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A
Tortura
Frei
Betto
escritor, autor de Batismo de Sangue
(Casa Amarela), entre outros livros.
Na
quinta-feira, trs policiais acordaram-me mesma hora do
dia anterior. De estmago vazio, fui para a sala de
interrogatrios. Um capito, cercado por sua equipe, voltou
s mesmas perguntas: Vai ter que falar seno s sai
morto daqui!, gritou. Logo vi que isso no era apenas uma
ameaa, era quase uma certeza. Sentaram-me na cadeira-do-drago,
com chapas metlicas e fios, descarregaram choques nas mos,
nos ps, nos ouvidos e na cabea. Dois fios foram amarrados
em minhas mos, e um na orelha esquerda. A cada descarga, eu
estremecia todo, com se o organismo fosse se decompor. Da sesso
de choques aram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas
no peito e nas pernas, que cada vez mais se curvavam para
aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo ferido e
sangrando, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado.
Conduziram-me a outra sala, dizendo que ariam a descarga
eltrica para 220 volts, a fim de que eu falasse antes de
morrer. No chegaram a faz-lo. Voltaram s perguntas,
bateram em minhas mos com palmatrias. As mos ficaram
roxas e inchadas, a ponto de no poder fech-las. Novas
pauladas. Era impossvel saber qual parte do corpo doa
mais; tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, no
poderia responder s perguntas: o raciocnio no se
ordenava mais, restava apenas o desejo de perder novamente os
sentidos. Isso durou at as dez da manh, quando chegou o
capito Albernaz (Batismo de Sangue, ed. Casa Amarela, p.
260).
O
trecho acima uma amostra do relato de torturas sofridas por
Frei Tito de Alencar Lima, em 1969, nas dependncias do
Doi-Codi de So Paulo, onde mais tarde Vladimir Herzog e
Manoel Fiel Filho seriam suicidados. Enlouquecido pelas
agresses, o frade dominicano veio a falecer em 1974.
A
tortura deixou de existir para sempre, escreveu Victor Hugo
em 1874. Infelizmente o autor de Les Misrables equivocou-se.
Nem a tortura nem os que ousam tentar justific-la
desapareceram. Segundo a Anistia Internacional, a tortura
aplicada ou tolerada por governos de pelo menos 60 pases,
entre os quais o Brasil.
Hlio
Pellegrino frisou que a tortura busca, custa do
sofrimento corporal invel, introduzir uma cunha que
leve ciso entre o corpo e a mente. E, mais do que isto:
ela procura, a todo preo, semear a discrdia e a guerra
entre o corpo e a mente. () O projeto da tortura implica uma
negao total e totalitria da pessoa, enquanto ser
encarnado. O centro da pessoa a liberdade. Na tortura, o
discurso que o torturador busca extrair do torturado a negao
absoluta e radical de sua condio de sujeito livre
(Folha de S. Paulo 5/6/82).
O
Antigo Testamento defende os escravos das arbitrariedades:
Se algum ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara,
e o ferido morrer debaixo de sua mo, ser punido (xodo
21, 20). So Paulo chega a apelar sua cidadania romana
para livrar-se das sevcias (Atos 22, 24). Tertuliano, no sculo
II, exorta os soldados convertidos f crist a evitarem
torturas (De Corona). Lactncio, no sculo IV, em sua
Divinae Institutiones, condena a tortura por ser contra o
direito humano e contra qualquer bem.
Santo
Agostinho, na Cidade de Deus, repudia a sua aplicao por
tratar-se de pena imposta a quem ainda no se sabe se
culpado. No entanto, a Inquisio tentou sacramentar a
tortura. Tortura-se o acusado, com o fim de o fazer
confessar os seus crimes, reza o Manual dos Inquisidores,
de Nicolau Emrico. So Toms de Aquino, porm, considerou
a tortura delito mais grave que o homicdio, pois aquela
convoca a vtima a ser testemunha de seu oprbrio.
A
condio de filsofo no impediu Heidegger de apoiar o
nazismo, nem a de papa evitou que fossem a favor da tortura
Inocncio I (s. V), Inocncio IV (s. XIII) e todos os telogos
que abenoaram a Inquisio.
Sob
o regime militar, nenhum agente do Estado, pago pelo
contribuinte para defender e encarnar as leis, tinha o direito
de torturar, ass e fazer desaparecer pessoas. So
crimes hediondos. No entanto, enquanto a Argentina mandou para
a cadeia os militares responsveis pela ditadura, e agora o
Chile d-nos um exemplo de cidadania e democracia, apurando
os crimes praticados em nome do combate ao terrorismo, sem
poupar o general Pinochet, aqui uma lei de anistia que
envergonha os princpios do Direito assegura impunidade aos
torturadores e ainda enseja articulistas a consideraes
filosficas sobre a nica matria que a memria se
recusa a esquecer: a dor humana.
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