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Bispos - cujos nomes Sobral Pinto diz no conhecer - reunidos no Convento do Cenculo, na Rua Pereira da Silva, Laranjeiras, Rio de Janeiro, enviaram trs irmos de episcopado (Bispos) para ouvirem a opinio de Sobral Pinto a respeito do AI-%, de 13 de dezembro de 1968, com a solicitao de que ele deveria conservar em sigilo os trs nomes e no o parecer. Sobral Pinto declarou aos trs Bispos que no dia seguinte lhes enviaria o parecer solicitado, que vem a seguir.
Natureza, significao e alcance do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968.
Que a ditadura? Segundo o conceito tradicional e histrico, a concentrao de todos os poderes pblicos nas mos de um s Magistrado, concentrao esta limitada no tempo, e com a finalidade de resolver as dificuldades do Estado em determinado momento. Esta a definio, que se encontra nos lbios de consagrados constitucionalistas europeus. H quem prefira uma definio mais sucinta, dizendo que a ditadura determina que todos os poderes sejam excepcionalmente concentrados em um s rgo, para superar favoravelmente graves perodos de crise.
Como se v, entre as duas definies existe uma diferena: a primeira declara que os poderes excepcionais esto concentrados nas mos de um s Magistrado, enquanto que a Segunda diz que esta concentrao excepcional dos poderes est confiada a um s rgo.
Estas definies esto voltadas para o conceito de ditadura que a tradio nos legou. Mesmo a Segunda definio, que substituiu a expresso magistrado pela expresso rgos no conseguiu libertar-se do conceito de ditadura que nasceu das preceituaes do Direito Romano, preceituaes estas que atravessam os sculos at os comeos dos nossos dias.
Hoje, e por fora da experincia contempornea, o rgo da ditadura , alm de pessoal, tambm de natureza colegiada, colegiado este que assume o aspecto de uma classe. Deste modo, a pessoa que utiliza os poderes excepcionais, que a concentrao de tais poderes lhe confere, no fala em seu nome pessoal, somente, mas do de toda a classe que o apoia. o caso, por exemplo, da Rssia, expresso da ditadura do proletariado, e o da Argentina, expresso da ditadura militar.
Modernamente, portanto, a ditadura oferece duas caractersticas:
1 - Uma concentrao de funes num s rgo, individual ou coletiva;
2 - Temporalidade desta concentrao, imposta por dificuldades transitrias do Estado.
inerente ditadura a correspondncia absoluta da vontade do rgo, individual ou coletivo, que a representa. Nenhuma vontade, no Pas onde ela surgiu, pode se contrapor vontade desse rgo.
inerente, tambm, ditadura a prescrio da liberdade dos cidados, com as conseqncias que lhes so normais e prprias, tais como a inexistncia da liberdade de imprensa, das emissoras de rdio, e das cmaras de televiso, sujeitas censura.
inerente, igualmente, ditadura o banimento da Magistratura autnoma, independente e livre.
inerente, finalmente, ditadura a subordinao total do Congresso e da Assemblias Legislativas vontade soberana do rgo individual ou coletivo, que a encarna ou representa.
As leis num tal regimen no so normas ditadas por um Poder Legislativo autnomo, independente e soberano, depois de um debate racional e consciencioso entre os membros de Congresso Nacional e das Assemblias Legislativas, mas so, pelo contrrio, ordens imperativas emanadas da vontade incontestvel e soberana do rgo, individual ou coletivo, que encarna a ditadura.
A fora organizada do Estado coloca-se disposio do rgo, individual ou coletivo, da ditadura, para fazer cumprir todas as ordens dele emanadas, pr no crcere os cidados recalcitrantes e a esmagar qualquer oposio, sistematizada ou no.
A Magistratura, desprovida de qualquer estabilidade e vitaliciedade, no poder obstar as prises arbitrrias nem acudir, com medidas adequadas, queles que no territrio nacional, brasileiros e estrangeiros, tiveram os seus direitos lesados, negados ou proscritos pelo rgo, individual ou coletivo, que encarna a ditadura.
Pois bem, o regimen acima descrito, que ditatorial em sua substncia e nas suas aparncias, o regimen que vigora, presentemente, na Ptria Brasileira.
Com efeito, o rgo que representa a ditadura o Presidente da Repblica, e a classe que o apoia para exercer e manter a sua ditadura a Fora Armada, constituda pelo Exrcito, Marinha e Aeronutica.
A leitura serena e isenta do ATO INSTITUCIONAL N. 5, de 3 de dezembro de 1968, comprova, impressionantemente, esta afirmao.
A art. 1 mantm a Constituio de 24 de janeiro de 1967 e as Constituies Estaduais, mas com as modificaes que a seguir estabelece.
Com este texto o Presidente da Repblica proclama-se Poder Constituinte, isto , nico Poder Soberano, diante do qual toda a Nao deve dobrar-se.
No art. 2 o Presidente da Repblica estabelece que poder decretar o recesso no Congresso Nacional, das Assemblias Legislativas e das Cmaras Municipais, recesso que durar at que ele volte a convoc-los.
No 1 desse artigo, o Poder Executivo chama a si a funo legislativa em todas as matrias atribudas s Constituies, federal e estaduais, e Lei Orgnica dos Municpios, durante o recesso acima referido.
No 2 estatui que os Senadores e os Deputados federais e estaduais, e os Vereadores s percebero a parte fixa dos seus subsdios.
Pelo art. 3 o Presidente da Repblica pode intervir nos Estados e Municpios, sem as limitaes previstas na Constituio, nomeando os Interventores, que exercero as funes e atribuies que lhes couberem, como se Governadores e Prefeitos fossem.
Estatui o art. 4 que o Presidente da Repblica, ouvido o Conselho de Segurana Nacional, e sem as limitaes previstas na Constituio, poder suspender os direitos polticos de quaisquer cidados, pelo prazo de 10 anos, e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais, sem que lhes sejam dados substitutos.
O art. 5 prescreve que a suspenso dos direitos polticos, implica na cassao de privilgio de foro, na suspenso de direito de votar e ser votado, na proibio de atividades ou manifestaes de natureza poltica e na aplicao, quando necessrio, da liberdade vigiada, da proibio de freqentar determinados lugares, e domiclio coacto.
O art. 6 suspende as garantias constitucionais ou legais da vitaliciedade inamovibilidade, estabilidade e exerccio em funes por prazo certo.
O 1 deste artigo confere ao Presidente da Repblica o direito de demitir, remover, aposentar ou pr em disponibilidade quaisquer titulares das garantias referidas no artigo, assim como empregados de autarquias, empresas pblicas ou sociedades de economia mista, bem como demitir, transferir para a Reserva ou reformar militares ou membros das Polcias militares, sendo certo, ainda, que o 2 deste artigo estende a aplicao de todas estas medidas aos Estados, Municpios, Distrito Federal e Territrios.
Portanto, a ao do Presidente da Repblica abrange, quanto a estes poderes ditatoriais, todo o territrio nacional. A autonomia dos Estados e dos Municpios desapareceu integralmente ante a vontade soberana do Presidente da Repblica.
O art. 8 habilita o Presidente da Repblica decretar, aps investigao, o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido ilicitamente, no exerccio de cargo ou funo pblica, inclusive de Autarquias, empresas pblicas e sociedade de economia mista.
O nico deste artigo adotou uma regra de processo que desrespeita, fere e revoga um princpio universal referente ao nus da prova. Se o atingido pelo confisco de seus bens provar que eles foram adquiridos legitimamente estes sero restitudos. Verifica-se, assim, que o Presidente da Repblica, por simples suspeita ou pelos rumores correntes no meio poltico, confisca os bens do indiciado, cabendo a este provar que os adquiriu legitimamente, para que receba a restituio deles.
O art. 9 confere ao Presidente da Repblica o direito de suspender a liberdade de reunio e de associao e estabelecer a censura de correspondncia, da imprensa, das tele-comunicaes e das diverses pblicas.
impossvel, ante esta soma de poderes conferida ao Presidente da Repblica pelo ATO INSTITUCIONAL N. 5, ousar algum, de boa f e com serenidade, negar que o Brasil est sob um regimen ditatorial.
Entra pelos olhos de quem quer ler com iseno que no Brasil destes dias s existe um Poder soberano: o Presidente da Repblica. O Poder Legislativo, quer federal, quer estadual, quer municipal perdeu, de maneira clara, patente e absoluta, a sua soberania. O Presidente da Repblica fecha o Congresso, as Assemblias Legislativas e as Cmaras Municipais quando bem entender, e a ele a exercer as funes legislativas atribudas a estes rgos eletivos. O Poder Judicirio desapareceu como poder, porque os seus membros, tanto federais quanto estaduais, podem ser demitidos ou aposentados pelo Presidente da Repblica, por simples decreto de sua lavra. A soberania deste Poder foi destruda pelo ATO INSTITUCIONAL N. 5 que tirou a autonomia e a independncia nas funes de seu cargo vontade soberana do Presidente da Repblica, que os aposentar, demitir, remover ou por em disponibilidade sem prestar contas a ningum deste seu ato.
Advirta-se, por outro lado, que o art. 10 do referido ATO INSTITUCIONAL N. 5, suspendeu a garantia do habeas-corpus nos casos de crimes polticos, contra a segurana nacional, a ordem econmica e social e a economia popular.
Isto significa que qualquer adversrio dos governantes de hoje, militares e civis, pode ser posto no crcere sem que a Magistratura, j amedrontada por falta de vitaliciedade, possa socorrer a este perseguido, restituindo-lhe prontamente a liberdade. A suspenso do habeas corpus e as ameaas de demisso ou aposentadoria dos Magistrados permitem que o Presidente da Repblica e qualquer agente do Poder Executivo ponham na cadeia, sem a menor culpa, qualquer pessoa que habite o territrio nacional, seja brasileira ou estrangeira. O arbtrio das autoridades do Pas , em matria de liberdade de seus semelhantes, nacionais ou estrangeiros, total e incontrastvel. Ningum pode acudir eficientemente a uma pessoa que tenha sido privada da sua liberdade por mero capricho e sem nenhum motivo.
Por fim, o art. 11 deste ATO INSTITUCIONAL N. 5 aqui comentado exclui de qualquer apreciao judicial todos os atos praticados de acordo com o mesmo ATO INSTITUCIONAL, declarando que o mesmo acontece com os efeitos destes Atos.
Assim, a Magistratura do Pas, te todos os graus e instncias, quer a federal quer as estaduais, tm de cruzar os braos ante quaisquer atentados praticados pelo Presidente da Repblica e por seus Agentes com fundamento no ATO INSTITUCIONAL N. 5. Pode ser a cousa mais monstruosa, quer no que se refira s pessoas quer no que se refira aos bens, que tenha surgido com base no ATO INSTITUCIONAL N. 5, no pode a Magistratura tentar anular ou modificar porque isto lhe est proibido categrica e expressamente.
A situao em que se encontra o Pas em todos os seus setores simplesmente esta: qualquer pessoa pode perder, em qualquer momento, a sua liberdade, sem que a Magistratura possa lh'a restituir condigna e imediatamente. Ningum pode reunir-se ou associar-se sem prvia autorizao do Presidente da Repblica e de seus Agentes, que podem negar a reunio ou a associao, sem dar a menor explicao. A Magistratura, provocada pelos lesados em seus direitos, no pode opor-se vontade arbitrria dos rgos do Poder Executivo. A correspondncia pode ser violada, os jornais, as emissoras de rdio e as cmaras de televiso podem ser censurados sem que a Magistratura tenha meios de evitar estes atentados. Os bens de polticos adversrios podem ser confiscados, por simples suspeio, sendo vedado Magistratura evitar to brutal confisco. Os Juzes, os militares e os funcionrios adversrios do Governo podem ser demitidos, aposentados, reformados ou postos em disponibilidade, permanecendo a Magistratura alheia a todas estas leses, de ordinrio injustas. O Presidente da Repblica, substituindo-se ao Congresso Nacional, s Assemblias Legislativas Estaduais, e s Cmaras Municipais promulga leis federais, estaduais e municipais, na qualidade de legislador universal do Pas, estando todos obrigados a acatar, cumprir e executar semelhantes leis. O Presidente da Repblica, sem expor os motivos, pode depor todos os Governadores dos Estados e todos os Prefeitos Municipais, eleitos pelo povo, nas respectivas Circunscries, nomeando Interventores de sua imediata confiana.
Este o panorama exato, indiscutvel e real da Nao Brasileira, neste instante. Nenhum homem, amigo da verdade, que saiba ler, tem o direito de negar a triste realidade que pesa, presentemente, sobre a Nao Brasileira. Os militares subiram ao Poder e o esto utilizando nos termos o Presidente da Repblica e os rgos do Poder Executivo a ele subordinados por medo, por covardia ou por interesse.
evidente que a Igreja no desfruta, neste panorama, da menor garantia e da menor segurana. Os seus Bispos e os seus Sacerdotes podem sofrer as mesmas humilhaes e leses, idnticas s de qualquer civil. A Igreja docente como a Igreja discente pode ser posta no crcere como qualquer pessoa alheia a estas duas categorias. Bispos e Sacerdotes estrangeiros podem ser expulsos, sem que possam recorrer ao Poder Judicirio. Podem, outrossim, ser levados aos Tribunais Militares, como subversivos, por em a Doutrina Social da Igreja. Militares h que pretendem interpretar esta doutrina contrariamente interpretao de alguns Bispos brasileiros. Contra estes abusos no h para quem recorrer, porque, neste momento, s existe um rgo soberano na Nao Brasileira: o Presidente da Repblica e os rgos do Poder Executivo a ele subordinados.
O ATO INSTITUCIONAL N. 5 fez calar a tribuna parlamentar, ps em silncio a tribuna jornalstica, suprimiu a tribuna estudantil e ameaa, permanentemente, a tribuna sagrada, tribuna que, aqui e acol, tambm j fez calar.
Ante isto, depois disto e consoante isto, dizer, algum, que o Brasil no est sob uma ditadura , positivamente, afrontar a verdade soberana e indiscutvel.
H. Sobral Pinto
UM JURISTA CATLICO DE COMUNHO DIRIA
Rio de Janeiro, 13 de janeiro de 1969.
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