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FREI BETTO 4473


O FREI CARLOS ALBERTO LIBNIO CHRISTO, FREI BETTO, FRADE DOMINICANO, ESTUDOU JORNALISMO, ANTROPOLOGIA, FILOSOFIA E TEOLOGIA. ɠ ESCRITOR E CONSULTOR DO MST E DO PT, ARTICULISTA DO BOLETIM REDE DE CRISTOS. EM 1983, GANHOU O PRMIOS"JABUTI", O PRINCIPAL PRMIO LITERRIO DO BRASIL, CONCEDIDO PELA CMARA BRASILEIRA DO LIVRO, POR SEU LIVRO "BATISMO DE SANGUE" EM 1986, FOI ELEITO "INTELECTUAL DO ANO", PELOS ESCRITORES FILIADOS UNIO BRASILEIRA DE ESCRITORES, QUE LE DERAM O PRMIO "JUCA PATP".EM 1987 "DIREITOS HUMANOS" DA FUNDAO BRUNO KREISKY, EM VIENA. NA ITLIA, FOI A PRIMEIRA PERSONALIDADE BRASILEIRA A RECEBER O PRMIO "PAOLO E. BORSELINO", POR SEU TRABALHO EM PROL DOS DIREITOS HUMANOS, CONCEDIDO EM MAIO DE 1998. EM DEZEMBRO DE 1998, RECEBEU O PRMIO CONCEDIDO PELA ASSOCIAO PAULISTA DE CRTICOS DE ARTE, DE MELHOR OBRA INFANTO-JUVENIL, COM O LIVRO "A NOITE EM QUE JESUS NASCEU".
FOI, DURANTE CINCO ANOS, MEMBRO DA FUNDAO SUECA DE DIREITOS HUMANOS . MEMBRO DO INSTITUTE FOR CRITICAL RESEARCH, AMSTERD E DIRETOR DA REVISTA "AMRICA LIBRE". ARTICULISTA DE VRIOS JORNAIS E REVISTAS DO BRASIL E DO EXTERIOR.

COM OBRAS EDITADAS EM VRIOS PASES, TEM 38 LIVROS PUBLICADOS, EM DIVERSOS IDIOMAS .

ENTRE SUAS OBRAS, DESTACAM-SE NA REA DA FICO: "A MENINA E O ELEFANTE" E "UALA , O AMOR", INFANTO-JUVENIS E "O VENCEDOR" E "ENTRE TODOS OS HOMENS".

NA REA DO ENSAIO: FIDEL E A RELIGIO, BATISMO DE SANGUE, CARTAS DA PRISO, ESSA ESCOLA CHAMADA VIDA ( CO-AUTORIA COM PAULO FREIRE), MSTICA E ESPIRITUALIDADE ( CO-AUTORIA COM LEONARDO BOFF). O PARASO PERDIDO - NOS BASTIDORES DO SOCIALISMO, ALUCINADO SOM DE TUBA, SINFONIA UNIVERSAL - A COSMOVISO DE TEILHARD DE CHARDIM E A OBRA DO ARTISTA - UMA VISO HOLSTICA DO UNIVERSO.


NESTE ESPAO, PODERO SER ENCONTRADOS, UMA ENTREVISTA EXCLUSIVA, CONCEDIDA AO JORNAL IGREJA NOVA, EM SETEMBRO DE 1997 E OS ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL .


ENTREVISTA EXCLUSIVA

ABRIL/MAIO/JUNHO - 1997


IGREJA NOVA: Frei Betto, se o senhor tivesse plenos poderes aqui no Brasil, quais as trs medidas que tomaria urgentemente para mudar o curso deste pas ?

FREI BETTO : Bem, primeiro eu espero que um dia o povo tenha estes plenos poderes e espero que, neste caso, as trs medidas prioritrias sejam os trs direitos fundamentais: alimentao, sade e educao; nesta ordem.

Ento, para resolver a questo da alimentao o mais urgente promover a reforma agrria. Para resolver a questo da sade o mais urgente erradicar as causas como a misria, a pobreza e a desigualdade que produzem a doena.

Doena fsica e psquica resultado da misria. Para resolver a questo da educao criar uma nova concepo onde educao seja uma concepo abrangente e portanto no meramente curricular, escolar, mas que mobilize toda a sociedade brasileira para erradicar o analfabetismo e para criar uma cultura educacional sobretudo na mdia brasileira.

I.N.: O senhor sabe que aqui em Olinda e Recife ns sofremos na pele o contraste entre Igreja chamada progressista do modelo Vaticano II e a Igreja que se tenta implantar atualmente, ou se implanta a nvel mundial, uma Igreja mais conservadora. Se os plenos poderes aos quais nos referimos na pergunta anterior lhes fossem dados para mudar um pouco a Igreja hierrquica, enquanto corpo social, como o senhor agiria ?

F.B.: Bem, eu acho que a Igreja tem que ser fiel ao Evangelho, portanto a Igreja deve se despojar das suas marcas imperiais, que so heranas do constantinismo, do momento em que a Igreja do sculo quarto aderiu ao imprio romano, isso foi acentuado pela tradio medieval e posteriormente pelo monarquismo e sobretudo pelo absolutismo monrquico. De modo que preciso despojar a instituio da Igreja de todas estas marcas de "nobreza" que no tm nada a ver com o Evangelho. No h nenhuma razo de ser.

I.N.: Ento, qual seria sua proposta ?

F.B.: Ora, mas para isso no preciso que eu faa a proposta, preciso que a Igreja assuma propostas que ela j consagrou, como por exemplo a concepo do Vaticano II, de uma Igreja Povo de Deus em marcha na histria, de uma igreja dirigida por uma "colegialidade", pela colegialidade episcopal, uma igreja muito mais comunitria, de uma igreja no euro-centrada, de uma igreja onde a autoridade seja servio e no poder de mando e submisso de sditos e por a vai...

I.N.: Ento devemos lutar por estes valores ...

F.B.: Isso so valores que a prpria Igreja j trabalhou no seu seio e acredito que enquanto houver esta desigualdade social vai perdurar tambm as contradies internas da Igreja. Eu no quero criar iluso de que ns teremos uma Igreja fraterna, uma Igreja totalmente sintonizada...no teremos nunca, ainda que as desigualdades desapaream, porque h um limite. Evidente que ns precisamos criar uma Igreja menos autocrtica, mais democrtica, porm preciso saber que haver sempre diferenas entre ns. O importante saber no transformar diferenas em divergncias.

I.N.: O senhor concorda que as diferenas so saudveis em qualquer contexto da vida, principalmente em relao vida em comunidade?

F.B.: A comear do fato de haver quatro Evangelhos e no um s. So quatro ticas diferentes de Jesus. Seria terrvel se algum quisesse nos impor um dos Evangelhos jogando fora os outros trs. Ento isso, o testemunho que o prprio Senhor quis uma Igreja em comunho com diferenas, onde h diversas ticas e ao mesmo tempo estas diversas ticas convivem com harmonia e vivem o projeto pastoral.

IGREJA NOVA: Frei Betto, para finalizar, , nos pediramos uma mensagem de esperana para o povo, leigos e padres, que est engajado, para manter viva esta tradio da Igreja que tivemos e temos ainda com D. Hlder , este grande profeta.

FREI BETTO : Eu acho que a esperana ser fiel herana de D. Helder, ser fiel a tudo aquilo que D. Helder tem testemunhado ao longo da sua vida, as grandes aspiraes que ele encarnou, ser fiel grande revoluo que representou o Vaticano II para a Igreja, ser fiel s linhas pastorais da CNBB, ser fiel a toda esta postura crtica que a CNBB tem diante do neoliberalismo, ser fiel enfim, a todo esse movimento de uma Igreja latinoamericana que se aproxima dos pobres, de uma Igreja que vive a fidelidade a Jesus na comunho com todos, mas especialmente com os mais necessitados.

I.N - Muito obrigado.


RAINHA

SETEMBRO/OUTUBRO - 1997


ARTIGO PUBLICADO NO "BOLETIM REDE", DE 17 DE SETEMBRO - INFORME REDE DE CRISTOS - CENTRO ALCEU AMOROSO LIMA PARA A LIBERDADE

Jos Rainha , um dos lderes dos sem-terra, voltar ao banco dos rus agora em setembro. Delegaes e personalidades do Brasil e do exterior iro ao Esprito Santo manifestar apoio aquele que, em primeira instncia, recebeu a condenao de 26 anos e 6 meses de priso, e repudio ao carter injusto do processo.

So Toms de Aquino ensina que no se deve confundir o legal e o justo. H sentenas legais, porm injustas. Em nome da lei cometem-se erros judiciais irreparveis. Sou vtima de um deles. Preso pela ditadura militar, fui condenado a 2 anos de recluso e cumpri 4. Cassaram meus direitos polticos por 10 anos e nos ltimos 2 anos de crcere negaram-me o regime de priso especial a que tm direito os prisioneiros com curso superior. ei dois anos entre presos comuns nos pavilhes do Carandiru, da Penitenciaria do Estado e de Presidente Venceslau.

Essa descida aos infernos, levou-me comunho com os mais sofridos.

Libertado do crcere, fui trabalhar com as Comunidades Eclesiais de Base. Ao assessorar um encontro de CEBs, ao norte do Esprito Santo, conheci um jovem lavrador franzino, espigado, de olhos perscrutadores e um jeito pausado de falar. Era Jos Rainha. Tornou-se um dos mais destacados animadores dos grupos de cristos de base e dos que eram enxotados de suas terras pelo latifndio.

Em 11 de junho deste ano, Rainha foi julgado em Pedro Canrio por um crime que no cometeu. Nem poderia ter cometido, pois testemunhas idneas viram-no, entre maio e junho de 1989, poca do delito, no serto do Cear.

H fotos que registram ali sua presena. Por que ser que o levam a julgamento exatamente quando o MST est em evidncia e ele, na mira dos que crem que terra ociosa direito divino? Mera coincidncia?

A 5 de junho de 1989 foram assassinados em Pedro Canrio o fazendeiro Jos Machado Neto e o policial Srgio Narciso da Silva. Na mesma data, o padre Pedro Paulo Cavalcanti registrou a presena de Rainha na fazenda Reunidos de So Joaquim, em Madalena, CE. Inmeros assentados da fazenda estiveram com Rainha. No arquivo da Casa Militar do governo cearense h uma foto na qual Rainha aparece dialogando com o governador Tasso Jereissati, em 30 de maio de 1989.

No h provas da culpa de Jos Rainha. E h provas e testemunhas de sua inocncia. A dificuldade reside na implicao poltica do julgamento, neste pas em que batedores de carteiras apodrecem nas cadeias enquanto fraudadores de bancos, falsificadores de precatrias e cambistas de votos desfrutam da cegueira ou da brandura de uma justia que proclama no ser grave o delito de queimar um ndio vivo numa rua do Distrito Federal. a nossa cidadania sendo consumida na pira da impunidade.

Estar no banco dos rus, em setembro, a legtima aspirao de reforma agrria da nao brasileira. Como no h como prender direitos e sonhos, procuram condenar quem os encarna.

No h sentena injusta que altere a histria de um pas. Filhos de latifundirio tambm aprendem na escola quem so os heris na nao brasileira: Zumbi, Tiradentes, Frei Caneca, Antonio Conselheiro, Chico Mendes - todos injustamente perseguidos pela elite gananciosa de seu tempo, como hoje Jos Rainha.


A IGREJA CATLICA E AS ELEIES -

SETEMBRO - 1998


O bispo de Jundia (SP), dom Amaury Castanho, divulgou lista de candidatos que merecem o voto do eleitorado catlico. Uma prtica reprovada por seus prprios fiis, j que no se pode dissociar o bispo da instituio eclesistica e nem itir que esta deixe de cumprir seu papel de iluminar as conscincias luz do Evangelho para intrometer-se diretamente no pleito.

A posio da Igreja catlica diante das eleies suscita tantas tolices que convm relembrar certos princpios. Sisudos articulistas usam, ao tratar da Igreja, dois pesos e duas medidas. Ontem, louvavam a Igreja da Polnia que apoiava abertamente o ex-movimento sindical e atual partido poltico Solidariedade e, hoje, condenam os cristos que, no Brasil, buscam uma mediao poltica exigncia evanglica de opo pelos pobres.

O problema no reside na presena da Igreja na poltica. Para a doutrina catlica, esta uma questo resolvida. Todos os documentos pontifcios e episcopais insistem no dever de o cristo participar ativamente da vida poltica. O Papa Paulo VI acentuava que "a poltica a mais perfeita forma de caridade". E ele prprio chegou a pedir votos para a Democracia Crist quando a prefeitura de Roma estava ameaada de ar s mos do PCI ( Partido Comunista Italiano). Em outubro de 1989, o cardeal Poletti voltou a repetir o gesto. E quem se intrometeu mais na poltica interna dos pases do Leste europeu que o papa Joo Paulo II?

De fato, a presena da Igreja na poltica incomoda quando se trata de favorecer o interesse popular. Durante sculos, a oligarquia manipulou setores da Igreja em prol de seus negcios escusos. A sombra da cruz, a Amrica Latina foi invadida, os ndios mortos, as riquezas saqueadas. Em nome de Deus, a supremacia do capita1 sobre o trabalho virou dogma inquestionvel. Apesar de tanta misria ainda ousam chamar o nosso Continente de cristo... Ser esta a sociedade desejada por Cristo? Todos sabemos que no, pois diante de Deus a vida no pode ser privilgio de uns poucos em detrimento da morte de muitos.

Enquanto a Igreja incensou governos ditatoriais como Franco ou Somoza, freqentou manses de famlias aristocratas, pregou aos pobres a abnegao frente aos sofrimentos deste mundo, a ideologia dominante jamais se viu incomodada com sua presena na poltica.

Porm, quando ela retoma o caminho de Cristo e exige justia - a ponto de proclamar que a fome de justia uma bem-aventurana - ento dizem que ela "foge de sua verdadeira misso". Ainda bem que Jesus advertiu: "Se a mim chamaram de Belzebu, que no diro dos membros de minha casa'." (Mateus 10, 25).

O modo de a Igreja participar da vida poltica no pode ser o mesmo de um partido poltico. No cabe a ela organizar ncleos partidrios, apontar candidatos, sacralizar regimes. Sua misso formar e alertar a conscincia dos fiis. Se um bispo ou um padre apoia explicitamente um candidato, o faz em nome prprio, como cidado revestido de todos os direitos polticos, e no em nome da instituio eclesistica. Esta, porm, tem a obrigao moral de expressar as exigncias ticas de uma ordem democrtica, como faz a CNBB.

Toda a linha pastoral da Igreja catlica no Brasil insiste na urgncia da reforma agrria, em priorizar sade e educao, no resgate da cidadania e no fortalecimento da democracia. Basta ler os documentos da CNBB. E seria aconselhvel comparar o contedo com os programas, as palavras e, sobretudo, a prtica dos candidatos a governador e presidente da Repblica.

O beija-mo de candidatos que acorrem aos bispos no os absolve nem canoniza. Pelo contrrio, foi com um beijo que Judas selou a morte de Jesus.


SONHOS E LOUCURAS DE CLEONICE

OUTUBRO - 1998


A Folha de S. Paulo (31/5) publicou entrevista da desempregada nordestina Maria Cleonice Souza Silva, 22, de Ouricuri (PE), que costuma ficar trs dias sem comida. Ela declarou que, instigada pela misria, "capaz de fazer qualquer coisa".

Cleonice agrediu a me, tentou comer gilete e bebeu gua sanitria. O Brasil sonega a essa moa, que habita o pas que se destaca como o produtor mundial de frutas e um dos seis maiores produtores de alimentos, algo elementar: "comer alface, queijo, cenoura, beterraba, essas coisas que as outras pessoas comem".

Cleonice sonha com direitos bsicos: trabalho e comida. O primeiro, um direito humano; o segundo, um direito animal. Trabalho o Brasil nega a cerca de 12 milhes de pessoas. Comida, a 40 milhes. Recursos para acabar com a fome no faltam: h terra em abundncia, armazns do governo repletos de gros, cerca de US$ 60 bilhes estocados no Banco Central e mais US$ 95 bilhes na caderneta de poupana.

O que falta nao algo to essencial quanto a comida que pede Cleonice: governo. O que temos no mau, nem se regozija com a fome que assola o Nordeste. O problema que o governo FHC fez a opo neoliberal. Governa de olhos no Primeiro Mundo e de costas para a questo social brasileira. At gostaria que a fome no provocasse o efeito Cleonice e os pobres assem resignadamente a misria, at serem ceifados pela morte precoce.

Cleonice, contudo, demonstra que ningum a a falta de po. Ela produz revolta e demncia. No serto, Cleonice agride a me. Na cidade, milhares de Cleonices apelam para o crime em busca de sobrevivncia.

Os donos do poder gostariam que essa turba de Cleonices tivesse a mesma pacincia com que aguarda chuvas para esperar as migalhas das polticas emergenciais. Porm, desde os anos 70 os pobres do Brasil decidiram fazer a hora e no esperar acontecer. Criaram o PT, a CUT, o MST e a CMP (Central de Movimentos Populares). Fizeram o que o socilogo FHC defende como dever e direito: organizar a sociedade civil brasileira.

A CUT conta com cerca de 18 milhes de filiados. O MST coordena aproximadamente 15 milhes de sem-terra. Os donos do poder no condenam a existncia de tais movimentos. Sem eles, toda aquela malta estaria engrossando o cinturo de favelas que cercam nossas cidades, multiplicando o nmero de crianas de rua e o ndice da violncia urbana.

O que provoca a ira dos donos do poder esses movimentos sociais serem representativos e atuantes. Como Cleonice, eles reagem falta de emprego, salrio, terra e moradia. Mas ao contrrio de Cleonice, no comem gilete nem bebem gua sanitria. Ocupam terras ociosas, promovem saques em situaes extremas, denunciam o descaso do governo com a questo social.

A demncia provocada pela fome superlota o maior hospital psiquitrico do serto nordestino, a Casa de Sade Santa Tereza, no Crato. A posologia preventiva simples: comida. Mas as autoridades apelam ao velho recurso: camisa-de-fora.

O MST perderia muito de sua fora se houvesse reforma agrria. O governo, porm, prefere sataniz-lo e acus-lo de "ideolgico e partidrio". Parte da mdia vai atrs e carrega nas tintas, indignada por viver numa nao cujas camadas populares se organizam e mobilizam (no fundo, o horror democracia real). Como se houvesse, sobre a face da Terra, um movimento social sem implicaes ideolgicas e partidrias. E o efeito Cleonice: prefervel diagnostic-la como louca que oferecer-lhe um prato de comida.

Movimentos sociais so interessantes nas monografias da USP. Congregando milhes de pessoas e fora do controle dos donos do poder, viram bicho-papo. Como se subversiva e baderneira no fosse a fome, essa aliada eleitoral de oligarquias acostumadas a ofertar cestas bsicas, carros-pipas e servio em frentes de trabalho, mas jamais terras, poos artesianos e empregos.

O governo saqueia da nao seu direito de organizar-se e conquistar necessidades bsicas, adotando a mesma postura paternalista do coronelismo responsvel pela misria do Nordeste. A elite organiza-se em um amplo leque de siglas e entidades, exerce todo tipo de presso sobre o governo - mas isso palatvel pelas autoridades e pela mdia (que, alis, instrumento de presso dos grupos que a comandam).

Eis o Brasil: Cleonice louca, Stdile raivoso e os donos do poder uma legio de anjos... exterminadores.


SAUDADES DO FUTURO

NOVEMBRO - 1998


Advento tempo de espera, momento de renascer "nos mesmos sentimentos de Cristo" como sugere so Paulo. Ne1e esperamos o cessar dos cortes que infeccionam nosso tecido social, a paz sonegada ao corao aflito a sade ameaada pela enfermidades que nos reduz dor

Na rgua do tempo, miramos o ado, ora com olhos nostlgicos, ora com supremo alvio de quem sobreviveu borrasca. O futuro iluso temperada na f. Dele nada se sabe e, no entanto, tudo se espera: o amor vido: o bem-estar diletante, a irrupo final e feliz do ser que somos e no temos sido. Apropriar-se de si mesmo, dando-se o direito de ociosidade criativa e sobretudo, orante. Deus como preguia da alma. Agora o presente, minsculo microssegundo de uma constatao que j se faz ado pelo futuro implacvel.

Nessa espera, vislumbramos minudncias: guardar no olvido a sonegao da ternura, reinventar a vida ao amanhecer, perfumar espinhos, criar asas no lugar dos braos e alar vo. Aplacar a sede de Deus no gesto libertrio e provar o Verbo que se fez carne para ter certeza que tem mesmo sabor de justia.

Espera-se a abolio cabal de todos os determinismos, inclusive o que decreta o fim da histria, e o reconhecimento de que o prprio como dialtico encontra-se quanticamente indeterminado, sujeito aos protagonistas individuais e coletivos que agem de modo imprevisvel.

Espera-se Jesus, sublinhando os valores que ele encarnou: o cuidado dos pobres, a misericrdia aos faltosos, a tolerncia para com o diferente, o po de cada dia a todos ns, o corao dilatado misteriosa e sedutora presena do Amor.

Graas inveis queles que nada esperam, inflados em seu ego, prepotentes gemetras da razo, arautos de uma opulncia que ofende o haitiano cenrio de nossas metrpoles repletas de corpos deambulantes.

Esperar ousar renascer, advir, vir de novo, recomear, na fulgurante arte de tecer a vida, nisso que ela tem de mais ntimo e cotidiano, com os fios invisveis da aventura espiritual e da poesia.

Um pouco menos de tarefas, agendas e inadiveis compromissos. Um pouco mais de ociosidade, de gratuidade amorosa e de alegria despudorada, pois no duvido que estejamos levando muito a srio esse episdico existir, singular brincadeira de Trs Pessoas que, no clima de Natal, voltam a ser crianas e se diverte m coma bola do Universo.

E nos revelam segredos escatolgicos, inclusive o de que, no ponto final seremos todos acolhidos por Aquele que nos quer eternos. Porque Ele terno.


FAZER RENASCER O NATAL

DEZEMBRO - 1998


O melhor da festa esperar por ela, diz o provrbio. O melhor do Natal ter ado por ele, sentem muitos sem dizer.

invel a fissura desencadeada pelas festas de fim de ano. O consumo compulsrio de produtos, o apetite compulsivo de comilanas, a mscara da alegria estampada no rosto para encobrir o bolso furado, a corrida aos espaos de lazer, as estradas engarrafadas, as filas interminveis nos supermercados, os sinos de papel envoltos nas fitas vermelhas dos shopping centers, aquela mesma musiquinha marota, tudo satura o esprito.

Seria esse anticlima um castigo divino nossa reverncia pag figura de Papai Noel?

Natal pouco verso e muito reverso. Em pleno trpico, nosso mimetismo enfeita de neve de algodo a rvore de luzinhas intermitentes. O estmago devora castanhas, nozes, avels e amndoas, quando a sade pede saladas e legumes.

J que o esprito arde de sede daquela gua Viva do poo de Jac ( Joo 4 ), afoga-se o corpo em lcool e gorduras. A gula de Deus busca, em vo, saciar-se no ato de se empanturrar mesa.

Talvez seja no Natal que nossas carncias fiquem mais expostas. Damos presentes sem nos dar, recebemos sem acolher, brindamos sem perdoar, abraamos sem afeto, damos mercadoria um valor que nem sempre reconhecemos nas pessoas. No ntimo, estamos inclinados simplicidade da manjedoura. O mal-estar decorre do fato de nos sentirmos mais prximos dos sales de Herodes.

No Brasil, este Natal de reis "magros". A nao, condenada a pagar as aventuras poltico-financeiras de governantes e economistas que tentaram salvar a moeda sacrificando o povo, d as costas s alegrias do prespio para trilhar, com recesso, salrios arrochados e tributos aumentados, o caminho do Calvrio.

Sem que fssemos consultados, o Brasil foi penhorado ao capital da pirataria especulativa, que saqueia nossas Bolsas, quebra nossas pequenas e mdias empresas, leiloa nosso patrimnio pblico, dilapida nosso sistema de ensino e gangrena o de sade. E ainda insistem em nos convencer de que esta a melhor rota para o futuro e que devemos reeleger aqueles que seqestram nossos anseios de felicidade.

Mudemos ns e o Natal . Abaixo Papai Noel, viva o Menino Jesus ! Em vez de presentes, presena junto famlia, aos que sofrem, aos enfermos, aos soropositivos, aos presos, s famlias das vtimas de crimes, s crianas de rua, aos dependentes de droga, aos (d)eficientes fsicos e mentais, aos excludos.

Faamos da ceia cesta a quem padece fome e do abrao lao de solidariedade a quem clama por justia. Instalemos o prespio no prprio corao e deixemos germinar Aquele que se fez po e vinho para que todos tenham vida com fartura e alegria.

Abandonemos a um canto a rvore morta coberta de lantejoulas e plantemos no fundo da alma uma orao que sacie nossa fome de transcendncia.

Deixemo-nos, como Maria, engravidar pelo Esprito de Deus. Ento, algo de misteriosamente novo haver de nascer em nossas vidas.


DOM HELDER CMARA, 90 ANOS

JANEIRO/FEVEREIRO - 1998


Completa 90 anos de idade, no prximo dia 7 de fevereiro, Dom Helder Cmara, arcebispo emrito de Olinda de Recife. Em 1962, indicado pela Ao Catlica de Minas, integrei a equipe de coordenao nacional do JEC ( Juventude Estudantil Catlica), no Rio. O assistente nacional da Ao Catlica era Dom Helder, bispo-auxiliar do cardeal do Rio, Dom Jaime de Barros Cmara.

Durante trs anos, convivi com o bispo que fundou a CNBB, a Cruzada de So Sebastio, o Banco do Providncia e, no Nordeste, a Operao Esperana, que deu o terra a vtimas do latifndio.

Magro, rosto chupado, a calvcie mal disfarada por uma rstia de cabelos, Dom Helder andava sempre de batina, mesmo aps ser permitido aos bispos, o uso de roupas comuns. De baixa estatura, o padre Helder como prefere ser chamado pelo crculo de amigos mais prximos, alcunhado de "famlia mecejanense", em aluso ao seu cho de origem, no Cear parecia um gigante ao abrir a boca, quando ainda pregava em pblico.

No era um orador sacro moda antiga, nem um pregador retrico pleno de pomposidade e vazio de contedo. No se apresentava com a carranca dos arautos do Vale de Lgrimas, como se o inferno fosse o destino natural de todos ns, pecadores costumazes.

Dom Helder pregava com vivacidade e entusiasmo que significava etimologicamente "estar cheio do Esprito de Deus"- o olho faiscando, as mos esquelticas e os braos finos em gestos exuberantes que lhe compensavam a estatura; o corpo erguido na ponta dos ps, como se a nfase lhe brotasse do impulso de querer voar; o sotaque nordestino rasgando as vogais de suas mensagens em frases curtas, sem vrgulas ou circunlquios.

O bispo brasileiro que mais influenciou o Conclio Vaticano II sempre teve idias claras, articulando o ardor da f com o clamor de justia. Profeta, de sua mente jorravam projetos que mudariam a face da Igreja Catlica. dele a iniciativa de organizar os bispos em conferncias episcopais, os planos de pastorais e o exerccio da colegialidade entre os prelados. Graas a ele, parcela significativa da Igreja resgatou suas origens evanglicas no compromisso de justia com os setores mais pobres da populao.

Compadre de Roberto Marinho, Dom Helder resistiu quando JK quis faz-lo prefeito do Rio. Marcado por sua malfadada agem pelo integralismo, nos anos 30, Dom Helder jamais entrou na poltica partidria. Assim como jovens esquerdistas fanticos tendem a se tornar reacionrios moderados na idade adulta, Dom Helder fez o percurso inverso. Nunca aceitou o marxismo, malgrado a sua fama de "bispo vermelho". Defensor intransigente dos pobres, toda a sua atuao se pautou pela busca de uma alternativa que superasse tanto o comunismo quanto o capitalismo. Por essa utopia correu o mundo, aprendeu a falar ingls com sotaque cearense e mobilizou multides em metrpoles de pases desenvolvidos.

No incio de 1964, Dom Helder foi nomeado arcebispo de So Lus do Maranho. Quando se preparava para a posse, morreu o arcebispo do Recife. O papa Joo XXIII decidiu transferi-lo para a arquidiocese pernambucana.

Na ltima semana de maro, eu me encontrava em Belm do Par, no congresso latino-americano de estudantes. A 1 de abril, estourou o golpe militar. Escondi-me no seminrio. Mas o arcebispo, Dom Gaudncio Ramos, ou a colaborar com a polcia, interessada em deter os padres "subversivos". Ora, se nem o clero podia contar com o bispo, o que seria de ns leigos?

Corri para a agncia da Varig. Minha agem Belm-Rio, tinha sido dada pelo Betinho, chefe de gabinete do ento ministro da Educao, do governo Jango, Paulo de Tarso dos Santos, deposto pelo golpe.

A atendente desapareceu com o meu bilhete. Retornou pouco depois. Comunicou que todas as agens cedidas pelo governo anterior estavam canceladas. Fiquei ali aturdido entre inmeras pessoas que tentavam deixar a capital paraense. Na capa do bilhete, um carimbo ntido: "Cancelado". Rasguei a capa e estendi a agem para outra atendente:

-J que no h mais lugar para o Rio, pode desdobrar minha viagem via Recife? Fui atendido.

Desembarquei no aeroporto de Guararapes no dia da posse de Dom Helder. Cheguei ao palcio episcopal de Manguinhos na hora da recepo. Ao saudar o novo arcebispo, manifestei interesse ma falar-lhe em particular. O homenageado largou a festa, trancou-se comigo numa sala e ouviu atento o que eu tinha a relatar sobre a igreja de Belm do Par.

Ao longo das ltimas dcadas, encontrei-o em viagens e eventos eclesiais. Nele identifico o principal inspirador da "opo pelos pobres", compromisso que props a um grupo de cardeais e bispos durante o Conclio. Ele , portanto, o precussor da Teologia da Libertao.

Dom Helder para a Igreja o que Paulo Freire representa para a educao e os movimentos sociais. Sem a "pedagogia do oprimido" no haveria MST, CUT, CMP ou PT. Sem Dom Helder talvez no houvesse comunidades eclesiais de base e pastorais sociais, Campanha da Fraternidade e Grito dos Excludos.

Estivemos juntos em Puebla, no Mxico, na conferncia episcopal latino-americana de 1979. Eu, do lado de fora, em companhia de duas dezenas de telogos da libertao; ele, do lado de dentro, reando nossos subsdios aos bispos e, deles, s comisses e aos textos.

Vale definir Dom Helder como um "conspirador"- algum capaz de conspirar a favor do bem com arte, verve, delicadeza e alegria. Nunca conheceu o desnimo e o luxo. Sempre se alimentou como um arinho, de preferncia em botequins nas imediaes de seu local de trabalho.

A ditadura manteve o nome dele distante do noticirio nacional. Mas o xito de suas pregaes no exterior levou o Itamaraty a empenhar-se para que no recebesse o prmio Nobel da Paz. Talvez articulaes semelhantes expliquem por que no mereceu tambm o chapu cardinalcio.

Perdeu o Nobel, perdeu a Igreja. Dom Helder engrandeceria um e outro, pois ele sintetiza e simboliza o que de mais evanglico ocorreu na Igreja Catlica nesta Segunda metade do sculo XX.

Padre Helder, feliz idade!


CARNAVAL E CINZAS

MARO - 1999


Carnaval significa "festa da carne" e era, em seus primrdios, uma festa religiosa. s vsperas da Quaresma, diante da perspectiva de ar quarenta dias em abstinncia de carne, os cristos fartavam-se de assados e frituras entre o domingo e a "tera-feira gorda". Na quarta, revestiam-se de cinzas, evocando que do p viemos e para o p retornaremos, e ingressavam no perodo em que a Igreja celebra a paixo, a morte e a ressurreio de Jesus Cristo.

A modernidade secularizou a cultura e, de certo modo, esvaziou o significado das festas religiosas, hoje apreendido apenas por cristos vinculados comunidade eclesial. Com certeza ganhou a autonomia da razo e perdeu a consistncia da subjetividade. Trocou-se So Nicolau, que no sculo V distribuiu sua herana aos pobres, pela figura consumista de Papai Noel; transformou-se o carnaval em festa da carne em outro sentido; e fez-se da Semana Santa um perodo extra de frias.

Essa reificao dos ritos de agem torna-se mais evidente nesse momento em que a humanidade enfrenta a crise de paradigmas. Destitudo o leninismo da condio de cincia da histria, e constatado o fracasso crnico do neoliberalismo nos pases da Amrica Latina, da frica e da sia, ocorre uma emergncia espiritual em todo o mundo.

Parafraseando Rimbaud, h uma "gula de Deus", que favorece o encontro da mstica oriental com a doutrina crist ocidental, introduz a new age e agnose de Princeton, mas tambm abre campo aos mercenrios da salvao, que pregam de olho na cobia, convencidos de que "no princpio era a verba" e, se Jesus o Caminho, pague-se a eles o pedgio...

A Quarta-Feira de Cinzas instiga-nos a refletir sobre esta experincia inelutvel: a morte. O processo reificador da modernidade tende a tornar descartveis tambm os ritos de agem que se sobrepem s esferas religiosas, como o nascimento, o casamento e a morte. Outrora, morria-se em casa e, contra a vontade do poeta, havia choro, vela e fita amarela.

Criana em Minas, acorri a enterros que eram uma festa, com toda a fora paradoxal da expresso. Havia velrio e carpideiras, cachaas e empadas, coroas de flores e procisso fnebre, missa de corpo presente e encomendao no cemitrio. Hoje, morre-se quase clandestinamente, e o enterro se faz antes que os amigos possam ser avisados, como se resistssemos idia de que esta vida escapa ao nosso absoluto controle.

A evocao da morte incomoda porque remete ao sentido da vida. S assume morrer quem imprime vida um sentido altrusta, capaz de transcender aexistncia individual. Fora disso, a morte brutal sonegao da vida.

Porm, j no se enfatiza a questo do sentido da vida. Na escola,aprende-se a competir, a ter sucesso, a dominar a cincia, a tcnica e o patrimnio cultural de que somos herdeiros. Pois no h disciplina que prepare os alunos para as crises quase inevitveis da existncia: o fracasso profissional, a ruptura afetiva, a doena, a falncia, a morte. Socializada a ambio, toda as vezes que o desejo esbarra na frustrao, privatiza o consolo: o alcoolismo, as drogas, o ressentimento, o lobo que nos devora o corao.

Na Quarta-Feira de Cinzas, a CNBB lana, em todo o Brasil, a Campanha da Fraternidade, neste ano dedicada ao desemprego. H no pas cerca de 10,3milhes de desempregados, um em cada cinco trabalhadores brasileiros. Ora, a f crist no faz o panegrio da morte, mas proclama o seu fracasso ao centrar seu eixo na ressurreio da carne. Isso significa a recusa de todasas situaes de morte, do pecado individual s estruturas sociais queexaltam o capital e humilham o trabalho, incapazes de assegurar a tantos jovens e famlias um futuro melhor.

Proclamar que a vida tem a palavra final, inclusive sobre a morte, implica tambm empenhar-se para que a nossa juventude no se transforme numa gerao perdida. Nos anos 50, o Rio viveu o pesadelo da Juventude Transviada e do assassinato de Ada Curi. Nos anos 60, a utopia incendiou de esperanas o movimento estudantil e deslocou o foco dos inferninhos de Copacabana para a Bossa Nova, o Cinema Novo, a UNE, o sonho de arrancar o Brasil do subdesenvolvimento.

Como nos enredos carnavalescos, parece que regressamos ao ado. As gangues ressurgem nas areias da praia e o assassinato de jovens j nem causa o impacto provocado pela morte de Ada Curi. O governo pode cortar verbas, mas comete um crime de lesa-ptria ao cortar sonhos. E sonhos deixam de ser qumicos e se transformam em esperanas, que afloram em projetos de uma sociedade verdadeiramente humana, quando se investe em educao, oportunidades de trabalho, cultura e o sadio orgulho de ser brasileiro. Sem isso, nossos jovens estaro condenados a portar armas para se defenderemsegundo as leis da selva. E as vtimas seremos todos ns.


PSCOA, A ARTE DE SER CRIANA

ABRIL - 1999


A Pscoa judaica iniciou-se em 31 de maro. A crist, domingo, 4 de abril. Em ambas religies, ela tem igual significado: celebrar a libertao dos hebreus escravizados no Egito do fara Ramss II, cerca de 1250 a.C. f crist, acresce-seeste evento que imprime festa consistncia e centralidade: a ressurreio de Jesus.

Pessach, agem, travessia. Pscoa abrir-se s possibilidades de vida. Nesse sentido, alunos da escola judaica Isaac L. Peretz, de So Paulo, aram por cima de preconceitos e visitaram o colgio catlico Madre Cabrini. As crianasjudaicas partilharam com as catlicas pes zimos e outros alimentos prprios do seder.

Ns, adultos, temos muito a aprender com as crianas. Comungamos a mesma aventura da vida, a mesma crena na transcendncia e os mesmos desafios dessa atribulada conjuntura nacional/internacional. No entanto, erguemos muros em nome de nossa concepo de Deus. Como se no fssemos todos feitos do mesmo p estelar, filhos da mesma Terra e igualmente vocacionados ao inelutvel abrao da morte, que nos conduzir vida definitiva.

Quisera ver o mundo governado por crianas. Elas tm mais bom-senso que esses adultos que despejam bombas sobrepopulaes civis e ainda acreditam, contra os recentes avanos da biologia, que a cor da pele determina a distino deraas.

Criana v o mundo pelos olhos do corao. A menos que o adulto lhe meta na cabea que negro inferior ao branco, muulmano inimigo do judeu, pobre preguioso e ndio lixo que merece ser queimado.

O ovo o smbolo da Pscoa. Contm vida, que s aflora se ele for quebrado. Assim . Sem quebrar tabus epreconceitos ficamos isolados em nossas razes insensatas. O mau juzo marido da ignorncia. Quem no se desloca de sua esfera religiosa para, a exemplo das crianas judaicas, sentar-se mesa com fiis da sinagoga e da mesquita, doterreiro de candombl e do santo daime, e tantas outras formas de pressentir Deus, cai na arrogncia de considerar a suareligio a nica com selo de qualidade divina e garantia de salvao eterna.

Se as crianas no so melhores, a culpa dos adultos. Por que as escolas no seguem o exemplo da Isaac L. Peretz elevam seus alunos a um ritual afrobrasileiro? Ou no imitam o colgio Santa Cruz, que promove visitas ao Vale do Jequitinhonha (MG) e estimula os estudantes ao trabalho social? Seria educativo e, no futuro, evitaria fazer da questosocial mero derivativo de primeira-dama.

Pode-se educar ignorando as razes espirituais e culturais do Brasil? H pais que se gabam de levar o filho Disney. Eis a riqueza esbanjada por fora da pobreza espiritual! A cabea de nossas crianas seria outra se visitassem ao menos um dos 215 povos indgenas que vivem neste pas e falam 185 idiomas! A exuberncia do Pantanal, a beleza da Chapada Diamantina, os mistrios da Amaznia ou a criatividade artstica do serto do Nordeste, supera qualquer boneco de rato ou pato estilizado. O problema que o colonizado tende a ver o mundo pelos olhos do colonizador, como ensinou Paulo Freire. como o pssaro que se orgulha do requinte de sua gaiola.

Pscoa renascer, aceitar o convite de Jesus para voltar a ser criana (Mateus 18, 1-4). Despojar-se dessa mulher ou homem velho que torna a nossa existncia amarga. Soltar a fantasia, a criatividade, desamarrar o afeto, esbanjar sorrisos, recolher-se em orao, amar despudoradamente. Assim, dar a volta por cima desse sistema que satura os sentidos, probe a razo de pensar com o corao e nos aprisiona na ditadura do econmico.

Pscoa tocar a mo amada em silncio profundo e sentir, no ntimo, a brisa divina. Pura fruio, sem nada em mente, exceto o prazer de, como propunha Murilo Mendes, descobrir o alfabeto das formigas.


O PRESIDENTE,A IGREJA E A POLTICA

MAIO - 1999

O presidente Fernando Henrique Cardoso no gostou da crtica dos bispos brasileiros ao fracasso de sua poltica econmica. Movido pela incontinncia verbal, declarou na Alemanha que "assim como no me meto nos dogmas da Igreja, a Igreja no deve se meter na poltica".

Toda vez que o presidente se pronuncia sobre questes religiosas o resultado desastroso. Outrora declarou-se ateu e, agora, faz profisso de f de que nunca disse o que disse a milhares de telespectadores, entre os quais me incluo, ao responder pergunta de Boris Casoy.

Dom Ivo Lorscheider, bispo de Santa Maria e ex-presidente da CNBB, ao defender o documento da Igreja comparou o presidente ao general Mdici. Frente afirmao de Dom Jos Maria Pires, ento arcebispo de Joo Pessoa, de que "a Igreja fala de questes sociais por se preocupar com o homem", Mdici retrucou: " por se preocupar tanto com homem que os senhores vestem saias".

No se pode separar f e poltica, assim como no seria possvel faz-lo na Palestina do sculo I. Na terra de Jesus, quem detinha o poder poltico, detinha tambm o poder religioso. E vice-versa. Talvez soasse estranho, hoje, a certos ouvidos religiosos introduzir a leitura do Evangelho falando de Clinton e Nelson Mandela, Tony Blair e Yasser Arafat. No entanto, ao introduzir os relatos da prtica de Jesus, Lucas primeiro nos situa no contexto poltico, informando que "j fazia quinze anos que Tibrio era imperador romano. Pncio Pilatos era governador da Judia, Herodes governava a Galilia e seu irmo Felipe, a regio da Ituria e Traconites. Lisnias era governador de Abilene. Ans e Caifs eram os presidentes dos sacerdotes" (3, 1-2).

Foi sob o smbolo da cruz que a colonizao ibrica na Amrica Latina promoveu o genocdio de 30 milhes de indgenas e o saque das riquezas naturais. Sob a silenciosa cumplicidade da Igreja catlica, mais de 10 milhes de negros foram trazidos da frica, como escravos, para o nosso continente. Com a conivncia das Igrejas crists, instalou-se em nossos pases o sistema burgus de dominao capitalista. Portanto, no se trata de vincular f e poltica somente quando se refere defesa dos mais pobres.

O fato de que f e poltica estejam sempre vinculados em nossas vidas concretas, como seres sociais que somos ou animais polticos , na expresso de Aristteles - no deve constituir uma novidade seno para aqueles que se deixam iludir por uma leitura fundamentalista da Bblia, que pretende desencarnar o que Deus quis encarnado. A f um dom do Pai a ns que vivemos neste mundo. No Cu, nossa f ser v, pois veremos a Deus face a face, assegura so Paulo.

Portanto, a f um dom politicamente encarnado, que tem razo de ser nesta conflitividade histrica na qual somos chamados, pela graa, a vivenciar o projeto salvfico de Deus.

Nem mesmo em Jesus possvel ignorar a ntima relao entre f e poltica, ainda que, para alguns cristos parea estranho aplicar certas categorias quele que nos assegura, por sua ressurreio, a vitria, em ltima instncia, da vida sobre a morte e da justia sobre a injustia. Que Jesus tinha f o sabemos pelos textos que falam dos longos momentos que ele ava em orao (Lucas 4, 16; 5, 16; 6, 12). A orao para a f o que o adubo para a terra ou o gesto de carinho para o casal que se ama. O Evangelho nos fala at mesmo das crises de f de Jesus, como as tentaes no deserto (Mateus 4, 1-11; Marcos 1, 12-13; Lucas 4, 1-13) e o abandono que ele sentiu na agonia no horto das oliveiras (Mateus 26, 36-46; Marcos 14, 32-42; Lucas 22, 39-46).

H quem insista que Jesus se restringiu a comunicar-nos uma mensagem religiosa que nada tem de poltica. Tal leitura s possvel se reduzimos a exegese bblica pescaria de versculos, arrancando os textos de seus contextos. Ora, no s o texto bblico que revela a Palavra de Deus, mas tambm o contexto social, poltico, econmico e ideolgico, no qual se desenrolou a prtica evangelizadora de Jesus.

Todos ns, cristos, somos inelutavelmente discpulos de um prisioneiro poltico. Mesmo que na conscincia de Jesus houvesse apenas motivaes religiosas, sua aliana com os oprimidos, seu projeto de vida para todos (Joo 10, 10), tiveram objetivas implicaes polticas. Por isso ele no morreu na cama, mas na cruz, condenado pena de morte.

J na introduo de seu evangelho, Marcos mostra como as curas operadas por Jesus - o homem de esprito mau, a sogra de Pedro, os possessos, o leproso, o paraltico, o homem de mo aleijada - desestabilizaram de tal modo o sistema ideolgico e os interesses polticos vigentes, que levaram dois partidos inimigos - o dos fariseus e o dos herodianos a fazerem aliana para conspirar em torno de "planos para matar Jesus" (3, 6). Assim, v-se que as implicaes polticas daao salvfica de Jesus tornaram-se to graves e ameaadoras, que induziram Caifs, em nome do Sindrio, a expressar que era "melhor que morra apenas um homem pelo povo do que deixar que o pas todo seja destrudo" (Joo 11, 50).

E como situar, no contexto da Palestina do sculo I, a questo ideolgica? Lucas registra que "Jesus crescia tanto no corpo como em sabedoria" (2, 52). Era pois um homem de seu tempo e que, segundo Paulo, "pela sua prpria vontade abandonou tudo o que tinha e tomou a natureza de servo e se tornou semelhante ao homem" (Filipenses 2, 7). A divindade de Jesus no transparecia por uma conscincia que pudesse emergir completamente de seu contexto cultural e sobrepairar, onisciente, acima do tempo e do espao. Tal possibilidade adequa-se imagem grega de deus e no imagem bblica.

Jesus era Deus encarnado e possua a mesma natureza do Pai. Segundo o Novo Testamento, "Deus amor. Quem vive no amor vive em unio com Deus e Deus vive em unio com ele" (1 Joo 4, 16). Portanto, Jesus era Deus porque amava assim como s Deus ama. E nisto consiste a nossa imagem e semelhana com Deus: divina a natureza de todo amor de que somos capazes. E o somos como abertura a Deus, que nos habita mais profundamente do que o nosso prprio eu, e nos faz acolher o prximo. No entanto, nossa conscincia, como a de Jesus, permanece tributria de nosso lugar social e de nosso tempo histrico. Em Jesus, Deus acolhe preferencialmente os oprimidos, em cujo lugar social se encarna e a partir do qual anuncia a universalidade de sua mensagem de salvao. No h pois neutralidade. Jesus assume a tica e o espao vital dos pobres. Seu ponto de vista a vista situada a partir de um ponto - o da Promessa que ressoa como bem-aventurana aos que injustamente foram privados da plenitude da vida.

H tambm em Jesus um vnculo profundo entre sua f e a ideologia apocalptica, que o fez esperar com tanta expectativa a ecloso do Reino de Deus ainda para a sua gerao (Marcos 9, 1). Muitos exegetas esto de acordo que a crise maior de Jesus foi constatar que no haveria coincidncia entre seu tempo pessoal e seu projeto histrico. O Reino, que se antecipou em sua vida e ressurreio, exigiria a Igreja como sacramento histrico capaz de anunci-lo, testemunh-lo e prepar-lo na acolhida do dom de Deus.

Nesse sentido, a opinio de que a Igreja no deve ser meter em questes sociais e polticas revela uma soberba ignorncia quanto natureza e misso da comunidade fundada por Jesus. Assim como todo cristo, inclusive o nefito FHC, tem o direito de debater inclusive questes dogmticas da Igreja, pois a f, como ensina meu confrade Toms de Aquino, " um dom da inteligncia".


A ARTE DA TOLERNCIA

JUNHO/JULHO - 1999

Tolerncia a capacidade de aceitar o diferente. No confundir com o divergente. Intolerncia no ar a pluralidade de opinies e posies, crenas e idias, como se a verdade fizesse morada em mim e todos devessembuscar a luz sob o meu teto.

Conta a parbola que um pregador reuniu milhares de chineses para pregar-lhes a verdade. Ao final do sermo, em vez de aplausos houve um grande silncio. At que uma voz se levantou ao fundo: "O que o senhor disse no a verdade". O pregador indignou-se: "Como no verdade? Eu anunciei o que foi revelado pelos cus!" O objetante retrucou: "Existem trs verdades. A do senhor, a minha e a verdade verdadeira. Ns dois, juntos, devemos buscar a verdade verdadeira".

S os intolerantes se julgam donos da verdade. Assim ocorre com Milosevic, ao manter-se intransigente e no itir os direitos dos kosovares, e com Clinton, ao decidir que seus msseis so o melhor argumento para convencer o mundo de que a Casa Branca tem sempre razo.

Todo intolerante um inseguro. Por isso, aferra-se a seus caprichos como um nufrago tbua que o mantm tona. Ele no capaz de ver o outro como outro. A seus olhos, o outro um concorrente, um inimigo ou, como diz um personagem de Sartre, "o inferno". Ou um potencial discpulo que deve acatardocilmente suas opinies.

O tolerante evita colonizar a conscincia alheia. ite que, da verdade, ele apreende apenas alguns fragmentos, e que ela s pode ser alcanada por esforo comunitrio. Reconhece no outro a alteridade radical, singular, que jamais deve ser negada.

Pode-se aplicar ao tolerante o perfil descrito por so Paulo no Hino ao Amor da 1 carta aos Corntios (13, 4-7): " paciente e prestativo, no invejoso nem ostenta, no se incha de orgulho e nada faz de inconveniente, no procura seu prprio interesse, no se irrita nem guarda rancor. No se alegra com a injustia e se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo cr, tudo espera, tudo a."

Ser tolerante no significa ser bobo. Tolerncia no sinnimo de tolice. O tolerante no desata tempestade em copo dgua, no troca o atacado pelo varejo, no gasta saliva com quem no vale um cuspe. Ele jamais cede quando

se trata de defender a justia, a dignidade e a honra, bem como o direito de cada um ter seus princpios e agir conforme sua conscincia, desde que isso no resulte em opresso ou excluso, humilhao ou morte.

Das intolerncias, a mais repugnante a religiosa, pois divide o que Deus uniu.

Quem somos ns para, em nome de Deus, decretar se esses so os eleitos e, aqueles, os condenados?

S o amor torna um corao verdadeiramente tolerante. Porque quem ama no contabiliza aes e reaes do ser amado e faz da sua vida, um gesto de doao.


ANISTIA PARA O POVO BRASILEIRO

AGOSTO - 1999


Comemoram-se 20 anos, a 28 de agosto, da anistia concedida, pela ditadura militar, a suas vtimas e algozes. Os crceres foram abertos em 1979, e os exilados e banidos puderam retornar ao pas.

O decreto do general Figueiredo no foi um gesto de benevolncia, mas fruto da mobilizao de milhares de brasileiros, sobretudo mulheres lideradas por Therezinha Zerbini, em So Paulo; Helena Greco, em Minas; Nildes de Alencar Lima, no Cear; Heloneida Stuart, no Rio etc. Entre os homens, um nome merece ser destacado, o do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, presidente do Comit Brasileiro pela Anistia. Neste pas, em matria de direitos nada se d. Tudo se conquista.

Fui beneficiado pela anistia. Ela zerou meu pronturio na polcia (mas no no consulado americano, que exige, a cada solicitao de visto, que eu explique em detalhes por que estive preso...). Fez-me recuperar os direitos polticos, cassados por dez anos em 1972.

Ao deixar a cadeia, em 1973, descobri um curioso paradoxo da justia castrense: o frade havia sido cassado, o cidado no. Eu podia e no podia votar, algo semelhante ao fenmeno fsico do gato de Schrdinger, que fica morto e vivo ao mesmo tempo. Se o cidado votasse, o frade incorreria em crime. Se o frade no votasse, o cidado deveria se explicar Justia eleitoral. Optei pela nica sada: nas eleies, ausentava-me do domiclio eleitoral e justificava-me numa agncia dos Correios.

A tradio jurdica brasileira uma histria de aberraes, como a recente absolvio dos oficiais responsveis pelo massacre de Eldorado dos Carajs. E a lei da anistia no exceo. Ela assegura a impunidade dos torturadores. O que encerra uma confisso de culpa do regime militar. O corporativismo predominou, espcie de 30 moedas pagas a Judas pelo trabalho sujo. Hoje, a tortura crime inafianvel. Um avano no papel. Na delegacia da esquina, o pau come solto.

A anistia marcou o processo de abertura poltica do pas. Abertura formal, limitada pelos interesses das elites, cuja concepo de democracia ainda exclui os direitos dos sem-terra, dos sem-teto, dos aposentados e dos desempregados. Assim como, na colnia, nao e cidadania excluam ndios e escravos, analfabetos e assalariados.

Outro paradoxo constatar que o governo presidido por um ex-cassado e exilado, Fernando Henrique Cardoso, promove o "fechamento" econmico. Segundo dados da ONU e do Banco Mundial, o Brasil campeo mundial de desigualdade social, com 63,4% da renda nacional em mos de 20% da populao. Nossa indstria sucateada pela abertura irresponsvel ao capital estrangeiro; nosso patrimnio pblico privatizado, encarecendo os servios prestados, nem sempre de qualidade satisfatria; nossa agricultura carece de poltica adequada e continua refm do latifndio.

Apenas 1% dos proprietrios rurais controla 44% das terras do pas. So aqueles 6%, entre 22 mil devedores do Banco do Brasil, que arcam com 80% da dvida e, agora, exigem anistia fiscal.

H no Brasil 18,5 milhes de aposentados. Ganham em mdia 1,8 salrio mnimo. Do total, 11 milhes sobrevivem com apenas um salrio mnimo. De novo, o garrote econmico aperta o pescoo da maioria. Os aposentados pelo Congresso Nacional (ex-deputados e senadores) recebem, em mdia, 57,8 salrios mnimos; pelo poder Executivo federal, 14,4; e pelo Judicirio, 43,7 salrios mnimos. Os militares so aquinhoados, na expresso de Lillian Witte Fibe, com "aposentadorias hereditrias".

Enquanto isso, o governo reduz o peclio dos aposentados da iniciativa privada, condenando-os mendicncia.

Em julho, a presidncia da Repblica gastou cerca de R$ 9 milhes por dia com material de consumo (copa, cozinha, alimentao, combustvel, homenagens, roupas de cama etc). Em junho, foram previstos R$ 16 mil para a compra de frutos do mar, R$ 5 mil de bacalhau, e R$ 7 mil de queijos e frios. E, no entanto, o Incra props ao MST cesta bsica de R$ 20 para cada famlia assentada.

A tortura da fome de 47 milhes de brasileiros mais dramtica que o terror de Estado sob a ditadura. Entre tantos brasileiros, eu esperava que FHC tivesse um mnimo de sensibilidade para o social. Iludi-me. Agrava-se o leque de questes sociais: sade, educao, emprego, moradia. A reforma agrria s existe em discursos oficiais. Basta conferir a fora da bancada ruralista no Congresso. E, ainda por cima, velhas raposas da poltica brasileira tripudiam sobre a nao ao falar em acabar com a pobreza. Como se a natureza de suas razes com o sistema de excluso social permitisse que, sbito, se tornassem defensoras do galinheiro...

A 26 de agosto, milhares de pessoas estiveram em Braslia para proclamar um Basta! a essa poltica que anula, na esfera econmica, as conquistas polticas simbolizadas pela anistia de 1979. O povo brasileiro merece ser anistiado de tanta misria e injustia!

Quando comandantes de massacres de agricultores so absolvidos, assim como o foram os torturadores pela lei de anistia, hora de regressarmos s ruas, antes que a falncia da democracia nos empurre para um novo ciclo autoritrio. Ento, ser tarde demais.


HELDER CAMARA (1909-1999)

SETEMBRO - 1999


Dom Helder Cmara at ontem, como diz so Paulo na 1a. Carta aos Corntios, conhecia Deus "como por um espelho, de modo confuso". Agora, conhece-O "face a face".

Meu primeiro contato com o "arcebispo vermelho" foi em 1961, quando eu era dirigente, em Minas, da Juventude Estudantil Catlica e ele, bispo responsvel pela Ao Catlica Brasileira. No ano seguinte, levou-me para o Rio, para participar da direo nacional da JEC.

Convivemos durante trs anos. Ele tinha seu escritrio no palcio So Joaquim, no Largo da Glria. Do outro lado da praa, sob o Outeiro, ficava a sede da CNBB, da qual dom Helder foi o fundador e, por muitos anos, secretrio-geral.

As refeies, ele tomava num botequim da esquina, entre pedreiros e cachaceiros.

Na Igreja catlica, foi o pioneiro do movimento renovador conhecido por "opo pelos pobres". Fundou a Cruzada So Sebastio, empenhado em sua utopia de erradicar as favelas cariocas. No deu certo. Instalados em apartamentos, os favelados, instigados pela misria, arrancavam torneiras, encanamentos e instalaes eltricas para vender, e muitos sublocavam a moradia em busca de renda.

Dom Helder Cmara descobriu ento que uma s andorinha no faz vero e que a pobreza no resulta da indolncia, mas de "estruturas injustas", conforme faria constar, em 1968, no documento episcopal de Medelln.

Durante o Conclio Vaticano II (1962-1965), o "bispo dos pobres" promoveu uma articulao entre cardeais e bispos de todo o mundo em favor da insero da Igreja nos setores populares. Props ao papa Joo 23 entregar o Vaticano e suas obras de arte aos cuidados da UNESCO, como patrimnio cultural da humanidade, enquanto o papa aria a morar, na qualidade de bispo deRoma, numa parquia da capital italiana. Ele sonhava com uma Igreja menos imperial e mais parecida com a comunidade dos pescadores da Galilia.

No Rio, dom Helder Cmara contava com o apoio de um grupo de leigos, homens e mulheres, conhecido como "a famlia messejanense" - referncia Messejana, distrito cearense no qual nasceu. A "famlia" teve o privilgio de receber, em forma de cartas, o dirio do arcebispo durante o Conclio, onde ele narra, sem censura, os bastidores do conclave - documento de inestimvel valor a ser divulgado aps a sua morte.

Dom Helder nunca cedeu s presses de quem pretendeu torn-lo, como JK, prefeito do Rio, senador e at presidente da Repblica. Arcebispo de Olinda e Recife, jamais aceitou morar em palcio. Fez dos fundos de uma igreja sua casa e ali ele prprio atendia porta a quem batia. Com certeza, nenhum brasileirofoi to biografado. A maioria das obras assinada por autores estrangeiros, embora ele tenha conseguido o milagre de ser profeta em sua prpria terra.

Integralista na juventude, progressista na idade adulta, dom Helder sempre surpreendeu a quem quis enquadr-lo em jarges. Sob a ditadura militar, dialogou com os generais que o censuravam na mdia e socorreu os perseguidos e os presos polticos na defesa intransigente dos direitos humanos.

Sua fama no exterior - entre brasileiros, s comparvel de Pel - levou a Polcia Federal, sob o regime militar, a oferecer-lhe segurana. Braslia temia que ele sofresse um atentado. Dom Helder disse aos policiais: "No preciso dos senhores. J tenho quem cuida de minha segurana". Os agentes pediram os nomes. Precisavam de registro nos rgos oficiais. O bispo no se fez derogado: "So o Pai, o Filho e o Esprito Santo".

Certa noite familiares aflitos procuraram dom Helder. Um homem tinha sido preso e estava sendo espancado na delegacia. O prelado ligou para o delegado: "Aqui dom Helder. Est preso a o meu irmo". O policial levou um susto: "Seu irmo, eminncia?" Dom Helder explicou: "Apesar da diferena de nomes,somos filhos do mesmo pai". O delegado desmanchou-se em desculpas e mandou soltar o preso irmo do arcebispo. Filhos do mesmo Pai...

Assim era dom Helder, um homem evanglico, simples, sem firulas episcopais.

E como tinha muita f, jamais conheceu o medo. E amou de todo o corao essaIgreja que tanto quis ver renovada e, no entanto, jamais concedeu-lhe o merecido ttulo de cardeal.

Faltou este homem na galeria do Prmio Nobel da Paz. Com certeza o futuro cumprir a justia de entroniz-lo entre aqueles que so venerados como santos.


O FATOR H

OUTUBRO - 1999


O evangelho centraliza-se no fator H: o ser humano a obra-prima de Deus. A ponto de o prprio Deus assumir, em Jesus de Nazar, a condio humana.

Assim, para o evangelho toda pessoa sagrada, vocacionada comunho com o Absoluto, morada viva do Esprito Santo. Contra um ser humano no se ite nenhum gesto, quanto mais uma estrutura social, de opresso, humilhao ou excluso.

Jesus chega a identificar-se com as vtimas da injustia, demonstrando que Deus se coloca no apenas do lado delas, mas tambm na pele delas: "Tive fome, sede, estive doente, preso" (Mateus 25, 35).

Para quem se considera discpulo de Jesus, o fator humano deveria ser o alfa e o mega de todos os governos, civis e religiosos. Ocorre que o poder tem uma diablica fora de tornar-se seu prprio fim.

Tornam-se pedras, no caminho de muitos, trs coisas que deveriam estar direcionadas ao bem: o poder, o dinheiro e o sexo. Das trs, o poder a mais sedutora, porque permite morder o fruto do Paraso e experimentar a ilusria sensao de ser deus.

Dom Helder Camara morreu sem ver realizado o seu sonho: o ano 2000 sem misria em nosso pas. Isso porque os nossos governos no consideram o fator H. Rege-nos uma economia virtual. Fala-se de ajuste fiscal, queda dos juros, alquotas, moedas podres etc, numa linguagem esdrxula que o vulgo no entende e da qual desconfia.

A cada seis meses temos um novo pacote de medidas sociais, sem que haja um programa de governo centrado no social. E nada modifica o panorama visto debaixo da ponte.

L esto os sem-teto, os desempregados, a escria dessa sociedade que produz uma terrvel e temvel aberrao: crianas de rua.

Para que serve uma economia incapaz de incorporar, no direito ao po, sade e educao, o fator humano?

Todos ns agimos segundo paradigmas que abraamos. Os paradigmas da equipe econmica do governo FHC no so os pobres, os doentes, os famintos, os aposentados e os desempregados. o FMI. Governa-se para cumprir metas impostas por aquela instituio que, em toda a sua histria, jamais arrancou um pas da misria. Pelo contrrio, agravou a situao econmica e social dos pases asiticos. E endividou todos que recorreram sua ajuda.

O governo FHC promete investir R$ 33 bilhes em 2000 na rea social, de um total de R$ 112 bilhes previstos para os prximos quatro anos. E vai desembolsar, no prximo ano, R$ 69 bilhes para pagar juros da dvida federal! Eles contraem a dvida, ns pagamos, sem que os benefcios cheguem populao. O povo padece. As elites se locupletam.

Se no houvesse a Marcha dos 100 mil e o Grito dos Excludos, o governo proporia o pacote de medidas sociais? bvio que no. O que demonstra que ele no tem rumo nem proposta. Age ao sabor das presses momentneas. E reage base de promessas. "Nada pra j", como diz um verso de Chico Buarque. Tudo para o ano que vem. Parafraseando Stefan Zweig, o Brasil mesmo o pas do futuro.

Para a lgica evanglica, muito estranho essa idolatria do capital. Da vida s se leva o que trazemos no esprito. A morte inelutvel. O resto fica aqui e apodrece. Mas no fcil sair de si e pensar no outro.

O amor fruto de intensa educao. Mas no consta no currculo de nenhuma escola. A ponto de as pessoas pensarem que amor esse fluxo de sentimento gregrio que nos deixa encantado pela presena do outro. Por isso a morte di, porque quebra o nosso ego. Os msticos no temem a morte porque esto possudos por um Outro a quem anseiam ver face a face.

O fator H nasce da capacidade de amar o outro como semelhante, ainda que haja diferenas de idade, raa, sexo e condio cultural ou social. Traduz-se em pequenos gestos da vida cotidiana: o modo de tratar o prximo, a justia como princpio, a transparncia nas relaes, a tolerncia com o diferente, o cuidado em no difamar, caluniar, nem cometer agresses verbais.

Quem ama comivo, sente-se ofendido com a injustia cometida a outrem, impede que seu corao naufrague em iras e mgoas. Quem ama no inveja e nem se julga melhor ou pior do que ningum. Humildade vem de humus, terra. Quem ama tem os ps na terra. No se julga dono da verdade, mas guarda em si uma voraz fome de justia, que Jesus qualifica de bem-aventurana.

Todas as alquimias economicistas podem encher de brilho a boca de seus orculos, mas de nada valem se no enchem de po a mesa e de paz o esprito da gente. Isso o que importa. E o que falta.

A SEMELHANA E A DIFERENA

NOVEMBRO - 1999


Os grupos e movimentos religiosos, at dentro de uma mesma Igreja, dividem-se entre aqueles que buscam a semelhana e aqueles que buscam a diferena em relao a outros grupos eclesiais e/ou sociais.

Ao longo da histria das religies, os grupos da diferena aparecem com mais nitidez.

Eles constrem sua identidade a partir da crtica aos demais. A seus fiis importa mais o que no so do que o que so. o caso dos grupos catlicos que no aceitam a teologia da libertao ("que mistura religio e poltica"); no acreditam em mortos que retornam ("como os espritas"), no negam a infalibilidade do papa e a virgindade de Maria ("como os protestantes"); no crem em reencarnaes ("como os budistas") etc.

Vale para os grupos evanglicos que no fumam, no ingerem bebidas alcolicas, no aceitam a autoridade do papa, no se pem de joelhos diante de imagens, no consideram o celibato uma virtude etc.

Para os adeptos da diferena, o outro visto pelo que "falta" a ele. Ou melhor, assumem-se como dotados de uma especial vocao e misso sobrenaturais, que os faz sentirem-se mais prximos de Deus do que o comum dos mortais, imersos na cegueira e nas frivolidades da vida mundana.

Assim era a viso que escribas e fariseus tinham do grupo de Jesus. Este merecia ser censurado e marginalizado porque no acatava a autoridade do Templo de Jerusalm, no cumpria os preceitos de purificao, no evitava o contato com os "malditos", como pecadores, prostitutas, aleijados e endemoninhados.

Os adeptos da semelhana encaram os outros realando os valores que eles possuem.

A graa de Deus manifesta-se a todos, talvez os meus olhos que no percebam o que os outros tm a me ensinar, pensam eles. Essa foi a atitude de Jesus diante da mulher canania (Mateus 15, 21-28), dos samaritanos, da mulher adltera, do modo como os pobres acolhiam o dom de Deus (Mateus 11, 25-26).

O branco tende a olhar o ndio por aquilo que ele, branco, tem a seu alcance carro, telefone, aparelhos eletrnicos e o ndio no tem. o olho do colonizador, que em nenhum momento se pergunta: o que tm os indgenas que eu no tenho? Por que ser que entre eles no h homicdios, dependentes qumicos, desprezo s crianas e aos idosos? Por que os povos indgenas tribalizados no se preocupam em acumular riquezas e so felizes se dispem de recursos mnimos?

O fato de eu ser catlico no me torna necessariamente melhor nem pior do que ningum, a menos que eu ceda ao farisasmo, que Jesus criticou com fina ironia ao descrever a orao do fariseu: " Deus, eu te agradeo, porque no sou como os outros homens, que so ladres, desonestos, adlteros" (Lucas 18, 11).

Mas, serei um bom cristo? A Bblia, em seu realismo, no inferioriza o ser humano diante da grandeza de Deus. Ao contrrio, afirma que ns somos "imagem e semelhana" de Deus. Mas no somos deuses. Marcados pela contradio, que a linguagem religiosa chama de pecado, nem isso nos torna desprezveis aos olhos divinos, mas suscita o amor de Deus, que nos enviou seu Filho e nos deu seu Esprito.

Esses nos ensinam a prtica da semelhana pelas virtudes da tolerncia, do perdo, da compaixo e da humildade. Sobretudo do amor, que a matria-prima com a qual se tece a semelhana.

A tica da diferena narcsica, fascista, prepotente. Por ela os europeus julgaram-se no direito de aniquilar os ndios ("que no tinham alma"); os homens submeteram as mulheres ("seres imperfeitos, inferiores"); os brancos discriminaram os negros ("no so como ns"); os nazistas assam os judeus ("que no traziam sangue puro"); a inquisio supliciou os que no acatavam a autoridade eclesistica ("os hereges"); os estalinistas fuzilaram os seus crticos ("traidores e revisionistas"); a ditadura militar torturou e matou seus opositores ("os terroristas").

A tica da semelhana autocrtica, sensata, ecumnica, capaz de apreciar o que o outro tem a ensinar, a dizer, a revelar em sua singularidade e mistrio. O critrio de juzo dessa tica no a sua prpria identidade enquanto grupo, mas os valores que a justificam: a vida, os direitos humanos, a cidadania, a democracia real. Ela acata a unidade na diversidade e se empenha pela solidariedade na pluralidade.

Quem exclui, na verdade se exclui. Mas abraar a semelhana no ceder ao desfibramento de quem no tem princpios. buscar para todos, sem exceo, os direitos fundamentais que asseguram a cada um dignidade, justia, liberdade e paz.

Nesse sentido, a semelhana marca diferena em relao queles que consideram as desigualdades sociais to inevitveis e naturais como a chuva e os ventos. Mas no os discrimina. Antes, procura criar uma sociedade onde a vida seja estruturalmente assegurada, para todos, como dom maior de Deus e expresso melhor da evoluo do Universo.


FELIZ TERCEIRO MILNIO

DEZEMBRO - 1999


Na noite de 31 de dezembro para 1 de janeiro, milhares de pessoas iro celebrar um equvoco: o incio do sculo 21 e do Terceiro Milnio.

Vamos apenas ingressar no ano 2000, o ltimo do sculo e do milnio. Basta a elementar aritmtica para saber que um sculo, que enfeixa 100 anos, no pode ter somente 99. Nem dois milnios 1999 anos.

A era crist foi calculada pelo monge Dionsio, o Pequeno, no sculo 6. Ento, os europeus no conheciam o zero, j includo na matemtica dos maias e dos indianos. Portanto, no tendo havido o ano 0, a dezena, a centena e o milhar s se completam no 10, no 100 e no 1000. Stanley Kubrick acertou ao intitular seu filme de "2001, uma odissia no espao".

No faz mal, teremos, este ano, o rveillon psicolgico. Ano que vem, o cronolgico.

Para a alegria das agncias de turismo. Alis, os mais atentos sabem que j ingressamos, h tempos, no ano 2000 da era crist.

Dionsio, o Pequeno, errou no clculo da data de nascimento de Jesus. O rei Herodes morreu no ano 4 a.C. E Mateus registra que Jesus nasceu "no tempo do rei Herodes" (2, 1), provavelmente entre os anos 8 e 6 antes da era crist. O que significa que, ao ser assassinado no ano 30, ele teria de 36 a 38 anos de idade.

H cem anos, houve o mesmo debate quanto mudana do sculo, a ponto de irritar o fleumtico "The Times". Cansado da polmica, o jornal ingls deu um basta, no editorial de 26 de dezembro de 1899: "O sculo atual s terminar no dia 1 de janeiro de 1901, no mais discutiremos este fato. uma discusso tola e infantil, que no faz mais que expor o desejo dos crebros daqueles que teimam em manter uma posio contrria nossa."

Nos ltimos meses, muitos se viram diante da pergunta: aonde voc vai ar o rveillon? A maioria ar trabalhando, para que os mais afortunados possam se divertir. Garons, copeiros, cozinheiros e empregadas domsticas vero uma pessoa gastar, em poucos minutos, o que eles no ganham em um ms de trabalho. Sem falar naqueles que pagaram uma fortuna para se deslocar de casa para um lugar emblemtico em suas cabeas, como Nova York, Paris ou na ilha Pitt, na Nova Zelndia, onde o Ano Novo chegar primeiro.

Trafegamos entre a vaidade de, mais tarde, dizer "eu estive l", e a nsia espiritual de vivenciar um rito de agem. Esses ritos so raros na vida, como o nascimento, o ingresso na maioridade e o casamento. No fundo, vamos sempre em busca de ns mesmos.

Porm, seres narcsicos, necessitamos de espelhos. De preferncia, os olhos alheios.

No quaisquer olhos, mas os de nossos pares na condio social, no prestgio e no poder. Porque j no sabemos ser felizes sem provocar inveja nos outros. Da o medo da solido, sobretudo para quem dependura a mesquinhez dalma num momento de alegria.

De que vale mudar de ano, de sculo e de milnio sem que haja mudana em nossas vidas? Vivemos assaltados pelos fantasmas projetados pelo prprio desejo. Amanh haveremos de meditar, comer menos, andar mais, dialogar com os filhos, tratar melhor os subalternos, ler os livros empilhados, visitar o amigo doente.

Amanh. Hoje, no. Hoje a sofreguido dos modismos, a istrao dos bens, os atropelos dos sentimentos, as intenes sempre adiadas, as preocupaes que dilaceram o esprito e estragam o prazer de viver.

Os povos antigos sentiam necessidade de renovar o mundo periodicamente. Na Mesopotmia, a criao do mundo repetia-se ritualmente nas festas do Ano Novo. Celebrava-se a vitria de Deus sobre o vazio primordial, como registra o "Gnesis", que descreve, em seus primeiros captulos, a agem do Caos ao Cosmo (mesma raiz grega de cosmtico, o que torna belo).

Sentimos tambm o desejo de renovar nossas vidas, como Nicodemos que, ao procurar Jesus de madrugada, recebeu dele o convite a nascer de novo, pelo Esprito (Joo 3, 1-8). Introduzidos inconscientemente no ciclo morte-ressurreio, somos atrados pela utopia de que "amanh ser outro dia", como assegura o poeta.

Rveillon significa, em francs, despertar na agem de um dia para o outro. Ainda que a noite de 31 de dezembro seja apenas um momento de festa e confraternizao, que tal deixar que o "bug" ocorra em nossas vidas, zerando os nossos dbitos de amor, e acatar a proposta de Jesus a Nicodemos?


FELIZ ANO NOVO AOS CORAES VELHOS

JANEIRO/FEVEREIRO - 2000


Feliz Ano Novo aos que praguejam sobre o solo rido de suas vida sem garimpar alegrias, e aos que amarram o esprito em teias de aranha sem se dar conta de que os dias tecem destinos. Tambm aos que desaprenderam o sorriso e abandonaram ao olvido a criana que neles residia.

Feliz Ano Novo aos que perambulam s margens da memria e semeiam dio no quintal da amargura; guardam dinheiro na barriga da alma e penhoram a felicidade em troca de ambies; so nufragos de lgrimas, cegos aos arquiplagos da esperana, e fantasiam de asas as suas garras, voejando em torno do prprio ego.

Feliz Ano Novo aos que sonegam carinho e ainda cobram ateno, alpinistas da prepotncia que os conduz ao abismo; queles que, alheios ao que se a em volta, ilham-se na indiferena enquanto o mar arde em fogo; e a quem gasta saliva tentando se justificar por se disfarar em pomba e agir como raposa.

Feliz Ano Novo aos que escondem o Sol no armrio, sopram a luz das estrelas e pem espessas cortinas no limiar do horizonte. Aos que nunca tiveram tempo para a dana, ignoram por que os pssaros cantam e jamais escutaram um rumor de anjos.

Feliz Ano Novo aos que bordam iras com agulhas afiadas e desperdiam palavras no furor de suas emoes desabridas; seqestram dignidades e, como os colecionadores de borboletas, sentem prazer em espet-las no interior de cavernas obscuras.

Feliz Ano Novo aos faquires da angstia e aos que, equilibrados num fio de sal, trafegam por cima de montanhas de acar. Tambm aos que jamais dobraram os joelhos em reverncia aos cus e acreditam que a histria do Universo tem incio e fim neles.

Feliz Ano Novo s mulheres que destilam antigos amores em cpsulas de veneno e aos homens que, ao partir, mostram, s costas, a face diablica que traziam mascarada sob juras de amor.

Feliz Ano Novo aos jovens enfermos de velhice precoce e aos velhos que, travestidos de adolescentes, bailam aos desafinados acordes do ridculo. E aos que atravessam o tempo sem se livrar de bagagens inteis e ainda sonham em ingressar numa nova era sem tornar carne o corao de pedra.

Feliz Ano Novo aos que j no sabem conjugar os verbos no plural; agendam sentimentos e esto sempre atrasados na vida; mendigam irao e se prostituem frente seduo do poder.

Feliz Ano Novo queles que do "mau-dia" ao acordar, afogam em trevas interiores a alegria que lhes resta, encaram a vida como madastra de histria infantil. E aos que julgam que laos de famlia se cortam com a ponta afiada da lngua e ignoram que o sangue escreve letras indelveis.

Feliz Ano Novo aos que se apegam ao poder como a fuligem ao lixo, infantilizados pelas mesuras, prenhes de mentiras ao agrado do ouvido alheio, solcitos s providncias que assassinam a tica. Sejam tambm felizes os que tentam corromper os filhos com agrados materiais e nunca dispem de tempo para olh-los nos olhos do corao.

Feliz Ano Novo aos navegadores cibernticos, mariposas de noes fragmentadas,amantes virtuais que se entregam, afoitos, ao onanismo eletrnico, digitando a prpria solido.

Feliz Ano Novo aos poetas que no sabem tragar emoes e engolem com ira palavras que trariam vida ao mundo. E aos que abominam a arte por desconhecerem que o ser humano modelado em barro e sopro.

Feliz Ano Novo a todos que temem a felicidade ou consideram, equivocadamente, que ela resulta da soma dos prazeres. E aos que enchem a boca de princpios e se retraem, horrorizados, diante do semelhante que lhe diferente.

Feliz Ano Novo s mulheres que se embelezam por fora e colecionam vampiros e escorpies nos lgubres pores do esprito. E aos homens que malham o corpo enquanto definha a inteligncia, transgnicos prometeus acorrentados ao feixe dos prprios msculos.

Feliz Ano Novo a todos os infelizes, aos que o so e aos que se julgam, cegos s

infinitas possibilidades da luz e das rotas. Sejam todos agraciados pela embriaguez da alegria divina, abertos ao Deus que os habita e ao amor que, como um rio cristalino, jamais nega gua a quem se ajoelha, reverencia o milagre da vida e aprende a beber do prprio poo.


MULHER, USO E ABUSO

MARO - 2000


A 8 de maro comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Neste ano, a data coincide com a Quarta-Feira de Cinzas. Instaura-se o paradoxo. A beleza defronta-se com o espectro da morte. Aps o Carnaval da nudez despudorada, as cinzas.

A sociedade de consumo, privilgio de poucos, gira em torno do lucro obtido com a venda de bens e servios. E de aplicaes financeiras que multiplicam o dinheiro. Aos olhos da publicidade, o cidado reduz-se a mero consumidor movido a desejos. Toda a propaganda transforma-se num jogo de seduo.

Quanto mais emoes e iluses, menos razes e valores, mais vulnerveis nos tornamos aos apelos consumistas, cuja principal isca a mulher.

O mercado, onde outrora o homem figurava como nico provedor, exceto para as compras da feira e das crianas, hoje tem na mulher ua mantenedora de mo cheia. Da a publicidade dirigida consumidora, mulher que tem profisso e renda prpria. Na escolha de bens e servios, ela agora concentra um poder de deciso equiparvel ao do homem.

A propaganda vende quimeras. No se compra apenas um sabonete, uma roupa ou uma bebida.

Compram-se sobretudo o sonho de ser mais uma entre as dez atrizes que se banham com aquele produto, a fantasia de tornar-se to sedutora quanto a jovem que entra no jeans, a aspirao de desfrutar da alegre ociosidade de tanta juventude a borbulhar no gargalo da garrafa.

Reificada, coisificada, destituda de mente e esprito, a mulher reduzida a formas e trejeitos, sem que os movimentos feministas consigam fazer ouvir sua voz de protesto. Como um ninho de serpentes, moas retorcem-se em gemidos no prostbulo televisivo, enquanto no filme e na telenovela o adultrio propagado como direito liberdade. Nos programas humorsticos, a mulher imbecilizada e ridicularizada.

No s homens fazem da mulher objeto do desejo. Basta uma olhada nas capas das revistas femininas. Mulher se compara a mulher na busca de melhor performance social, sexual e esttica. Se, alm da roupa, a moda dita um corpo esqulido como o de uma africana abatida pela fome, a anorexia impe-se como salrio da vaidade. A medicina cria um novo ramo para atender ao luxo da ditadura esttica, como se o corpo que foge ao modelo imperante fosse portador de doenas e anomalias. A ponto de, recentemente, uma mulher Eva na contramo arrancar costelas para renascer bela no corpo atrofiado.

Essa cultura da glamourizao move as lucrativas indstrias de cosmticos, publicaes, esportes e academias de ginstica. Sua isca a mulher reduzida aparncia e destituda de direitos, essncia, subjetividade, idias e valores. Dcil aos caprichos da publicidade, o corpo vai leilo na feira de amostras das revistas maculinas.

Ora, como estranhar que, na esfera da realidade, as relaes sejam conflitivas e at violentas? Proliferam delegacias de mulheres. Pois no h de ser essa propagao da mulher como mero objeto de consumo que suscitar no homem respeito e alteridade. Uma coisa uma coisa. Manipula-se, usa-se, descarta-se.

Enquanto a mulher aceitar esse jogo de marketing, movida pela quimera de ser to bela quanto a fera, ser difcil cegar os olhos do machismo, tanto o masculino, que a submete, quanto o feminino, de quem aceita ser submetida e, portanto, humilhada. A exposio ertica da mulher uma notria humilhao do feminino, pois torna a beleza resultado da soma de atributos fsicos exacerbados pela protuberncia das formas e os ditames da moda.

Belas, a meus olhos, so Fernanda Montenegro, Adlia Prado, Lygia Fagundes Telles, Odete Lara e Zilda Arns Neumann. Elas correspondem ao que Marcello Mastroianni, que entendia de mulheres, e com quem estive em 1986, qualificou de mais fascinante que pode haver numa mulher: a coerncia de sua histria de vida. Mas isto no est venda. uma conquista.


PSCOA, O LADO AVESSO DA PELE

ABRIL/2000


Uma das caractersticas da ps-modernidade a reduo da cultura a mero entretenimento e a exacerbao dos sentidos em detrimento da razo e do esprito. Para estimular o consumismo, utilizam-se como isca recursos capazes de nos fazer sentir mais e pensar menos. Isso vale para a publicidade, certos programas televisivos e at rituais religiosos.

Dissemina-se uma cultura centrada no epidrmico, na qual h mais esttica que tica, ndegas que cabeas, urros que melodias, ambies que princpios, devaneios que utopias. Tudo aqui e agora, a ser devorado por olhos e ouvidos, o corpo entregue a um frenesi de sensaes que faz do prazer e do sexo simulacros da felicidade e do amor.

Seres relacionais e racionais, como acentuam os filsofos desde Scrates, somos agora reduzidos a seres extrofiados, revirados para fora, estranhos a ns prprios, como lamentava Kierkegaard, pois nossa auto-estima a a depender do que vem de fora da gula e da antropofagia visual aos arremedos de fama, fortuna e poder.

Pscoa significa travessia, agem. Talvez uma das mais difceis a que nos faz percorrer o caminho entre a epiderme e a vida interior, no para dualizar polaridades, mas para resgatar a unidade. O budismo tibetano tem razo ao afirmar que, malgrado todo avano cientfico e tecnolgico, cada pessoa ontologicamente a mesma desde que o smio tomou conscincia de que o galho de rvore em sua mo poderia servir-lhe de arma de ataque e de defesa.

Aristteles sintetizou-nos em esferas sensitiva, racional e espiritual, como unidade que exige equilbrio. A exacerbao de uma resulta na atrofia das outras. S a predominncia do espiritual capaz de imprimir sensatez "s loucas da casa", como diria o poeta, evitando o sabor de nusea dos sentidos, descritos por Sartre, bem como o racionalismo que, ao contrrio de Toms de Aquino, julga equivocadamente que a razo a suprema expresso da inteligncia.

Fazer Pscoa em si mesmo cultivar a subjetividade. "Beber do prprio poo", sugerem os msticos. Desnudar-se de iluses egocntricas, jejuar os sentidos, adequar a razo a seus limites, orar e meditar para poder contemplar.

Somos seres vocacionados transcendncia. Como dizia Hlio Pellegrino, uma samambaia desfruta de sua plenitude vegetal. Ns, no; escravos do desejo, temos buracos no corpo e na alma. a "gula de Deus", da qual falava Rimbaud.

Ao deixar de trilhar as veredas que conduzem ao Absoluto, corremos o risco de nos perder no acidentado terreno que cotidianiza o absurdo: iras e mgoas, inveja e competio, medo e, sobretudo, uma incmoda sensao de no saber exatamente o que fazer desse breve perodo de existncia.

A Pscoa precedida de morte que, emblematicamente, a tradio crist qualifica de paixo, um ato de amor, de entrega, que faz refluir tudo aquilo que dispersa, aliena e ilude. Jesus no tmulo simboliza o silncio, a volta ao mais ntimo de si mesmo, abraar a solido sem se sentir solitrio.

Ressuscitar, renascer na ousadia de assumir valores altrustas e empenhar-se para que a justia seja o fundamento da paz.

Tudo que existe pr-existe, subsiste e coexiste. Universo, e no pluriverso. Comunho e luz. No em vo que os orientais chamam o centro energtico do nosso ser, l onde se situa o corao, de plexo solar. O silncio das galxias no infinito um convite para que se saiba fechar os olhos para ver melhor. E descobrir, no mago de si, a presena amorosa de Deus, que impregna o lado avesso da pele e anseia fluir por todo o corpo, palavras e atos, de modo a fazer de ns seres vitalmente pascais, cuja existncia coincida com a sua essnci.

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SABER VIVER, SABER MORRER

MAIO - 2000


O tema da vida , paradoxalmente, uma evocao da morte. Nesta rdua aventura existencial que no escolhemos e, no entanto, assumimos, vida e morte no so polos antagnicos, mas faces de um mesmo rosto: o do sentido que imprimimos nossa existncia. Do mais ntimo do nosso ser - l onde tateia a psicanlise - ao mais social e pblico - onde balbuciam as cincias polticas - a dialtica da vida e da morte expresso de nossos anjos e demnios.

De algum modo, cada um de ns dois. "No fao o bem que quero, mas o mal que no quero", dizia so Paulo (Romanos 7, 19). Sem regredir ao maniquesmo e, muito menos, negar a unidade ontolgica do ser humano, um fato que a ideologia da morte impregna em nossa existncia o amargo sabor do egosmo. Subvertem a nossa bondade intencional o Pinochet que nos habita, o Hitler que nos leva ira, o aprendiz de ditador que se manifesta em nosso reduzido universo de poder.

Sim, como difcil praticar, na esfera pessoal, a democracia apregoada em pblico! Nesse espao cotidiano de interrelaes, toda espcie de opresso pode brotar: palavras que agridem, omisses que prejudicam, infidelidades que minam, ambies que poluem a transparncia dos propsitos. Em nome da vida, semeia-se a morte alheia. Assina-se, assim, a prpria sentena, pois a vida s ala vo e transcende o prprio eu na medida em que se faz amor para os outros.

Falar da vida erguer-se contra o sistema que estruturalmente se alimenta da morte. A agonia diria do trabalhador explorado, a morte cvica dos direitos humanos negados, a marginalizao poltica de quem no participa da escolha de seus governantes - so sinais da necrofilia de uma ordem social.

A violncia no est engatilhada apenas no tambor de um revlver. Ela o precede, engendrando economicamente o contingente de excludos do sistema. Nasce da deciso poltica de arrancar o po da boca da coletividade, para que o valor de troca prevalea sobre o valor de uso. Revestida de fetiche, a mercadoria entra no ritual dos lucros e exclui do templo toda a multido de fiis que no est revestida do manto sagrado da propriedade privada dos meios de produo ou do capital.

Mas no s de po que temos fome. Como diz o poeta cubano Onlio Cardoso, a fome de po sacivel, fruto da justia; voraz e insacivel a fome de beleza - essa compulsiva atrao que sentimos pela transcendncia, a razo saturada em seus labirintos geomtricos, o sabor esttico que, em nosso silncio, toma emprestado a msica, a letra, a imagem, a forma e as cores, que exprimem o sentido do nosso existir.

a sabedoria brotada da intuio que nos aponta o caminho adequado. to profundamente humana essa experincia de tocar o Inefvel, que a f denomina Deus.

No amor, o gesto traduz essa sede, como quem ergue o copo repleto at a borda, bebe e constata, surpreso, que a sede foi apenas aplacada, jamais saciada. Pois s a Fonte de gua Viva, beira do poo de Jac, liberta o ser humano das sedues do Absurdo e lhe d a conhecer a plenitude do Absoluto. Pois Ele veio para dar a vida a todos e vida em abundncia (Joo 10, 10).


CARTA AOS AMIGOS


S. Paulo, 29 de fevereiro de 2000

Querido(a) amigo(a)

S daqui a quatro anos teremos um novo 29 de fevereiro. Contudo, pode-se fazer o bem a qualquer momento.

Como muitos j sabem, todo ano, na Quaresma, promovo campanha em prol de crianas carentes. Apoio projetos srios, que fazem bom uso do dinheiro e, em geral, no contam com recursos pblicos.

Em 1998, inmeros amigos e amigas ajudaram a manter o Projeto Cintilar, de So Loureno (MG), tocado por uma amiga que j a dos 70 anos, mas conserva o mesmo ardor dos 20 em matria de justia social. Ano ado, a beneficiada foi a Casa Vida, que acolhe crianas com aids, monitorada pelo bravo padre Jlio Lancellotti.

Este ano, a Campanha da Fraternidade pela primeira vez promovida por sete Igrejas (catlica, luterana, metodista, anglicana, crist reformada, presbiteriana unida e ortodoxa siriana) tem como tema "Um novo milnio sem excluses". Nessa direo, escolhi como alvo de nossa solidariedade a Casa Taiguara, em So Paulo, a qual retornei na manh de hoje.

Fundou-a meu amigo Daniel Fresnot, um francs que, sob a ditadura, esteve exilado na Frana Tem 51 anos, escritor e empresrio, dono da Fibratam (usina de tambores de fibra) e dotado de um profundo e genuno esprito gandhiano ou franciscano, tamanho seu despojamento.

A Casa Taiguara, fundada em 1996, fica no centro de So Paulo, na rua Vicente Prado 93, Cep: 01321-020, Telefax: 239-3146. At dezembro de 1999, atendeu 315 crianas e jovens de rua. Desses, 40 retornaram escola. E mais da metade j retomaram seus vnculos familiares. Neste incio de ano, 14 foram matriculados na escola estadual da Moca.

Pasmem: a diretora da escola contou que tem alunos da 6 srie que dormem sob os viadutos da cidade.

Por que esses meninos(as) vo pra rua? As principais causas so a violncia domstica (briga entre casais, embriaguez, estupro da filha etc) e desintegrao da famlia (perda damoradia devido o preo do aluguel, desemprego, pai preso e me que faleceu etc).

A Casa Taiguara respeita a liberdade das crianas. Elas entram quando querem e, ali, tm direito a refeies, banho, lavar roupas, ganhar roupas novas e dormir. Mas tambm tm deveres: jamais ingressar com armas, drogas ou objetos roubados; evitar brigas; eparticipar das atividades internas, como ajudar na limpeza e freqentar as aulas deportugus e matemtica. H tambm cursos de eletricidade e informtica. Agora, organiza-se uma biblioteca (aceitam-se doaes, sobretudo de livros infanto-juvenis, dicionrios e didticos). A cada ms, am pela casa cerca de 60 crianas e jovens, de 7 a 17 anos.

Os dependentes de drogas so enviados, por livre vontade, a clnicas de desintoxicao.

Isso custa caro casa. Cada criana precisa ficar pelo menos 6 meses na clnica. E a mensalidade de R$ 200,00.

Hoje, trabalham na Casa Taiguara 12 educadores, cada um com salrio de R$ 600,00. O custo mensal de manuteno cerca de R$ 20 mil. Daniel Fresnot tem conseguido chegar aos R$ 12 mil E est comprando a casa, ao preo de 120 mil reais. J conseguiu pagar a metade. Tudo base de doaes. E ateno: sem um tosto do poder pblico. Como ele escreveu em artigo na Gazeta Mercantil (23/11/99) "uma cidade como So Paulo, que movimenta bilhes de dlares, tem apenas um abrigo aberto 24 horas para crianas de rua, mantido sem nenhuma ajuda pblica nem de fundaes; a Casa Taiguara". Isso Brasil.

Basta dizer que, para registrar a obra, Daniel Fresnot levou um ano e meio enredado nas burocracias municipal e estadual!

Como no convm misturar crianas e jovens, ele tem outra moradia em vista, no Bexiga, onde pretende inaugurar a Casa Taiguarinha. A proprietria, em apoio ao projeto, topou vend-la pelo mesmo preo da atual: 120 mil. Falta recolher a grana.

Vale a pena investir neste projeto. Se voc est disposto, remeta sua contribuio, ainda que seja o que gastaria num jantar em restaurante, em nome da MORADIA ASSOCIAO CIVIL, para uma dessas trs contas:

Banco Ita agncia 0048 conta 03348-4

Banco Bradesco agncia 0614 conta 054560

Banco Banespa agncia 0115-13 conta 002526-6

Se necessita de recibo, remeta fax do comprovante pelo n (XX 11) 3664-7938 e seu nome e endereo.

Desejo a voc uma Pscoa de profunda alegria no Senhor da justia, com a minha amizade e paz,

FREI BETTO


CORPO CSMICO

JUNHO/JULHO - 2000


A festa de Corpus Christi, no dia 22 de junho, convida os cristos a refletirem sobre a materialidade do ser. O cristianismo, malgrado as tendncias espiritualistas, a religio da concretude: fatos histricos, como a vida e a morte de Jesus; o po e o vinho como smbolos da nossa comunho com Deus; a "ressurreio da carne" proclamada no Credo.

Somos um corpo. Assim como a rvore brota da terra, o corpo humano emerge da evoluo do Universo. Somos todos feitos de matria estelar. Nosso corpo tem a idade aproximada de 15 bilhes de anos! Sua gestao teve incio quando o calor da exploso inicial do Universo ofereceu, a olhos nenhum, a primeira festa csmica de So Joo. Fogueiras acesas no firmamento pontilharam de luz a escurido do cu.

Ali, no bojo dos fornos estelares, o hidrognio, cozido a temperaturas altssimas e diferenciadas, engendrou o magnfico colar da escala atmica.

Todos os tomos do nosso corpo adquiriram, nas entranhas das estrelas, existncia e consistncia. Eram, ento, como notas da escala musical que ainda no encontraram o instrumento capaz de faz-las ressoar em msica.

Muito tempo depois, os tomos de nosso corpo ganharam pele nas molculas e vestiram-se com a roupa das clulas, construindo esse ser que somos. J no faz sentido falar que somos um corpo dotado de alma. Menos platnico, So Paulo fala em "corpo espiritual" (I Corntios, 15,44).

O corpo contm o esprito assim como o esprito se consubstancia no corpo. Os jogos labirnticos dos redutos qunticos fazem a energia pulsar em matria e a matria expressar-se em energia, unidas no aparente paradoxo das partculas que fluem como ondas e das ondas que se exibem em partculas.

Faces sutis de um mesmo perfil coroado pelos eltrons, que brilham em torno do picadeiro desse fantstico circo onde prtons e nutrons produzem, na proporo exata, o espetculo do ser.

Tudo isso o corpo que somos, no qual a carne to espiritual quanto o esprito to carnal, indivisveis, dualidade sem dualismo, semente contida na rvore contida na semente que contm tronco e galho, seiva, folha e flor, assim como, desde seu incio, o Universo nos continha e, desde sempre, Deus nos enlaa em seu abrao amoroso.

Esse corpo que somos o corpo personificado do Cosmo. Teilhard de Chardin contempla o Universo como Corpo Csmico de Cristo. "Nele vivemos, nos movemos e existimos", acentua os "Atos dos Apstolos" (17,28).

Agora, em nosso corpo, o Universo abandona sua bilenar cegueira e ganha olhos em nossos olhos - espelhos em que ele se contempla e descobre, maravilhado, que belo. Da o nome que provm da mesma raiz grega de cosmtico, aquilo que embeleza.

Somos a Terra em sua expresso humana. Ns, homens e mulheres, no somos qual o barco colocado sobre as guas. Somos a gua moldada em ondas e espumas. Filhos da Terra, trazemos em nosso corpo a mesma proporo de gua e sal encontrada neste planeta. Da natureza emergimos e graas a ela nutrimos a nossa vida, e encontramos em nosso corpo matas em forma de plos, superfcies lisas e speras, reentrncias e protuberncias, fendas, canais, fontes e cavernas.

Esse corpo que somos dorme e sonha, sofre e goza, sabe-se feliz ou contrai-se em tristeza, esbanja sade ou fragiliza-se na doena. Sobretudo, capaz de algo invel a todos os outros animais: sorrir. E, no entanto, ainda vivemos num mundo submerso em lgrimas. Porque esse corpo, provido de sentimentos e emoes, guarda rancores, iras e dios, embora to capaz de compaixo, ternura e amor.

Esse corpo que somos morada divina. Porm, ainda profanado pelo trabalho opressivo, abatido pelas guerras, prostitudo pela misria, excludo pelo Estado de mal-estar social. Corpo feito para se revestir de dignidade, pleno de direitos.

Corpo copo que acolhe vinho e carinho e se projeta em palavras, como o pssaro lana-se ao vento que imprime vo s suas asas.

Esse nosso corpo, criado imagem e semelhana de Deus, idntico ao

corpo de Cristo e, como ele, vocacionado ressurrecionalmente eterna idade,

l onde o tempo se despe do espao e cede lugar plenitude do amor.


O PRIMADO DA VIDA

AGOSTO/2000


Doutrina e teologia da Igreja catlica conheceram considerveis avanos neste sculo, sobretudo a partir do Conclio Vaticano II (1962-1965).

Outrora, o planejamento familiar dependia da abstinncia sexual; o carinho entre o casal era considerado pecado; os protestantes e os judeus, abominados; o ecumenismo, impensvel; o latim, obrigatrio nas missas; a batina, nica indumentria social do padre.

Hoje, celebra-se em lngua verncula; o papa rene-se em Assis com representantes de diversas religies e visita a sinagoga de Roma; deixa-se fotografar em trajes esportivos, ao esquiar nas frias; e pede perdo pelo anti - semitismo da Igreja, pelos erros da Inquisio, pela condenao de Galileu e das teorias de Darwin.

Mesmo a teologia da libertao, encarada com suspeita na dcada de 80, incorpora-se agora aos discursos papais. Basta reler seus pronunciamentos em Cuba (1998) e no Mxico (1999), condenando o neoliberalismo e a globalizao, bem como seus insistentes apelos em prol da reforma agrria e da suspenso do pagamento da dvida externa.

A cidadela inexpugnvel , ainda, a teologia moral. Sobretudo o captulo concernente moral sexual, que probe relaes sexuais sem finalidade procriatria; condena o homossexualismo; impede os casais de segundas npcias, exceto na viuvez, de o aos sacramentos; e veta o uso de preservativos, malgrado a Aids ter tirado a vida, em 1999, de cerca de 4 milhes de pessoas em todo o mundo.

As autoridades da Igreja catlica, felizmente, demonstram maior tolerncia nesse mundo pluralista ps-moderno, em que no se pode pretender que a moral preceituada instituio seja imposta ao conjunto da sociedade.

Talvez isso explique o fato de Joo Paulo II, em sua ltima visita ao Rio, ter acolhido no altar cantores que j aram por vrios casamentos, e alguns prelados sentirem-se vontade entre figuras pblicas que esto longe de ser exemplo de virtudes na esfera conjugal.

Frente ameaa da Aids, o que o padre Valeriano Paitoni declarou ao reprter Armando Antenore, na Folha (2/7), em nada destoa do que antes dissera dom Paulo Evaristo Arns, que o preservativo "um mau menor".

O magistrio eclesistico sabe que direito e dever dos telogos pois este o carisma deles - debater todas as questes concernentes vida de f, e que "alguns documentos magisteriais no esto livres de deficincias. Os pastores nem sempre perceberam todos os aspectos e todas as complexidades de algumas questes" (Congregao para a Doutrina da F, 1990).

A questo sexual luz das fontes da Revelao crist situa-se num contexto mais amplo, que engloba desde o papel da mulher na Igreja, ainda hoje impedida de o ao sacramento da ordem, at o fim do celibato obrigatrio para os padres seculares, bem como a volta ao ministrio dos que se encontram casados. Como uma lente que se abre progressivamente, tais temas devem ser tratados com menos preconceito e mais estudos bblicos, menos autoritarismo e mais dilogo com a comunidade dos fiis, como fez dom Cludio Hummes, ao receber, semana ada, entidades solidrias aos portadores do vrus HIV.

A tradio ou histria da Igreja uma boa mestra quando no se quer repetir equvocos. Os irmos Cirilo e Metdio evangelizaram a Morvia, no sculo IX.

Criaram o alfabeto cirlico, base do russo atual. Traduziram para o eslavo os textos bblicos e litrgicos. Os bispos alemes protestaram, alegando que Deus s podia ser louvado nas trs lnguas da cruz: hebraico, latim e grego.

Cirilo morreu em 869. Metdio foi preso por ordem dos bispos alemes. O papa Joo VIII negociou sua libertao em troca do latim na liturgia.

Metdio recusou-se a abrir mo do eslavo. Dois anos depois, o papa cedeu e, sculos adiante, Joo Paulo II exaltaria os dois irmos na encclica Slavorum apostoli.

Condenada pela Igreja, ela foi queimada viva, a 30 de maio de 1431, como "herege, relapsa, apstata e idlatra". Camponesa e analfabeta, tinha 19 anos, vestia-se de homem e andava armada. Canonizada em 1920, hoje venerada nos altares como santa Joana DArc.

Na encclica Mirari vos, de 1832, Gregrio XVI condenou o mundo moderno, as liberdades de conscincia e de imprensa, e a separao entre a Igreja e o Estado. Em 1864, o Syllabus de Pio IX reafirmava a sentena, repudiando proposies como "o romano pontfice pode e deve reconciliar-se e chegar a um acordo com o progresso, o liberalismo e a civilizao moderna" (DS 2980).

Continua vigente o decreto do Santo Ofcio de 1949, assinado por Pio XII e confirmado por Joo XXIII em 1959, pelo qual todos os catlicos que votarem ou se filiarem a partidos comunistas, escreverem livros ou artigos filocomunistas esto excludos dos sacramentos. "Ningum pode, ao mesmo tempo, ser bom catlico e socialista verdadeiro" (Pio XI).

Hoje, Joo Paulo II ite que "o socialismo continha sementes de verdade", visita Cuba, utiliza todos os recursos da moderna tecnologia da mdia, mostra-se encantado com a Internet, louva os progressos cientficos e

tcnicos, e percorre o mundo em viagens areas. "Eppur si muove", malgrado o decreto de 1616, do Santo Ofcio, condenando aqueles que diziam que a Terra se move. No s o nosso planeta, mas tambm os costumes e a hermenutica dos fundamentos da doutrina crist.

Jesus no condenou a mulher adltera (Joo 7), nem a samaritana que estava no sexto marido (Joo 4), nem deixou de escolher Pedro para chefiar o grupo apostlico porque ele era casado (Marcos 1). Ao contrrio, cobriu-os de compaixo, revelando-lhes o corao amoroso de Deus.

hora de o magistrio catlico se perguntar se o preservativo pode ser descartado, quando se sabe que at mulheres casadas so infectadas por seus maridos pelo vrus da Aids. O preceito evanglico da vida como bem maior de Deus e o princpio tomista da legtima defesa no se aplicariam a tal circunstncia?


A EDUCAO NO OLHAR

SETEMBRO-OUTUBRO - 2000


Desde que me entendo por gente, a escola ensina anlise de textos. Graas a essas aulas, aprendi o ufanismo de "criana, jamais vers um pas como este", conheci a paixo de Toms Antnio Gonzaga por sua Marlia e deletei-me com os poemas satricos de Leandro Gomes de Barros, como esses versos to atuais, escritos no incio do sculo: "O Brasil a a/ O Estado bota sal,/ O Municpio tempera,/quem come o Federal".

Todo texto tece-se com os fios do contexto em que foi escrito. Quanto mais prximo encontra-se o leitor do contexto em que se produziu o texto, tanto melhor capta o seu pretexto, o significado. Um alemo tem mais condio de apreender, com a sensibilidade, o universo das obras de Goethe, assim como um brasileiro sente o perfume da culinria descrita nos romances de Jorge Amado.

PARA QUE SERVE A LITERATURA?

Pra que serve estudar literatura? Entre outras razes, para ler com mais acuidade o livro da vida, cujos autores e personagens somos ns. Quem l, sabe distinguir entre arte e panfleto, jogo de rimas e poesia, experimentalismo barato e fico de qualidade. Ler um exerccio de escuta e ausculta. Por isso, enquanto no chegam novos avanos tecnolgicos, tenho a impresso de que ler livro na Internet como ver a foto de um entardecer de maio sobre as montanhas de Belo Horizonte. Prefiro contemplar a maravilha ao vivo.

Na adolescncia tive em cine-clubes minha primeira educao do olhar. Aps a exibio do filme, havia debates, onde ficava ntida a diferena entre obra de arte e mero entretenimento. Cultivava-se a sensibilidade, saturada pelas sagas melodramticas dos pasteles de Hollywood e insaciada diante dos grandes mestres do cinema. A chatice do humor televisivo jamais produzir um Chaplin.

Hoje, a imagem ocupa em nossos olhos mais espao que o texto, graas

universalizao da TV. No entanto, a escola parece no se dar conta de que vivemos numa era imagtica. Ou pior, compete com a TV em arrogante indiferena ou desprezo. Dentro da sala de aula ainda predomina a narrativa textual, a palavra escrita, a seqncia demarcada por incio, meio e fim, marcas da historicidade. Fora da escola, recebemos a avalanche de imagens, o vertiginoso coquetel que embaralha ado, presente e futuro, a narrativa implodida pelo recorte inconcluso dos clipes, a cultura definhada em diverso vazia.

A ESCOLA E A TV

Enquanto a escola se esfora, ao menos teoricamente, para formar cidados, a TV forma consumidores. Se, hoje, os alunos so mais indisciplinados que outrora, porque no podem - ainda - mudar o professor de canal... Por que no destronar a TV como rainha do lar e lev-la para a sala de aula? Chegou a hora de nos emanciparmos do tirnico monlogo televisivo. Pode-se discordar de um jornal e escrever seo de cartas dos leitores ou protestar no rdio, ligando para a emissora. Como queixar-se televiso, uma concesso pblica utilizada em funo de interesses e lucros privados? O melhor recurso inverter a relao: ela a a ser objeto e, ns, sujeitos.

Imagino os alunos em sala de aula analisando programas de TV e clipes publicitrios; transformando o jogo de emoes - fotos, sons, movimentos - em objeto da razo, decodificando os contedos dos programas e a carpintaria da produo televisiva. Atores e produtores de TV seriam recebidos em salas de aula; a qualidade dos produtos ofertados conferida; abrir-se-ia o debate sobre a "tica" implcita nos programas de auditrio, onde pobres e nordestinos so ridicularizados, e na publicidade, que reduz a mulher a seus atributos fsicos como isca de consumo.

Ver TV na escola e educar o olhar. E, assim, dar importante o rumo

democratizao dos meios de comunicao, pois instituies de ensino tambm devem ter suas rdios comunitrias e produzir vdeos. S um olhar crtico abre-nos o horizonte da cidadania e da democracia real. Caso contrrio, corremos o risco de ver cada vez mais caras e menos coraes, acreditar que a predominncia da esttica dispensa tica e crer que os sonhos so apenas casulos que no geram borboletas da utopia.


O GRITO DAS AMRICAS


Participei em Nova Iorque, a 12 de outubro, data do "descobrimento" de nosso Continente, do Grito dos Excludos das Amricas. A cidade norte-americana foi escolhida por ser a sede da ONU; foco do noticirio internacional; e palco da Marcha dos Migrantes Indocumentados, realizada dia 14, e da Marcha Mundial das Mulheres, a 17.
Uma comisso de representantes das trs regies continentais, encabeada pelo argentino Adolfo Perez Esquivel, prmio Nobel da Paz, foi recebida na ONU por Gillian Martin Sorensen, assistente do Secretrio Geral e chefe do Departamento de Relaes Internacionais. Do Brasil, presentes Gilmar Mauro, dirigente do MST, e eu. Kofi Annan ausentou-se para viajar s pressas ao Oriente Mdio, devido ao conflito entre israelenses e rabes.

EXPOSIO DE FOTOS

entrada do edifcio da ONU uma exposio de fotos de Sebastio Salgado exibia o rosto de crianas pobres do mundo, o que facilitou o nosso dilogo com Mrs. Sorensen, a quem descrevemos os efeitos nefastos das polticas do FMI e do Banco Mundial em nossos pases. Insistimos para que a ONU no se torne um joguete nas mos da poltica externa dos EUA.
O grande escndalo deste fim de sculo e milnio a carncia em que vivem multides. No mundo, segundo o Bird, 1,2 bilho de pessoas sobrevivem com renda mensal inferior a US$ 30, e outras 2,8 bilhes com menos de US$ 60. Na Amrica Latina, so 224 milhes de pobres e 90 milhes de miserveis. No Brasil, 32 milhes de miserveis e 54,1 milhes de pobres.

Chegamos Lua, mas no justia social. Possumos telescpios capazes de desvendar as intimidades do Universo, mas no enxergamos as necessidades e os direitos do prximo carente. Clonamos seres vivos, mas no salvamos crianas subnutridas da morte. Fotografamos quanticamente as partculas subatmicas, mas ignoramos os anseios mais profundos do corao humano.

FENMENO NOVO

Um fenmeno novo destaca-se no panorama mundial, evidente nas recentes manifestaes em Nova Iorque, Praga, Washington e Seattle: os movimentos de solidariedade aos condenados da Terra. O clamor de justia j no brota apenas da esquerda ideologizada e partidarizada. Ecoa de incontveis movimentos sociais que, articulados por ONGs e Igrejas, emprestam sua fora e sua voz aos que carecem de uma coisa e outra. Tm como ideologia a tica, como partido a solidariedade, como sonho o direito de todos aos bens essenciais vida, como proposta a denncia dos responsveis pelas desigualdades mundiais e a construo de uma civilizao do amor.
O mundo j no se divide entre capitalismo e socialismo, mas sim entre o egosmo neoliberal, centrado na primazia do lucro, e a compaixo dos que lutam por uma economia solidria. Um e outro coexistem nos mesmos pases. O avano da tecnologia de comunicaes favorece o entrelaamento de redes comprometidas com a conquista de um modelo alternativo de sociedade. O perfil da era ps-capitalista desenha-se no esforo de dar um fim excluso social, redistribuir a renda, proteger o meio ambiente, priorizar os bens infinitos, como a tica e a espiritualidade, e no superestimar os bens finitos.
Os novos militantes da solidariedade no querem apenas estruturas econmicas mais justas, como o o ao mercado internacional dos produtos dos pases pobres. Querem mais: os bens do esprito. Ao contrrio da velha esquerda, so pessoas espiritualizadas e entusiasmadas (que etimologicamente significa "repletos do Esprito de Deus"). Como um so Francisco hodierno, sentem-se irmos e irms de Gaia e da frica, dos camponeses da Amrica Latina e dos indgenas da Lapnia, dos curdos e dos iraquianos. Sua lgica no se guia pelo maniquesmo da poltica exterior dos EUA, que bloqueia Cuba, anexa Porto Rico a seu territrio, intervm na Colmbia e faz vista grossa quando tropas de Israel ocupam territrios rabes. Guia-se pelo direito de todos ao bem maior de Deus: a vida.
A queda do socialismo real no Leste europeu coincide com a emergncia do socialismo virtual na Internet. Ela quebra o monoplio das agncias de notcias que fazem eco verso dos senhores da Terra. Como o engodo que, em 1992, os EUA tentaram nos impingir, de que os msseis lanados contra o Iraque s destruram prdios. Hoje se sabe que pelo menos 100 mil civis iraquianos, inclusive mulheres e crianas, perderam a vida naquela guerra que, aos nossos olhos, no ava de um jogo de videogame.

CONTINENTALIZAO DO GRITO

O Grito dos Excludos das Amricas continentaliza o Grito dos Excludos iniciado no Brasil em 1995, por iniciativa da CNBB e dos movimentos sociais. E revela que tambm no corao do imprio, como Nova Iorque, h muitas pessoas e movimentos desiludidos como esse modelo de sociedade que reduz a liberdade ao direito de escolha entre vrias marcas de cerveja ou modelos de carros. Elas querem mais. Querem a liberdade de modificar, no silhuetas de corpos envaidecidos, mas o perfil de uma humanidade que ingressa no Terceiro Milnio arrastando uma horda de famintos, desempregados e oprimidos.
Em janeiro prximo, esses militantes da esperana j tm encontro marcado no Frum Mundial Social, em Porto Alegre.

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