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Democracia de iguais, mas diferentes 32r2z

Maria Victoria Benevides 462r1

A comemorao do cinqentenrio da Declarao Internacional dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, tem motivado o aprofundamento do debate em torno da idia e da vigncia da democracia, entendida como o regime poltico que melhor protege e promove os direitos humanos.

Sem dvida, podemos definir democracia como o regime poltico fundado na soberania popular e na separao e desconcentrao de poderes, com pleno respeito aos direitos humanos. Esta breve definio tem a vantagem de agregar democracia poltica e democracia social; isto , rene as liberdades civis, a separao e o controle sobre os poderes, a alternncia e a transparncia no poder, a igualdade jurdica e a busca da igualdade social, a exigncia da participao popular na esfera pblica, a solidariedade, o respeito diversidade e a tolerncia. 5j1o43

A associao imediata entre democracia e direitos humanos na sociedade contempornea, e especialmente no Brasil, no decorre de um consenso. Pelo contrrio. corrente a afirmao de que estamos "em plena democracia", uma vez que temos voto universal e eleies peridicas, que os poderes constitucionais funcionam e no existe censura nem presos polticos. Quanto aos direitos humanos, conhecida a manipulao do conceito, visando a identific-los como "direitos dos bandidos".

Pretendo, neste texto, contribuir para o debate a partir de algumas questes que considero cruciais:

o que so direitos humanos, com especial destaque para a questo da igualdade;

a polmica em torno da oposio virtual entre universalidade de direitos humanos e o direito cultura, ou diferena;

a educao para a democracia, como sada para se enfrentar a discriminao e o preconceito por intermdio de uma nova "cultura democrtica".

Parto, ainda, de uma inquietao que vem sendo crescentemente espicaada: at que ponto os direitos humanos, vinculados a princpios e valores tidos por "universais", respondem s necessidades de reconhecimento da legitimidade de particularidades, seja em termos do direito cultura, seja em termos de especificidades biolgico-culturais, como as questes de gnero. Para essa questo adianto apenas algumas consideraes, pois entendo que persistem ainda muitas dvidas e perplexidades, sobretudo referentes s chamadas polticas de ao afirmativa em relao s quais, no caso brasileiro, tenho uma posio em princpio favorvel.

Direitos humanos e a questo da igualdade

Direitos humanos so aqueles direitos comuns a todos os seres humanos, sem distino de raa, etnia, nacionalidade, sexo, orientao sexual, nvel socioeconmico, religio, instruo, opinio poltica e julgamento moral, e que tm como pressuposto bvio o direito vida. Decorrem do reconhecimento da dignidade intrnseca a todo ser humano e diferem dos direitos do cidado embora estes estejam, em grande parte, a includos , porque os direitos humanos extrapolam as condies legais e as fronteiras, as quais definem a cidadania e a nacionalidade. A ausncia de cidadania jurdica, por exemplo, no implica ausncia de direitos humanos.

Para fins didticos e de compreenso histrica, costuma-se classificar os direitos humanos em trs geraes, as quais, de certa forma, corresponderiam queles ideais da Revoluo sa: liberdade, igualdade e fraternidade. A primeira gerao, englobando os direitos civis e polticos e as liberdades individuais, fruto da longa marcha das idias liberais e tem sua insero histrica marcada pelas conquistas da "democracia americana". A segunda gerao, correspondente aos direitos econmicos e sociais basicamente vinculados ao mundo do trabalho , permanece associada s lutas operrias e socialistas na Europa, e sempre referidas ao ideal da igualdade. A terceira gerao, entendida como o conjunto de direitos decorrentes do ideal da fraternidade e da solidariedade (alguns falam at em "solidariedade planetria") corresponde ao direito autodeterminao dos povos e ou a incluir, mais recentemente, o direito ao desenvolvimento, o direito paz, o direito ao meio ambiente saudvel, ao usufruto dos bens qualificados como "patrimnio comum da humanidade".

Em relao ao contedo de cada gerao vale lembrar que determinadas sociedades, mesmo se afirmando democrticas, enfatizam prioridades ou simplesmente recusam certos direitos o que j compromete a "universalidade". Os liberais conservadores, por exemplo, apegam-se aos direitos da primeira gerao e denunciam sua violao por parte dos regimes autoritrios, mas sempre tiveram srias dificuldades para aceitar, como direitos fundamentais, os de segunda gerao, os direitos sociais. At hoje os Estados Unidos, enquanto Estado, recusam tal associao o que explica, em parte, a nfase americana na expresso "direitos civis" e no "direitos humanos" e, em decorrncia, excluem as prestaes positivas no campo social, como sade e previdncia, por exemplo, no velho estilo hoje renomeado, entre ns, de neoliberal.

Em termos de direitos universais, a liberdade corresponde aos direitos e garantias para o exerccio das liberdades individuais ou coletivas; inclui do direito integridade fsica e psquica aos direitos de expresso e de organizao poltica. A igualdade corresponde aos direitos igualdade diante da lei, mas tambm em relao a necessidades bsicas, como sade, educao, habitao, trabalho e salrio justo, seguridade e previdncia etc. A solidariedade, que os ses chamaram de fraternidade, corresponde ao direito e ao dever de co-responsabilidade pela busca do bem comum, o que implica participao na vida pblica.

preciso destacar o direito-dever da solidariedade, sobretudo num pas como o nosso, pois comumente a palavra assume, entre ns, significados prximos idia de caridade, assistencialismo, boa vontade. No entanto, se aceitamos a premissa da igualdade na dignidade humana, a solidariedade deve ser entendida em vrias acepes: 1) a coeso entre diferentes indivduos e grupos indispensvel manuteno do todo social, pois cada qual traz ao conjunto uma contribuio insubstituvel; 2) os indivduos ou grupos que se acham em situao de fraqueza ou deficincia, devem ser amparados pelos outros. Todos tm igual direito a uma vida digna, sem privaes do que razoavelmente considerado essencial (Comparato, 1993). Justificam-se aqui, por exemplo, os programas de renda mnima, j aprovados em pases do Primeiro Mundo e em implementao em nosso Distrito Federal e em algumas outras cidades.

Outro ponto a ser destacado a relao, muitas vezes vista como dilemtica, entre igualdade e liberdade. Se os direitos civis e polticos exigem que todos gozem da mesma liberdade, so os direitos sociais que garantiro a reduo das desigualdades de origem; caso contrrio, a falta de igualdade pode acabar gerando, justamente, a falta de liberdade. Por sua vez, no menos verdade que a liberdade propicia as condies para a reivindicao de direitos sociais.

preciso entender claramente o significado de igualdade contido na proposta da cidadania democrtica. evidente que no se supe a igualdade como "uniformidade" de todos os seres humanos com suas saudveis diferenas de raa, etnia, sexo, ocupao, talentos especficos, religio e opo poltica, cultura no sentido mais amplo. O contrrio da igualdade no a diferena, mas a desigualdade, que socialmente construda, sobretudo numa sociedade to marcada pela explorao classista. As diferenas no significam, necessariamente, desigualdades, isto , no existe uma valorao hierrquica inferior/superior na distino entre pessoas diferentes. Homens e mulheres so obviamente diferentes, mas a desigualdade estar implcita se tratarmos essa diferena estabelecendo a superioridade masculina, por exemplo. O mesmo pode ser dito das diferenas culturais e tnicas.

Em outras palavras, a diferena pode ser enriquecedora, mas a desigualdade pode ser um crime. nesse sentido que se entende porque, no Direito contemporneo (inclusive na legislao brasileira), manifestaes de discriminao ou racismo no trabalho, no o a bens e servios, nas diversas formas de expresso social so tipificadas como crime, em alguns casos insuscetveis de fiana ou prescrio. No entanto, as desigualdades sociais, to evidentes no Brasil com sua herana da escravido sempre presente , no so ainda entendidas como crime, mesmo quando decorrem de polticas ostensivamente excludentes.

A igualdade sempre uma dimenso social, no individual. Ao contrrio da liberdade, ela ocorre sempre dentro de um grupo social, ou entre grupos sociais, e no entre indivduos isoladamente considerados. Podemos identificar quatro dimenses da igualdade democrtica:

a igualdade diante da lei; um pressuposto da aplicao concreta da lei, quer proteja, quer puna. o que os gregos chamavam de isonomia;

a igualdade do uso da palavra, ou da participao poltica; o que os gregos chamavam de isegoria;

a igualdade que decorre, num paradoxo apenas aparente, do direito diferena, ou seja, o direito que todos igualmente tm de preservar sua identidade, bem como exigir tratamento especfico em atendimento a necessidades singulares dessa identidade (no caso, por exemplo, dos direitos especficos das mulheres);

a igualdade de condies socioeconmicas bsicas, para garantir a dignidade humana. Desconhecida dos gregos antigos, o resultado das revolues burguesas mas, principalmente, das lutas do movimento operrio e socialista nos sculos XIX e XX.

Fbio Comparato (1993) insiste, com razo, em que essa quarta igualdade no configura um pressuposto, mas uma meta a ser alcanada, no s por meio de leis, mas pela correta implementao de polticas pblicas. Pois a desigualdade aqui considerada a que afeta as classes, grupos ou o gnero inferiorizados, isto , que possuem menos fora ou capacidade de autodefesa na sociedade. As classes ou grupos sociais inferiorizados tm direito ao exerccio, pelo Estado, de uma poltica de integrao social.

Para Aristteles a democracia seria o regime fundado na idia de que os homens so iguais em tudo, e a oligarquia, aquele fundado na idia de que os homens so desiguais em tudo. Na verdade, a democracia o regime em que todos tm, igualmente, direito a cultivar seus prprios valores e modos de vida, desde que isso no importe em subordinar ou oprimir outros grupos e pessoas (Comparato, 1993).

A trade liberdade-igualdade-solidariedade a base do regime democrtico.

Direitos universais e direitos diferena: o relativismo cultural

A discusso atual sobre direitos humanos tem provocado muita polmica sobre a relao entre a universalidade dos direitos e a crescente reivindicao pelo reconhecimento da diversidade cultural, em todos os sentidos. Aqui discutem-se o significado da tolerncia um dos valores essenciais da democracia e do reconhecimento de que direitos humanos tornaram-se "um tema global".

O que significa tratar direitos humanos como um "tema global"? Significa reconhecer que j existe, em mbito mundial, a adeso a um campo comum de valores que independentemente de quaisquer variveis, individuais ou coletivas, decorrentes de sexo, raa, etnia, nacionalidade, religio, nvel de instruo, julgamento moral, opo poltica e classe social definem a humanidade, a dignidade de todo ser humano. Tais valores transcendem, hoje, o quadro histrico do anticolonialismo e do anti-racismo (embora os incorporem, evidente), alm dos direitos e das liberdades consagradas no liberalismo clssico, para abranger o direito paz, ao desenvolvimento, cultura, ao reconhecimento do direito s diferenas e particularidades, mantendo-se a premissa da igualdade, a postulao de uma nova ordem poltica e econmica mais solidria.

Tratar direitos humanos como um tema global no , evidentemente, a mesma coisa que falar em "globalizao" dos direitos humanos. A globalizao do Direito pode significar, por exemplo, a extenso ultrafronteiras de um determinado interesse como a defesa do meio ambiente ou o o ao patrimnio cultural e cientfico da humanidade. Falar em direitos humanos como tema global tambm no significa priorizar determinados interesses internacionais, mesmo os mais nobres, mas colocar em primeiro plano a abrangncia global de valores ticos enraizados nas noes de justia e igualdade. Volta-se, assim, aos ideais, no concretizados na maior parte do mundo, da Revoluo sa e da Declarao Universal de 1948.

Deve ser lembrado, ademais, que a Conferncia Internacional de Direitos Humanos, em Viena ( ONU, 1993), consagrou como consenso bsico o reconhecimento da unidade do gnero humano o que lhe confere a dignidade , apesar de manter a nfase no respeito e na tolerncia diversidade das naes, das regies e dos grupos sociais em seus aspectos histricos, culturais e religiosos.

O contedo da terceira gerao de direitos humanos vem despertando especial polmica, pois muitos estudiosos todos do primeirssimo mundo, ciosos de sua hegemonia econmica e cultural apontam para a impreciso e a heterogeneidade do elenco de direitos, alm de problemas no plano jurdico para sua efetivao. A principal dificuldade jurdica reside no fato de que tais direitos, de fruio tambm coletiva, contrariam o entendimento mais corrente sobre o "individualismo" em que se baseia a conceituao tradicional de direitos humanos, na tica do Ocidente. Vale lembrar, no entanto, o avano conseguido em Viena, no sentido de que o direito ao desenvolvimento, alm de concebido como de titularidade individual e coletiva (ou seja, para todas as pessoas e para todos os povos) foi reforado como um direito universal e inalienvel e parte integrante dos direitos humanos fundamentais.

Mas a questo crucial diz respeito virtual oposio entre a universalidade dos direitos humanos e o relativismo cultural. A polmica to mais intensa porque no apenas envolve questes tericas, muito caras aos antroplogos, por exemplo, como e sobretudo envolve delicadas questes de ordem poltica. Estas, no plano mundial, tendem a opor conceitos diversos do que sejam "civilizaes" e a fomentar acusaes de etnocentrismo, o qual visaria especificamente uma possvel "dominao cultural do Ocidente".

Boaventura de Souza Santos (1997) entra fortemente na polmica afirmando que

"enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos humanos tendero a operar como localismo globalizado uma forma de globalizao de-cima-para-baixo. Sero sempre um instrumento do choque de civilizaes, ou seja, como arma do Ocidente contra o resto do mundo".

E prope, como tarefa central da poltica emancipatria de nosso tempo "a transformao da idia e da prtica dos direitos humanos de um localismo globalizado num projeto cosmopolita". Como Santos insiste na excelncia da abordagem marxista aquela, segundo ele, que enfatiza a igualdade no plano socioeconmico, em detrimento da abordagem liberal, que apenas defenderia a igualdade no plano poltico , vale a pena conhecer melhor suas teses. Por todas as consideraes at agora feitas, no estou convencida de que apenas a verso marxista considera a questo da defesa dos direitos humanos com nfase na igualdade social; a verso da democracia radical, por mim adotada, enfatiza exatamente a urgncia dessa igualdade, sobretudo num pas como o Brasil.

No plano interno das naes, o reconhecimento do direito dos povos a sua cultura tende a exacerbar reaes centralizadoras do Estado face s "minorias", bem como as reivindicaes especficas de grupos por um certo tipo de "polticas compensatrias" (mulheres, negros, pobres) tende a levantar outros tipos de discriminao. Como foi amplamente divulgado pela imprensa, na poca, esse tema provocou intensos debates em Viena, tendo sido veementemente questionado pelos pases asiticos e africanos e os de religio islmica. A prpria associao entre direitos humanos e desenvolvimento econmico comeou a ser contestada em funo do que seria entendido como imposio de um determinado "modelo" de desenvolvimento, o qual pode significar "progresso" para os pases ricos s custas da explorao de mo-de-obra proletarizada dos pobres. Por outro lado, a extino de uma determinada cultura, devido ao "progresso" da cincia ou da tecnologia, pode ser considerada um atentado s liberdades fundamentais.

O relativismo cultural representa uma faca de dois gumes: pode, sem dvida, significar proteo s minorias, quando so respeitados os elementos de configurao das identidades. Mas pode significar, tambm, a complacncia com costumes que atentam contra a dignidade do ser humano (mutilaes rituais ou castigos degradantes, por exemplo, especialmente graves no caso de agresso s mulheres) ou, no outro extremo, a escalada de conflitos tnicos e do fundamentalismo religioso que, alm de atingir o conjunto das populaes envolvidas, ainda significam maior violncia contra as mulheres, como na histria recentssima do Afeganisto e da Arglia.

O debate sobre o relativismo cultural leva discusso do multiculturalismo, tema candente sobretudo na rea da educao. Pelo que se tem observado, sem qualquer pretenso de aprofundamento, at os movimentos polticos de esquerda tendem a refutar teses radicais sobre o multiculturalismo, bem como sobre qualquer poltica pblica de "ao afirmativa", como as que existem nos Estados Unidos para negros, mulheres, hispnicos, deficientes. Muitos estudiosos consideram que a oposio entre universalidade dos direitos humanos e direito cultura encerra um dilema. Considero, no entanto, que a nica sada defender, em todas as situaes, que possvel reconhecer um consenso em torno da hierarquia dos princpios e das normas, no qual predomina o direito vida e integridade fsica e psquica de todo ser humano. Nesse sentido, o direito cultura deve estar condicionado tambm ao princpio da liberdade individual: cabe ao adulto escolher livremente sua identificao cultural ou no escolher, ou desistir da escolha, em qualquer poca.

Tal discusso obriga ao redimensionamento do alcance e dos limites da virtude cvica da tolerncia, essencial s democracias.

Em primeiro lugar, claro que essa tolerncia no significa levar ao extremo o temor do etnocentrismo e, da, bloquear todo julgamento tico e poltico em nome do relativismo cultural. O respeito diferena no significa esterilidade de convices. No se trata de uma simples virtude iva, de aceitao ou de ividade, mas rene dois sentidos, estreitamente vinculados aos demais valores democrticos da igualdade e da liberdade: a tolerncia como respeito s diferenas e variedade da criatividade cultural e a tolerncia como o reconhecimento pleno da igualdade em dignidade de todos indivduos ou grupos apesar das diferenas.

A tolerncia democrtica ope-se ao autoritarismo e ao dogmatismo sob todas as suas formas polticas, sociais, morais e cientficas. Para a conscincia democrtica a tolerncia no ser empecilho para denunciar e repudiar o intolervel, como a discriminao e a agresso aos diferentes, que leva ao racismo, ao sexismo, ao fundamentalismo religioso, s diferentes formas do nazi-fascismo; o recurso irresponsvel da busca de solues violentas dos conflitos; a falta de tica nas relaes profissionais e na poltica.

evidente que a definio do que seja "intolervel" vai variar na mesma medida que variam identidades culturais, com suas noes prprias de dever, direito, justo e injusto, amigo, inimigo. A melhor discusso que encontrei, no meio acadmico, sobre o tema, a desenvolvida por Celi Pinto (1997). Essa autora levanta questes fundamentais: at que ponto se ite a diferena? Todas as diferenas devem ser incorporadas como veis de convivncia? possvel um mundo de diferenas absolutas?

A autora discute como

"os entusiastas da diferena e de um multiculturalismo ingnuo tendem a ver toda construo de identidade e toda a manuteno da diferena como conquistas. Entretanto, deve-se chamar a ateno para o fato de que um considervel nmero de identidades se constituiu no pelos sujeitos que, por meio delas, foram enunciados, mas pelo seu contrrio, pelo dominador. Negros, mulheres, ndios, imigrantes, minorias tnicas das mais diversas, todos foram nomeados pelos brancos, homens etc. Caractersticas associadas cor da pele, ou ao sexo, condio social ou localizao espacial, tm-se constitudo historicamente como formas de dominao".

Estamos diante de um problema, continua, que s pode ser resolvido pela tolerncia e mal resolvido, na medida em que tolerar identidades , ao mesmo tempo, congel-las e no as integrar. Por outro lado, a incluso de uma determinada diferena em um dado cenrio de foras, em uma dada comunidade, no um fenmeno simples. A incluso no a eliminao da diferena, mas o reconhecimento da diferena; a excluso, essa sim, o no-reconhecimento do outro ( Pinto, 1997). Celi Pinto conclui retomando os elementos do quadro dominante/dominado:

"Devemos redirecionar a discusso no sentido de buscar formas de redistribuio de poder na sociedade, que tenham como resultado o fim da necessidade de alguns grupos identitrios dependerem da tolerncia para garantir at mesmo suas vidas".

difcil no concordar com ela.

Educao para a cidadania e em direitos humanos

A violao sistemtica de direitos humanos em nosso pas, em todas as reas, incompatvel com qualquer projeto de cidadania democrtica. fato inegvel que, no Brasil, os direitos polticos sempre antecederam os direitos sociais. Criamos o sufrgio universal o que , evidentemente, uma conquista mas, com ele, criou-se tambm a iluso do respeito pelo cidado. A realizao peridica de eleies convive com o esmagamento da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimenses. A constatao desse quadro sombrio nos leva a refletir, conforme Paulo Freire, sobre a importncia da educao como transformao no sentido da construo de uma sociedade democrtica.

O artigo 13 do Pacto Internacional das Naes Unidas, relativo aos direitos econmicos, sociais e culturais (O NU, 1966), reconhece no apenas o direito de todas as pessoas educao, mas que esta deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, na sua dignidade; deve fortalecer o respeito pelos direitos humanos e as liberdades fundamentais; deve capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre. Temos a, portanto, um marco jurdico importante para a reivindicao da educao para a cidadania.

Outro importante marco jurdico de abrangncia mundial a Conveno para a eliminao de todas as formas de discriminao contra mulheres (ONU, 1979). Em seu artigo 5 estabelece que os Estados membros devem tomar as medidas necessrias para "modificar os padres sociais e culturais na conduta de homens e mulheres, visando a eliminao de preconceitos e prticas derivadas da crena na inferioridade ou superioridade de um dos sexos". No artigo 10 estabelece que devem ser tomadas todas as medidas para implementar programas de educao mista, garantindo direitos iguais s mulheres e promovendo reviso nos textos didticos preconceituosos e na prpria metodologia do ensino. Nos dois casos trata-se de estimular iniciativas de educao para a democracia, nos termos aqui defendidos.

preciso deixar claro que aqui identificamos especificamente a educao para a cidadania democrtica. Essa ressalva parece bvia, mas ela se justifica quando lembramos que a formao de cidados sempre foi preocupao de regimes totalitrios, no sentido da mobilizao e da inculcao de valores de submisso ptria e ao culto personalidade, de exaltao das aes militares e do nacionalismo xenfobo, da discriminao dos considerados "diferentes ou inferiores", da padronizao absoluta de opinio, religio, comportamento etc. Os trgicos exemplos do nazismo, do stalinismo e dos fascismos deste sculo so eloqentes; seus governantes investiram eficientemente na educao de cidados comprometidos com valores radicalmente contrrios democracia.

A educao para a cidadania democrtica consiste na formao de uma conscincia tica que inclui tanto sentimentos como razo; a pela conquista de coraes e mentes, no sentido de mudar mentalidades, combater preconceitos e discriminaes e enraizar hbitos e atitudes de reconhecimento da dignidade de todos, sejam diferentes ou divergentes; a pelo aprendizado da cooperao ativa e da subordinao do interesse pessoal ou de grupo ao interesse geral, ao bem comum. Se falamos em tica, trata-se de confirmar valores; nesse sentido, a educao para a democracia inclui o desenvolvimento de virtudes polticas decorrentes dos valores republicanos e democrticos.

Por virtudes republicanas entendem-se:

a) o respeito s leis, vistas como "educadoras", no sentido da autonomia, isto , leis decididas em processos regulares e amplamente participativos;

b) o respeito ao bem pblico, acima do interesse privado e patriarcal, tpico de nossa tradio domstica;

c) o sentido da responsabilidade no exerccio do poder, com a conscincia dos males coletivos que resultam do descumprimento dos deveres prprios de cada um, nas diferentes esferas de atuao do cidado.

Por virtudes democrticas entendem-se:

a) o reconhecimento da igualdade e o conseqente horror aos privilgios;

b) a aceitao da vontade da maioria legalmente formada decorrente de eleies ou de outro processo democrtico, porm com constante respeito aos direitos das minorias. No Brasil, como sabido, as grandes maiorias do ponto de vista socioeconmico permanecem alijadas da participao poltica, apesar de votarem nas eleies. O desafio democrtico para a construo da cidadania , justamente, a transformao dessa maioria social em maioria poltica;

c) o respeito integral aos direitos humanos.

Os direitos implcitos nos valores so definveis intelectualmente, mas evidente que o seu conhecimento no ser suficiente para que eles sejam respeitados, promovidos e protegidos. Os direitos so histricos: preciso entend-los nas suas origens, mas tambm no seu significado atual e universal, assim como mister compreender as dificuldades polticas e culturais para sua plena realizao.

Em outros termos, democracia, cidadania e direitos esto sempre em processo de construo. Isso significa que no podemos congelar, para uma determinada sociedade, uma lista fechada de direitos. Tal lista ser sempre historicamente determinada. Como assinalou Hannah Arendt (1988), o que permanece inarredvel, como pressuposto bsico, o direito a ter direitos.

O processo de construo democrtica, lembra Marilena Chau (1984), implica a criao de espaos sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e a definio de instituies permanentes para a expresso poltica, como partidos, legislao e rgos dos poderes pblicos. Distingue-se, portanto, a cidadania iva aquela que outorgada pelo Estado, com a idia moral da tutela e do favor da cidadania ativa, aquela que institui o cidado como portador de direitos e deveres, mas essencialmente criador de direitos para abrir espaos de participao e possibilitar a emergncia de novos sujeitos polticos.

A escola pode ser um locus excelente para a educao para a cidadania. Alguns programas de formao de professores em direitos humanos (desde a gesto de Paulo Freire na Secretaria de Educao da cidade de So Paulo) assim o indicam. Mas existem outros espaos para a educao para a cidadania eleies, partidos, associaes profissionais, sindicatos, movimentos sociais e populares, mecanismos institucionais de democracia direta (como o plebiscito, o referendo, a iniciativa popular legislativa, o mandato imperativo, a revogao de mandatos, os conselhos populares, o oramento participativo etc.).

Alm das iniciativas de partidos e movimentos, cabe reivindicar a implementao das propostas de educao para a cidadania, como aquelas previstas no Programa Nacional de Direitos Humanos, apresentado pelo Ministrio da Justia e com o apoio explcito da Presidncia da Repblica, em maio de 1996. Cabe, igualmente, discutir e aprofundar os novos "Parmetros Curriculares", do Ministrio da Educao, que prevem a educao para a cidadania por meio de "temas transversais" nas escolas de primeiro, segundo e terceiro graus. Deve ser lembrado, ainda, o recente Programa Estadual de Direitos Humanos, do governo de So Paulo. So propostas pblicas, em relao s quais a cidadania democrtica deve se manifestar eventualmente para criticar e transformar.

Finalmente, na discusso de direitos e valores democrticos nunca ser demais enfatizar a solidariedade como uma virtude poltica ativa por isso difcil de ser cultivada , pois exige uma ao positiva para o enfrentamento das diferenas injustas (que, por serem injustas caracterizam desigualdades) entre os cidados. Assim, no basta educar para a tolerncia e para a liberdade, sem o forte vnculo estabelecido entre igualdade e solidariedade. Esta implicar o despertar dos sentimentos de indignao e revolta contra a injustia e, como proposta pedaggica, dever impulsionar a criatividade das iniciativas tendentes a suprimi-la, bem como levar ao aprendizado da participao popular nos processos decisrios, em funo no apenas de prioridades sociais, como tambm para a reivindicao e o reconhecimento efetivo das diferenas e das particularidades.

Bibliografia

Arendt, Hannah. 1988. Da Revoluo. So Paulo, tica.
Benevides, Maria Victoria de Mesquita. 1992. A cidadania ativa. So Paulo, tica.
________. 1996. Educao para a Democracia. Lua Nova, So Paulo, n 38, p. 223-38.
________. 1998. O desafio da educao para a cidadania. In: Aquino, Jlio Groppa, org. Diferenas e preconceito na escola. So Paulo, Summus Editorial.
Chau, Marilena. 1984. Cultura e democracia. So Paulo, Moderna.
Comparato, Fbio Konder. 1993. A nova cidadania. Lua Nova, So Paulo, n 28/29, p. 85-106.
________. 1993. Para viver a democracia. So Paulo, Brasiliense.
________. 1996. Igualdade, desigualdades. Revista Trimestral de Direito Pblico, So Paulo, p. 69-78.
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Pinto, Celi Regina Jardim. 1997. Para alm da tolerncia. Texto para discusso, Depto. de Cincia Poltica da UFRGS.
Santos, Boaventura de Souza. 1997. Por uma concepo multicultural de direitos humanos. Lua Nova, So Paulo, n 30, p. 105-124.


Maria Victoria Benevides
Sociloga, professora titular da Faculdade de Educao da USP e diretora da Escola de Governo, em So Paulo. autora, entre outros livros, de A cidadania ativa (tica).

(Texto publicado no livro Mulher e poltica Gnero e feminismo no Partido dos Trabalhadores, organizado por Angela Borba, Nalu Faria e Tatau Godinho (Editora Fundao Perseu Abramo, 1998.)

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