o campo comum em que vivem todos os brasileiros. A formao social nacional esse campo comum para o conhecimento e a ao, que no podem deixar-se limitar pela chamada realidade negra. Temos que recusar o gueto em que nos querem confinar os que mandam na sociedade brasileira e buscar lugares mais importantes dentro da sociedade. Diante do mundo e do pas, como uma totalidade os negros devem buscar enxergar-se como participantes dessa totalidade, que dinmica e buscar os caminhos. No campo internacional, o encontro e a busca de razes comuns podem ser algo importante, mas so tambm um convite a um no tratar de frente a questo da formao social brasileira, central no conhecimento do problema. Sem isso, no a histria americana, nem a da Nigria ou da frica do Sul que vo ajudar no encontro de solues para os negros brasileiros.

E a pretendida solidariedade internacional a tambm por reclamar solidariedade nacional. Os tempos porm no parecem favorveis. Vejam-se, por exemplo, os pobres debates sobre a reforma da Previdncia, que claramente demonstraram o despreparo dos polticos para os grandes debates nacionais e morais. O prprio discurso da oposio um discurso do contra, mas usando os mesmos termos da chamada situao, onde o discurso dos princpios foi substitudo pelo discurso dos recursos. H que abandonar esse discurso dos recursos e enfrentar o discurso dos princpios.

A questo do negro tambm deve ser tratada de maneira digna. A produo de um novo discurso poder permitir um novo plano de debate, e essa a tarefa essencial dos movimentos negros. Isto supe a tolerncia com as prticas plurais. evidente que o movimento negro tem de ser plural, porque deveria ser uno? a pluralidade que faz sua riqueza e sua fora. A trana no cabelo ou o cabelo espichado no devem ser um dado que exclua ou separe. Que cada qual como encontre seu lugar nessa luta, participando pela forma que melhor aprouver a vida pblica, como cada um tem o direito de adotar a estratgia possvel que lhe parea a melhor. Essa tolerncia dentro do movimento negro indispensvel para que ele conhea uma outra etapa. Mas com isso tem que ser feito mediante um discurso cientificamente elaborado, que no pode ser um discurso choramingas, nem um discurso de pura emoo. A organizao tambm indispensvel, como um dado multiplicador das foras limitadas.

S assim ser possvel rever injustias seculares, estruturais e cumulativas, mediante polticas compensatrias, que devem ser urgentemente implantadas neste pas, inclusive as medidas de discriminao positiva. Pedir aos negros que aceitem o discurso oficial e esperem tranquilos a evoluo normal da sociedade conden-los a esperar outro sculo. O pas necessita, com urgncia,

de medidas positivamente discriminatrias, que so a nica forma de refazer um balano mais digno, revendo o balano histrico.

Eu estou muito agradecido pela ateno com que ouviram estas consideraes disparatadas e confesso que estive muito feliz por ter sido convidado a estar aqui esta noite.

Definio de papis, democracia, participao...

P: Em seu entender, qual deve ser o papel de um intelectual na luta contra o preconceito racial?

- O papel do intelectual a busca da verdade e a expresso dessa busca. No basta encontrar a verdade, preciso proclam-la. Nesse caso, o que seria normal, que todo intelectual se alinhasse em todo o tipo de luta para restaurar direitos, para afirmar igualdades. Seria normal que todo intelectual fosse contra o preconceito racial. A verdade que isso no se d. E no se d em parte porque, no caso brasileiro, os intelectuais esto cada vez mais omissos e uma boa parte prefere a aliana com o establishment. Mais especificamente, o intelectual deveria participar da luta contra o preconceito racial no apenas como profisso de f, um discurso de adeso, mas pela proposta de interpretao da sociedade brasileira como um todo. Acho que a nica forma pela qual o preconceito racial pode ser eficazmente combatido, ultraando o limiar da emoo e ando para a produo de um discurso coerente que possa ser a base de um discurso poltico. As pessoas preparadas para produzir tal discurso so as que a gente chama habitualmente de intelectuais.

P: O senhor poderia explicar melhor as principais diferenas entre uma democracia de mercado e uma democracia de participao?

- Eu no vou falar de democracia de participao, porque seria uma questo enorme. A participao como ela mencionada e como feita no significa democracia. Estou me referindo mais democracia genuna, isto , um regime poltico que assegure atravs da liberdade da igualdade uma ampliao sempre crescente de todos os tipos de direitos. O centro, a criao de um sistema poltico onde a colaborao seja fundada nessas qualidades essenciais de cada um. J a democracia de mercado, que a que ns estamos vivendo em muitos pases hoje, e no Brasil em particular, porque o Brasil no est vivendo uma democracia, mas uma democracia de mercado, o homem no central. O que central o mercado e o homem considerado com residual. No caso brasileiro, basta ver as medidas tomadas pelo atual governo brasileiro, em relao a tudo que tem relao com o social, onde o que mesmo fundamental o mercado e o homem recebe o resduo, a migalha, quando isso acontece. Todavia continua-se a falar de democracia. Eu creio que h uma diferena a estabelecer, e isso eu relacionaria com a questo anterior - como o intelectual se comporta ou deve se comportar dentro de uma democracia de mercado na luta contra o preconceito racial - porque a democracia de mercado agrava todos os tipos de preconceitos, ela a a dar preeminncia no aos valores mas aos recursos.

P: Como o senhor v a questo das cotas reservadas para estudantes negros nas universidades brasileiras?

- Eu creio que ns corremos o grande risco de limitar a discusso da ascenso social pela educao a essa questo de cotas. E a maneira como esse tipo de pergunta se repete sintomtica de uma vontade de estabelecer um debate falsificado. A questo que se coloca no propriamente de cotas, a questo que se coloca : quer o Brasil incorporar os negros, ajudando-os a

ter um lugar, digamos assim, normal dentro da sociedade, quer o Brasil, na construo do seu futuro, considerar que o negro deve participar desse futuro de forma igual? Eu acho que esta a questo. E nesse caso h o que fazer. Ser que ns vamos deixar evoluo espontnea a soluo deste problemas, como parece ser, ou a gente teria que precipitar o movimento, e a que a questo das cotas aparece. O que que eu devo fazer para que os negros sejam mais numerosos nas boas universidades, mais numerosos nos bons colgios, compaream s chamadas elites de todo tipo? Essa a questo central e no o inverso. Essa discusso a partir das cotas amesquinha o debate e abriga a uma discusso sem futuro. Eu creio que cotas ou outra coisa tem que ser feita. Eu creio que o pas tem que enfrentar esse problema, buscando solues, tem que mudar, e enfrentar esse problema, buscando solues, tem que mudar, e para mudar tem que ter solues, que esto chamando agora de discriminao positiva ou afirmativa. Mas tem que temperar essa medida de cotas com outras, por exemplo bolsas de estudo. No adianta nada deixar um negro pobre entrar numa universidade rica, tem que ter bolsa de estudo, criar condies ambientais que o favoream. Ento me parece que essa discusso tem que ser remetida aos negros.

P: O senhor aceitaria o convite para participar de uma luta das entidades negras que se organizam para combater o racismo?

- Cada vez que sou convidado eu trato de comparecer. O que acontece que eu me preparei para ser intelectual, acredito ser um, e eu vejo uma grande dificuldade entre ser um intelectual e ser militante. So duas atividades que no se conjugam, seno muito excepcionalmente, muito rapidamente, porque a necessidade de guardar inteira liberdade excluda aos militantes. O militante acaba sendo uma pessoa que depende dos slogans, dos grupos de que participam. No movimento negro eu creio que deve haver lugar para diversas formas de expresso, e uma forma de expresso que eu no escolhi e penso que no vou escolher de participar de grupos e de tendncias ou de faces. O que eu quero poder refletir sobre a questo, porque minha vida foi sempre um investimento quanto a possibilidade de reflexo e com isso permitir que se avance na produo de um discurso diferente, porque o discurso dos movimentos negros, em boa parte, um discurso que no sendo cientificamente elaborado, no tem a eficcia poltica que deveria ter. No tem.

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