O MST
abre um caminho de futuro 1x5r17
Frei
Betto
Frade
dominicano e escritor
Nos
primrdios da Criao, disse o Senhor aos anjos: Esta terra ser
batizada Brasil. E deu ao imenso territrio um nome ecolgico, extrado
de rvore perfumada. Ser uma terra sem males. Nela no haver
terremotos ou vulces, desertos ou furaces, neve ou geleiras. Todo o
solo ser frtil e seus frutos, abundantes.
Bilhes
de anos mais tarde, as caravelas de Cabral aportaram no litoral do Brasil.
E o escrevinhador de bordo, Pero Vaz de Caminha, confirmou a promessa
divina: Aqui, em se plantando, d.
Mal
sabia ele que, ao criar Deus o mar, defronte o diabo abrira um bar. E as
terras do Brasil foram retalhadas pela nica reforma agrria havida em
toda a histria do pas: sua diviso em capitanias hereditrias.
Herdeiro
das capitanias, o latifndio massacrou ndios, importou escravos,
expulsou posseiros e imps, sobre 600 milhes de hectares, o privilegio
da propriedade de uns ROUCOS sobre o direito vida de milhes.
Deus,
no entanto, no ara escritura ao latifndio. Criara a terra para
todos. Desta conscincia nasceu a indignao e, dela, a reao.
Expulsos da terra, os agricultores se recusaram a engrossar o cinturo de
favelas que cerca as cidades. Postaram-se em acampamentos, promoveram
ocupaes, plantaram assentamentos.
O
diabo viu crescer seus chifres. Tornou-se grileiro, corrompeu juizes,
sonegou impostos, elegeu deputados, arrancou subvenes, armou
pistoleiros, jogou policiais contra os sem-terra, os sem-teto, os
sem-liberdade.
Ento,
a terra chamada Brasil tornou-se Santa Cruz. De tantas cruzes cravadas
em seu corpo esplndido: Palmares, Vila Rica, Canudos, Contestado...
Agora, Volta Redonda, Candelria, Vigrio Geral, Carandiru, Corumbiara,
Eldorado dos Carajs...
Terra
onde se enterra quem quer terra. Vale de lgrimas para a maioria,
montanha paradisaca de prosperidade para os latifundirios e seus scios.
Do
alto de suas riquezas, eles contemplam o panorama pelo monculo da
globalizao. Descobrem, aterrorizados, que vivem numa ilha de opulncia
cercada de sangue por todos os lados.
Ao
longe, um pequeno bote navega em sua direo. Gravado em seu casco, um
nome: Justia.
No
Brasil, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) escreve o
futuro, ao lado de outras foras sociais. No h futuro para este pas
sem ar pela reforma agrria. Muitos ignoram que o MST, fundado em
1984, encontra-se organizado em 22 Estados, onde j assentou, graas
s ocupaes de reas ociosas, cerca de 200 mil famlias em 1.600
assentamentos. Coordena 299 acampamentos, que abrigam 57.301 famlias.
As
famlias assentadas possuem renda mdia de 3,7 salrios mnimos
mensais (dados da FAO). A renda mdia nacional, dos mais bem pagos
executivos aos salrios-esmola, de 3,82 salrios mnimos por famlia/ms.
No fosse o MST, milhes de sem-terra estariam agora favelizados,
engrossando o contingente de excludos e marginais. E, qui, agravando
a violncia urbana.
De
que vale ocupar se no h crdito, assistncia tcnica e
infra-estrutura? E o que indagam muitos que tm mais olhos para a suposta
incapacidade dos lavradores que para as longas extenses de terras
ociosas dos latifundirios.
O
MST criou, em 1992,0 Sistema Cooperativista dos Assentados (SCA),
congregado na Confederao das Cooperativas de Reforma Agrria do
Brasil (Concrab). Essa entidade rene 70 cooperativas de produo
agropecuria, 10 cooperativas regionais de comercializao, e 40
associaes e cooperativas centrais em treze Estados.
O
que faz a Concrab? Produz cartilhas sobre questes contbeis,
previdencirias e trabalhistas, e promove cursos de capacitao tcnica,
entre os quais se destacam os Laboratrios Organizacionais do Campo e os
cursos de Formao Integrada na Produo. Para aprimorar a capacitao
tcnica, a Concrab mantm, em Veranpolis/RS, o Instituto Tcnico de
Capacitao e Pesquisa da Reforma Agrria (Iterra), equivalente ao
segundo grau em istrao cooperativista. E nico no pas e
formou, no ano de 1998, suas primeiras turmas.
Entre
1994 e 1997, a Concrab canalizou mais de R$ 300 milhes para os
assentamentos, graas ao Programa Especial de Crdito para a Reforma
Agrria (Procera) e convnios firmados com os ministrios do Trabalho
(Secretaria de Formao Profissional) e Agricultura (Departamento
Nacional de Cooperativismo). Fontes que o governo Fernando Henrique
Cardoso insiste em suprimir.
Quem
s cr ao ver deveria visitar assentamentos altamente produtivos, como o
de Santa Maria do C)este (PR), que produz 3.500 kg/hora de erva-mate
verde; o de So Mateus CES), com capacidade para beneficiar 10 mil sacas
de caf no perodo da safra; o de Sarandi (RS), que resfria 13 mil
litros de leite por dia.
Vale
a pena conferir ainda as sete casas de farinha em Itarema, e a fbrica
de queijo de Monsenhor Tabosa, ambas no Cear; e a indstria de
processamento de pssego em Piratini CRS). Em Dionisio Cerqueira (SC),
h uma fbrica de jeans que produz 1.000 calas/ ms e comprova que os
assentamentos so capazes de gerar empregos aos jovens desmotivados
para o trabalho na terra.
A
maior produtora de sementes olercolas da Amrica Latina a Cooperal,
em Bag (RS), vinculada Concrab. Os assentamentos gachos de Hulha
Negra e Bag so responsveis por 4000 da produo nacional de
sementes de hortalias.
Em
suma, o MST ocupa para trabalhar e produzir. O latifndio acumula para
especular. Basta lembrar que 44% das terras do pas encontram-se em mos
de apenas um dos proprietrios rurais.
Errado
no o MST. E a lei que defende o que improdutivo e pune quem quer
terra para plantar. Para o Evangelho, porm, o sbado foi feito para
o homem, e no o homem para o sbado (Marcos 2, 27). A propriedade,
sobretudo ociosa e suprflua, no pode estar acima do direito humano
vida.
Nos
assentamentos, funcionam escolas pblicas adequadas a um currculo
voltado para a zona rural. Cinquenta e cinco mil crianas freqentam-nas
da primeira quarta srie. So cerca de 1.800 professores, a maioria
militantes do MST, reciclados dentro da metodologia de educao para o
meio rural que o movimento vem desenvolvendo.
Por
esse trabalho, em 1995 o MST recebeu o prmio Ita/ Unicef um
reconhecimento de suas escolas de qualidade no meio rural. Esse
sistema educacional organiza-se em quatro frentes:
Cirandas
Infantis, para crianas de at 6 anos de idade;
Educao
Fundamental, da primeira oitava srie;
Educao
de jovens e adultos, que alfabetiza cerca de 7 mil pessoas, graas ao
convnio do MST com o MEC e a UNESCO;
Formao
de professores, em cursos de magistrio promovidos em parceria com a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e a Universidade Federal do Esprito
Santo. H um curso superior de Pedagogia, em parceria com a Universidade
de Iju (RS) e, desde 1999, um convnio com a Universidade de Campinas
(SP), para cursos de frias voltados formao poltica de jovens
acampados e assentados, de 15 a 25 anos de idade.
Na
esfera cultural, o MST tem promovido festivais de msica; concurso de
redao O Brasil que ns queremos entre jovens
educandos; exposio de fotos de Sebastio Salgado; produo de
CDs, incluindo o Terra, de Chico Buarque.
Uma
viso do presente
O
MST no luta apenas por reforma agrria. Considera uma viso ingnua
supor que basta organizar um movimento de massa e promover ocupaes
para, enfim, alcanar a reforma agrria. H um projeto estratgico que
articula todas as aes do movimento: mudar o modelo econmico da
sociedade brasileira. Os agentes dessa mudana so as classes
desfavorecidas. Da a importncia do trabalho poltico e ideolgico
na base social.
Para
o MST, trs cenrios se descortinam na conjuntura brasileira:
A
elite consolida o seu poder e aprofunda a subordinao do Brasil ao
capital internacional. O pas retorna a condio de mera colnia. Este
o modelo vigente no governo Fernando Henrique Cardoso.
Foras
polticas progressistas conquistam espao poltico suficiente para
promover reformas na poltica econmica, como a reduo da taxa de
juros, o controle da inflao, etc. Algo na linha de Tony Blair. Isso
significaria apenas adiar a crise estrutural inevitvel.
Os
movimentos sociais implementam um novo modelo econmico e social para o
Brasil. E o que buscam aqueles que, como o MST, esto envolvidos na
Consulta Popular, onde se esboa um projeto alternativo para o pas.
Para
o MST, as solues para a crise em que o Brasil se encontra no so
de curto prazo, nem dependem apenas de eleies. E preciso um movimento
de massa, capaz de promover um acmulo de foras sociais hegemonizadas
pelo projeto alternativo.
Os
objetivos desse projeto so simples: assegurar a toda a populao
comida, casa, trabalho e educao. Para alcan-lo, o movimento
ressalta a necessidade de se reorientar a economia para o mercado interno;
enfrentar e manter sob controle o capital financeiro; democratizar os
meios de comunicao social; e imprimir nos agentes sociais, os
oprimidos, a conscincia de que so eles 05 sujeitos e 05 principais
beneficirios desse projeto.
Esse
sonho , hoje, realidade fl05 assentamentos e nas cooperativas, nas
marchas e ocupaes, na formao de uma nova gerao de militantes
polticos, dotados de uma viso que inclua tambm as relaes de gnero,
a dimenso ecolgica, a expresso religiosa e a formao da
subjetividade.
Por
tudo isso, estou convencido de que o futuro do Brasil se escreve tambm
nas pginas abertas pelo MST em nossa histria. verdade que, s
vezes, p sangue a tinta, devido violncia de nossas estruturas de
poder. Mas a dignidade de seus militantes e a mstica de luta tornam o
futuro palpvel.
|