Milton Santos chega aos Cus
495812
Anos atrs,
estvamos, Milton Santos, sua mulher e eu, sentados no mesmo
banco de uma igreja, participando da missa de stimo dia de
parente de membro da Comisso. Percebi que ele participava
ativamente da missa, fazendo em voz alta a leitura dos fiis,
ajoelhando-se, enfim, cumprindo todo o ritual, com a simplicidade
e alegria que lhe eram peculiares. No resisti curiosidade :
Mas, professor, o senhor no ateu ? Respondeu : Acredito que
seja, mas sou tambm um homem bem educado. Estou aqui para
participar com todos e participar pressupe que eu siga os
costumes da casa, no caso, os costumes da Igreja. Quanto a ser
ateu, deixo o trabalho desta definio para Deus. Recentemente,
no enterro de uma amiga com famlia dividida religiosamente,
lembrei-me desta sua postura, quando vi rostos constrangidos, uma
resistncia a participao.
Recentemente
falei com o professor Milton Santos algumas vezes, por telefone, a
propsito de quererem lanar sua candidatura para o prmio Juca
Pato, no qual concorreria com outro intelectual de peso, com
grande chance de perder, no pelo mrito, mas por sabermos como
se do as premiaes, muito mais ao sabor dos relacionamentos
pessoais, dos momentos, das polticas e muitas outras variveis.
Respondeu-me, com muito bom humor, que gostaria de concorrer assim
mesmo, afinal, na vida, sempre perdera, estava acostumado a perder
(a candidatura acabou no se viabilizando por outros motivos
independentes de ns dois, por motivos burocrticos, afinal).
Manifestei o desejo de visit-lo, ele pediu-me um tempo, estava
com dores resultantes do tratamento, me avisaria quando as coisas
melhorassem. Hoje, abro o jornal e leio que ele est livre de
todo e qualquer sofrimento.
Milton
de Almeida Santos, nascido aos 3 de maio de 1926, em Brotas de
Macaba, Bahia. Marido de Marie Hlne, pai de Rafael, amargou,
h poucos anos, a perda de outro filho. Homem amoroso, afvel,
fino, discreto e combativo. Dizia que a maior coragem, nos dias
atuais, pensar. Coragem que sempre teve. Doutor honoris causa
pelo mundo afora, ganhador do prmio Vautrin Lud, em 1994 ( o
prmio Nobel da geografia), professor em diversos pases (em
funo do exlio poltico causado pela ditadura de 1964),
autor de cerca de 40 livros, como membro da Comisso Justia e
Paz no furtou-se a dar aulas aos professores municipais, quando
do Projeto Educao em Direitos Humanos naquela secretaria,
quando Paulo Freire era o secretrio. Em outro evento da
Comisso, um seminrio sobre preconceito, promovido pela
Secretaria da Justia e da Defesa da Cidadania, falou sobre
cidadanias mutiladas, inclusive a dele prprio, pelo fato de ser
negro em um pas de falsa democracia racial. Na mesma fala,
defendeu a necessidade de liberdade que o intelectual deve ter
para pensar. Uma liberdade que
nem sempre garantida ao militante, preso aos slogans, ao
pensamento do grupo em que milita. Defendeu o direito
diversidade e tolerncia. Milton Santos, um humanista.
A
Comisso Justia e Paz de So Paulo fica mais pobre sem a sua
presena, professor, ainda que enriquecida pela sua
participao, na certeza de que o senhor, ao contrrio do que
pensava, no perdeu, antes venceu. Uma vitria feita pela sua
capacidade de superar-se a si mesmo, pela sua capacidade de
superar o sofrimento, o qual jamais pode tir-lo da luta por um
mundo melhor, uma vez que morreu, apesar de doente, em plena
atividade. Obrigado, professor. At breve.
Antonio
Carlos Ribeiro Fester
|