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Privatiza-se a soberania
nacional
Frei Betto
George Orwell poderia
escrever hoje o "2084", um novo exerccio de
futurologia crtica, consideradas as tendncias atuais. Mas no
preciso recorrer a ele ou a Arthur Clarke para prever que a
globocolonizao nos conduz reduo do mundo a um s pas
e um s governo.
O comunismo deixa
de ameaar, o neoliberalismo impera, a internet pe abaixo as
fronteiras da comunicao. Senhores de todas as terras, ares e
mares, os EUA mantm o planeta sob vigilncia (vide a espionagem
sobre a China) e intervm em qualquer ponto, ainda que sob o
disfarce de boina azul da ONU (como em Iraque e Timor Leste). O
ingls torna-se o idioma internacional. Os pases afunilam-se em
blocos regionais: Unio Europia, Comunidade dos Estados
Independentes, Associao das Naes do Sudeste Asitico,
Cooperao Econmica da sia e do Pacfico, Comunidade da frica
Meridional para o Desenvolvimento e, em breve, a Alca. "A Amrica
para os americanos", eis em resumo a doutrina Monroe, vigente
desde 1823, e a Alca vista pela tica da Casa Branca.
Prova disso o
artigo publicado na "Folha de S.Paulo" (22/4/01) pelo
general Colin Powell, secretrio de Estado dos EUA. Entre 729
palavras, o verbo "comprar" no figura nenhuma vez. Mas
ele no hesita em afirmar: "Ns poderemos vender
mercadorias, tecnologia e servios americanos sem obstculos ou
restries dentro de um mercado nico de mais de 800 milhes
de pessoas, com uma renda total superior a US$ 11 trilhes,
abrangendo uma rea que vai do rtico ao cabo Horn". O
processo de adestramento ideolgico eficaz. O que se subtende
quando se fala em "americanos"? Os do sul ou do centro?
bvio, os do norte, como se o resto fosse mero apndice. O que
se entende por norte-americano? A pergunta caiu num exame. Muitos
candidatos perderam pontos por responder segundo o "Aurlio":
"Dos, ou pertencente ou relativo aos Estados Unidos da Amrica.
O natural ou habitante desse pas". Poucos atinaram que os
nascidos no Mxico e no Canad tambm o so.
O paradigma
estadunidense -nos imposto, primeiro, pelas figuras de Walt
Disney que nos am, como bem analisou Ariel Dorfman, os esteretipos
de uma sociedade desigual e excludente. Os filmes de Hollywood
infundem-nos o "american dream", a ponto de renegarmos o
mais atvico dos hbitos, o culinrio, trocando a variedade de
nossos pratos por sanduches com gosto de isopor. Engordam e do
status. A Alca, nos termos debatidos em Qubec (que ningum sabe
se a Casa Branca respeitar, aps ter jogado na latrina a Carta
de Kyoto), assinala o fim de nossa soberania e autodeterminao.
A ianquizao da Amrica Latina faz com que Panam e Equador
reneguem suas moedas nacionais em favor do dlar; a Argentina
cavalga assustada na dolarizao do peso; a Colmbia entrega
polcia e Justia em mos ianques; poucos reagem ao bloqueio
imposto pela Casa Branca a Cuba e ningum diz da anexao de
Porto Rico aos EUA. A elite de nossos pases remete seus filhos
para as mesmas escolas que formaram economistas na arte de
estabilizar moedas sem estabilizar a esfera social; a poltica
econmica de nossos governos monitorada em Washington pelo FMI
e pelo Banco Mundial; os ndices da Bolsa de Nova York figuram
diariamente no noticirio televisivo, prova de que o nosso parmetro,
eufemisticamente chamado de integrao, o Big Brother.
Por que o Brasil
deve participar da Alca? Ela ampliar o nosso comrcio exterior,
criar novos empregos, atrair mais investimentos diretos e far
com que os nossos produtos tenham o ao robusto mercado dos
EUA, dizem os que tm a cabea "alcalinizada" por Tio
Sam. De fato, a Alca pode significar a privatizao da soberania
nacional. O caso Embraer-carne bovina, com o Canad, demonstrou
como, na prtica, a teoria outra. Canad e EUA no parecem
dispostos a levantar suas barreiras alfandegrias e tarifrias,
mexer em sua legislao antidumping e suprimir os subsdios agrcolas
e comerciais. Nem perder o controle sobre a Organizao Mundial
do Comrcio. Segundo o Ipea, iniciada a Alca, as exportaes
brasileiras crescero 10% ao ano. Seria timo se a previso no
fosse de as importaes saltarem para 30%. Por enquanto, a Alca
um caso de seduo.
Noiva deslumbrada,
a Amrica Latina se entrega ao charme de Tio Sam, disposta a se
casar. Esposa submissa, est disposta a fazer concesses,
inclusive perder sua autonomia, para salvar a harmonia da unio.
Por fim aos impostos destinados rea social, mudar a
legislao trabalhista para prejudicar ainda mais a faxineira,
deixar que o marido decida onde fazer compras, ainda que o
concorrente venda mais barato um produto melhor.
Por que o Brasil no
copia dos EUA o que tm de melhor: o senso de soberania e
autodeterminao? Talvez a esperana de que as expectativas
para 2084 sejam mera fico resida na China, que sabe defender
sua soberania e no tem medo dos falces do Tio Sam.
Dignidade no tem
preo, como demonstrou o embaixador Samuel Pinheiro Guimares,
demitido, por discordar da Alca, do cargo de diretor do Instituto
de Pesquisa de Relaes Internacionais do Ministrio das Relaes
Exteriores. Foi punido por defender o Brasil. Enquanto o ministro
Celso Lafer deixa claro que o Itamaraty no ite o pluralismo
de opinies, o baro deve estar com as barbas de molho.
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