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O Papel do Juiz na efetivao dos Direitos humanos 4r3v4g

FABIO KONDER COMPARATO

Proponho organizar minhas consideraes sobre o tema desta aula em duas 1. teses, vale dizer, proposies a serem demonstradas, tal como se fazia tradicionalmente nos exames de proficincia doutoral, nas Universidades do Velho Mundo. claro que a defesa dessas teses, tendo em vista a matria de que se trata, no uma demonstrao geomtrica, mas sim a apresentao de razes justificativas, anloga aos arrazoados forenses, como convm a um professor de direito e antigo advogado, falando a magistrados.

PRIMEIRA TESE:

O sistema de direitos humanos est situado no pice do ordenamento jurdico, e constitui a ponte de integrao do direito interno ao direito internacional

O primeiro postulado da cincia jurdica o de que a finalidade-funo ou razo de ser do Direito a proteo da dignidade humana, ou seja, da nossa condio de nico ser no mundo, capaz de amar, descobrir a verdade e criar a beleza.

Ao recolherem dos norte-americanos a idia central de que a Constituio um ato de vontade coletiva, mais exatamente o instrumento de refundao, em novas bases, da sociedade poltica, os revolucionrios franceses de 1789 afirmaram, solenemente, que as instituies da sociedade assim constituda tinham por finalidade precpua garantir a livre fruio dos direitos humanos. Toda sociedade, proclamou a Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado daquele ano, na qual a garantia dos direitos no assegurada nem a separao dos poderes determinada, no tem constituio (art. 16). A separao dos poderes. como precisou a cincia jurdica contempornea, nada mais do que uma garantia institucional dos direitos humanos, ou seja, uma forma de organizao interna do Estado, destinada a impedir o abuso de poder, o qual. desde a repblica romana e a democracia grega, sempre foi considerado como a negao dos grandes valores da convivncia humana.

Lembrar essa idia matriz do Estado constitucional de suma importncia no presente momento histrico, quando a civilizao capitalista procura tornar o Direito uma simples tcnica de organizao eficiente da vida econmica, em proveito da classe empresarial. Nesse contexto, a finalidade do Estado reduz-se, tecnicamente. tarefa de organizar, de modo seguro e eficiente, as atividades de mercado, e a Constituio tende a tornar-se um simples regulamento econmico-istrativo, mutvel ao sabor dos interesses e convenincias dos grupos dominantes.

Felizmente, no apenas essa globalizao capitalista que est em curso no mundo contemporneo. Ao lado dela, ou melhor, contra ela trabalha outra fora histrica de unificao da humanidade: a conscincia de que nada h de mais importante no mundo que a pessoa humana, e de que todos os homens, no importando a sua raa, o seu sexo, as suas condies patrimoniais, a sua nacionalidade ou a sua cultura, possuem essa mesma dignidade. Assim, se a sociedade capitalista obedece unicamente ao princpio do individualismo soberano, que a lei do mais forte, a sociedade universal do gnero humano, j anunciada pela filosofia estica h mais de vinte sculos, funda-se em princpio oposto: a comunho) solidria de todos, na construo de um mundo livre, justo e fraterno.

O sistema de direitos humanos est intimamente ligado a essa civilizao comunitria, e tem hoje, por conseguinte. no capitalismo o seu mais temeroso inimigo.

O que importa dizer. antes de mais nada, do sistema de direitos humanos, que ele representa o principal elemento de integrao do direito interno ao direito internacional, representando assim o ncleo pr-constitutivo da mencionada sociedade universal do gnero humano.

Na verdade, o sistema integrado de direitos humanos, nacional e internacional, comporta dois nveis: o do direito positivo e o do direito suprapositivo.

No primeiro, situam-se os chamados direitos fundamentais, isto , os direitos humanos declarados pelos Estados, seja internamente em suas Constituies seja internacionalmente por via de tratados, pactos ou convenes. A integrao ao ordenamento nacional dos direitos fundamentais, declarados em tratados ou convenes internacionais, tende hoje a generalizar-se. A Constituio brasileira de 1988, como sabido, seguiu essa tendncia, com a disposio constante de seu art. 5., 2..

No nvel suprapositivo, encontramos os direitos humanos que ainda no chegaram a positivar-se, mas que vigem, efetivamente, na conscincia jurdica coletiva, nacional ou internacional. Dois exemplos nos ajudam a entender em que consistem esses direitos.

Ao final da 2. Guerra Mundial, quando a opinio pblica comeou a tomar conhecimento das atrocidades praticadas pelos regimes totalitrios, europeus ou asiticos, firmou-se a convico de que a destruio deliberada de um grupo tnico, racial ou religioso, promovida por autoridades governamentais como poltica estatal, constitua um crime, cuja gravidade superava em muito o elenco tipolgico dos delitos definidos nas diferentes leis nacionais, ou das violaes tradicionais dos princpios do direito internacional. Foi com base nessa convico generalizada, e no no fato de que os Estados responsveis por essas atrocidades haviam perdido a guerra, que a deciso das potncias vencedoras de criar o Tribunal de Nuremberg, e julgar como criminosas algumas das autoridades civis e militares do 3 Reich, foi aceita como perfeitamente legtima, ainda que contrria ao tradicional principio nullum crimen sine lege. Em 1946, por duas vezes, a Assemblia Geral das Naes Unidas reafirmou os princpios do direito internacional reconhecidos pelo estatuto do Tribunal de Nuremberg e pelo acrdo desse tribunal. Assim, pois, antes mesmo da aprovao, em 12 de dezembro de 1948, da Conveno para a Preveno e a Represso do Crime de Genocdio, reconhecia-se a vigncia internacional do direito dos povos existncia, e identificava-se no genocdio um crime contra a humanidade, ainda que a ao delituosa no fosse definida tipologicamente, nem as penalidades cominadas.

Um outro exemplo nos mostra como a conscincia tica da dignidade humana acaba por criar uma responsabilidade estatal, ainda que formalmente contrria ao direito positivo.

Uma das prticas mais nefandas do regime militar que se imps entre ns a partir do golpe de 1964 foi a dos desaparecimentos forados (homicdio com ocultao de cadver). Em 1980, a Comisso de Direitos Humanos das

Naes Unidas criou um Grupo de Trabalho para Desaparecimentos Forados, o qual registrou, at 1998, 45.000 casos. Em 18 de dezembro de 1992, a Assemblia Geral das Naes Unidas aprovou uma Declarao sobre a Proteo de Todas as Pessoas contra Desaparecimentos Forados.

Antes de deixarem o poder, porm, os governantes militares fizeram votar a Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, a qual lhes concedeu, por via de uma falsa conexidade, uma anistia por todos os crimes que haviam cometido desde os anos de preparao do golpe. Ademais, nos termos da legislao federal, qualquer pretenso indenizatria contra a Unio, com base nesses crimes, estaria prescrita em cinco anos.

Apesar disso, a presso da opinio pblica, tanto no Pas quanto no estrangeiro, acabou por conseguir fosse votada a Lei n. 9.140, de 4 de dezembro de 1995, que reconheceu como mortas pessoas desaparecidas em razo de participao, ou acusao de participao, em atividades polticas, no perodo de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e atribuiu uma indenizao aos cnjuges, companheiros ou familiares das vtimas. Ou seja, o direito vida, pressuposto de todos os direitos, acabou por se impor entre ns, mesmo contra disposies expressas do direito positivo.

Os direitos humanos suprapositivos representam, pois, um fator de constante progresso ou aperfeioamento do direito interno ou internacional, na direo de uma mais adequada proteo da dignidade humana.

Ora, essa multiplicidade de nveis em matria de direitos humanos acarreta, naturalmente, uma multiplicidade de conflitos normativos, que o sistema jurdico deve resolver. Vejamos quais as regras de soluo, s quais deve recorrer a autoridade incumbida de fazer aplicar o direito em vigor.

Conflitos entre normas constitucionais e normas legais 622a59

preciso distinguir, aqui, entre o conflito normativo real e o de simples aparncia. 5a3426

No primeiro caso, ocorre uma contradio insupervel entre uma norma constitucional de direitos humanos e uma norma legal, no plano do prprio enunciado normativo. A soluo para esse conflito , obviamente, o reconhecimento de que a norma legal no tem validade, pois ela infringe a Constituio.

No segundo caso, no existe essa contradio em tese entre os dois contedos normativos, mas a aplicao da lei, na hiptese do caso concreto, conduz a uma violao incontestvel da norma constitucional.

o que sucede, por exemplo, com a proibio de penas cruis, determinada pelo art. 5., XLVII, alnea e, da Constituio.

A crueldade de uma pena no pode ser aferida unicamente em tese, como se o sentido tico dos modelos jurdicos fosse imutvel historicamente, ou seja, que uma pena considerada no cruel no ado no pudesse ser sentida como desumana ou degradante no presente. E esse, de modo paradigmtico, o caso da pena de morte. Durante milnios, ela foi cominada e aplicada, em todas as sociedades, para uma grande variedade de crimes. Aos poucos, o seu emprego foi sendo limitado aos crimes considerados mais graves, notadamente o homicdio. Hoje, a tendncia universal a da abolio, pura e simples, da pena capita!, considerada cruel e abusiva em si mesma. Prova disto a disposio constante do art. 4., ~3., da Conveno Americana de Direitos Humanos, estatuindo que no se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam abolido, bem como o fato de as Naes Unidas terem aprovado, em 1 989, o Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos, objetivando a abolio dessa pena.

Alm disso, preciso sempre distinguir entre a pena, abstratamente cominada na lei, e a forma de sua execuo na prtica.

E exatamente por isso que a Constituio emprega sabiamente, naquela disposio, um conceito jurdico indeterminado, dando ao Poder Judicirio a capacidade de aplicar a norma com a necessria prudncia. Com efeito, faz sentido itir-se que, quando a lei penal fala em cumprimento da pena privativa de liberdade em regime fechado, os Poderes Pblicos possam, por exemplo, decidir, discricionariamente, que os condenados permanecero vinte e quatro horas por dia em masmorras hermeticamente cerradas e desprovidas de iluminao?

Na verdade, a proibio constitucional de penas cruis dirige-se a todos os rgos do Estado e no apenas ao legislador. Viola tambm a Constituio o Poder Executivo que no providencia prises decentes para o recolhimento de condenados, assim como o Judicirio que, ciente dessa omisso culposa do governo, torna-se cmplice deste, ordenando o cumprimento cego e indiferenado da norma legal.

Ademais, seria ilgico que no sistema de controle difuso da constitucionalidade das leis e atos jurdicos, prprio de nosso ordenamento jurdico, o juiz pudesse declarar a invalidade de uma lei, mas no tivesse competncia para afastar a sua aplicao lide em julgamento. Afinal, como reza o lugar-comum, quem pode o mais, pode o menos.

Alis, a considerao integral do sistema de direitos humanos, para alm do direito interno, conduz claramente soluo aqui recomendada. Toda pessoa privada de sua liberdade, dispe o art. 10 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos de 1 966, ratificado pelo nosso pas, dever ser tratada com humanidade e respeito dignidade inerente pessoa humana. No havendo condies institucionais para que essa exigncia seja cumprida, o juiz dever ordenar que o condenado cumpra a pena privativa de liberdade em regime aberto, at que sejam providenciadas instalaes carcerrias decentes.

Consideremos, agora, a outra possibilidade de conflito normativo em matria de direitos humanos, aquele que ocorre entre o direito internacional e o direito interno.

Conflito entre o direito internacional e o direito interno 4f1r11

Esta questo, ao contrrio daquela referente coliso entre norma constitucional e norma legal no caso concreto, que praticamente ignorada pelos autores, tem sido assaz debatida na doutrina e nos tribunais, sobretudo em matria de priso civil do depositrio infiel.

O art. II do j citado Pacto sobre Direitos Civis e Polticos de 1966 dispe que ningum poder ser preso apenas por no poder cumprir com uma obrigao contratual. Reafirmando essa proibio, a Conveno Americana de Direitos Humanos estatui em seu art. 7., 7.: Ningum deve ser detido por dvidas. Este principio no limita os mandados de autoridade judiciria competente, expedidos em virtude de inadimplemento de obrigao alimentar. Ambos esses tratados internacionais foram ratificados pelo Brasil.

Ora, a Constituio de 1988, na seqncia das que a precederam, excepciona expressamente da proibio de priso civil por dvidas o caso do depositrio infiel (art. 5., LXVII).

E bvio que a regra de integrao, constante do art. 5., 2., exige que essa contradio normativa seja superada. Qual o critrio adequado para solucionar o conflito?

Justamente porque nos encontramos diante de um sistema que integra, num mesmo ordenamento, direito interno e direito internacional, a soluo para esse conflito de normas no pode ser encontrada com fundamento numa pretensa superioridade da Constituio sobre os tratados internacionais, ou vice-versa. O intrprete obrigado a remontar ao princpio jurdico que legitima o sistema como um todo. E esse princpio supremo , evidentemente, o da dignidade transcendente da pessoa humana.

Devemos, portanto. nos perguntar, qual das duas situaes o sacrifcio da liberdade do depositrio, ou o do interesse econmico do depositante

representa a soluo que melhor respeita a dignidade humana. De modo geral, a liberdade um valor mais elevado que o interesse econmico, pois este constitui o meio ou instrumento para a preservao daquele. Ademais, em nosso Pas, a mora do depositrio em restituir o objeto cuja guarda lhe foi confiada ocorre, indefectivelmente, no no depsito mercantil, mas sim nas estipulaes de alienao fiduciria em garantia, como pactos adjetos de contratos de financiamento bancrio. E bvio, em tais condies, que a norma que melhor respeita a dignidade humana a estabelecida nos mencionados tratados internacionais, proibindo a priso civil do depositrio infiel.

Ao encerrar a primeira parte desta exposio, seja-me permitido formular as seguintes recomendaes aos magistrados:

1. Como o sistema de direitos humanos situa-se no pice do ordenamento jurdico, o juiz no deve julgar demanda alguma, antes de verificar a possvel incidncia, no caso, das normas desse sistema, ainda que no haja a esse respeito nenhuma alegao das partes.

2. Tratando-se de um sistema integrado de normas, nacionais e internacionais, deve o juiz, em ateno ao disposto no art. 5., ~ 2., da Constituio Federal, certificar-se sempre da vigncia dos tratados internacionais sobre direitos humanos, de que o Brasil parte.

SEGUNDA TESE:

Para a correta aplicao do sistema de direitos humanos ao caso em julgamento, o juiz deve levar em considerao a diferente natureza das normas que o compem.

A grande distino a ser feita, no conjunto das normas componentes do sistema de direitos humanos, entre princpios e regras.

Para entender o sentido dessa distino categorial, preciso analisar a norma jurdica, decompondo-a em seus dois elementos constitutivos: o contedo e o campo de aplicao. O contedo corresponde ao enunciado normativo, ou seja, proposio de dever-ser, O campo de aplicao formado pelas situaes da vida social, s quais a proposio normativa se refere.

Ora, enquanto nas regras jurdicas o campo de aplicao sempre delimitado, nos princpios ele nunca se define com preciso. O princpio representa, por conseguinte, o prottipo da norma aberta, aplicvel a situaes sociais que no podem nunca ser precisadas de antemo. E essa indeterminao de contornos dos princpios repercute, necessariamente, sobre o seu contedo normativo, que sempre mais abstrato que o das regras jurdicas, cuja funo precpua, alis, consiste em concretiz-los.

Tomemos, por exemplo, o princpio inscrito no caput do art. 5. da Constituio: todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer natureza. A generalidade da norma absoluta, no s quanto aos sujeitos (todos), como tambm no tocante ao atributo, que vem sublinhado pela repetio enftica: ., sem distino de qualquer natureza. bvio, por conseguinte, que nos encontramos, neste exemplo, diante de uma norma ilimitada quanto ao campo de sua aplicao e, por conseguinte, dotada de um teor de mxima abstrao.

Pois bem, em hipteses que tais, o constituinte (ou o legislador), temeroso sem dvida da incerteza na aplicao do princpio pelos diferentes ramos do Estado, inclusive pelo prprio Judicirio, encarregado de dizer o direito em definitivo, costuma concretizar o contedo normativo em relao a algumas situaes mais sensveis controvrsia, ou suscetveis de eluso normativa. Assim, por exemplo, logo no primeiro inciso do art. 5., superando a desigualdade de gnero que vigorou at o sculo XX em todos os pases do mundo, a Constituio precisa que homens e mulheres so iguais em direitos e obrigaes. No inciso XLI, determina ao legislador que se estabelea a punio de qualquer discriminao atentatria dos direitos e liberdades fundamentais. No inciso seguinte, declara que a prtica do racismo constitui crime inafianvel e imprescritvel, sujeito pena de recluso, nos termos da lei. No art. 12, ~ 2., vem enunciada a regra de que a lei no poder estabelecer distino entre brasileiros natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituio. No art. 7., a Constituio estabelece ainda varias regras de igualdade nas relaes de trabalho assalariado.

Ressalte-se, no entanto, que, apesar do seu elevado grau de abstrao, os princpios so normas jurdicas e no simples recomendaes programticas, ou exortaes polticas. Mais ainda: trata-se de normas jurdicas de eficcia plena e imediata, a dispensar a intermediao de regras concretizadoras. Provocado ou no pelas partes, o juiz est sempre autorizado a aplicar diretamente um princpio ao caso trazido ao seu julgamento, por fora do disposto no 1 . do art. 5. da Constituio: As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais tm aplicao imediata. O mandado de injuno, criado pelo art. 5., LXXI da Constituio veio justamente dar ao titular de direitos fundamentais a possibilidade jurdica de impor judicialmente ao sujeito ivo, seja ele um rgo pblico ou uma pessoa privada, o cumprimento da norma constitucional mencionada.

Por a se v quo aberrante da boa teoria jurdica a deciso liminar do Supremo Tribunal Federal, tomada no julgamento do mandado de injuno n.0 107, do Distrito Federal, pouco mais de um ano aps a promulgao da Constituio, de que o exerccio (desse remdio jurdico) est inviabilizado pela falta de norma regulamentadora; e que o provimento jurisdicional demandado deve ser assimilado a uma simples declarao, por aquele tribunal, da inconstitucionalidade por omisso de medida para tomar efetiva norma constitucional. O contra-senso palmar: uma garantia de direitos fundamentais, criada para suprir a omisso legislativa, no se considera em vigor justamente por falta de lei regulamentar...

Vale a pena ainda ressaltar que essa eficcia direta e imediata dos princpios, no obstante o teor necessariamente abstrato de sua formulao normativa, autoriza o juiz a denegar vigncia s regras legais que lhe paream contrariar o sentido de um princpio, mesmo quando tais regras tenham a seu favor um longo tempo de vigncia incontestada. A sensibilidade jurdica pode se alterar com o ar dos anos e fazer aflorar uma incompatibilidade que no ado jamais foi sentida. o que est em vias de suceder, por exemplo, com a norma constante do art. 295 do Cdigo de Processo Penal, que garante o privilgio da priso especial para nada menos do que 11 (onze) categorias de cidados.

Vejamos agora, tal como fizemos no tocante s diferentes fontes normativas dos direitos humanos, quais os conflitos que podem surgir entre dois ou mais princpios, ou entre princpios e regras.

Conflito entre princpios jurdicos fundamentais 231g4o

Aqui, diferentemente do que ocorre em matria de conflito de normas legais, no h revogao de um princpio por outro, mas apenas a preferncia dada pelo juiz a um deles em detrimento do outro ou outros, no caso concreto.

Mas qual o critrio que deve orientar o juiz nessa preferncia? A meu ver, tal como preconizado na hiptese de coliso entre normas do direito interno e do direito internacional, o julgador deve remontar fonte legitimadora do sistema como um todo, que o valor supremo da dignidade humana.

Cuida-se, por exemplo, de saber se determinada lei, que autoriza para fins tributrios a quebra do sigilo de contas bancrias, compatvel ou no com o sistema de direitos fundamentais. H, de um lado, o princpio da liberdade da pessoa humana, dentro do qual se insere o direito preservao da intimidade, e que, pela sua prpria natureza, diz respeito to-s pessoa natural, no podendo ser estendido s pessoas jurdicas. De outro lado, entra necessariamente em considerao, no caso, o princpio da solidariedade, que conduz obrigatria participao proporcional de todos, no nus cvico de contribuir, pecuniariamente, para o custeio das atividades estatais. Em outras palavras, a contraposio se estabelece, numa hiptese como essa, entre os indivduos e a comunidade. Ao juiz cabe ponderar criteriosamente (os alemes falam em Ahwgung. os anglfonos em balancing) todas as disposies da lei em questo, em seus efeitos diretos e indiretos, para ver qual dos dois princpios melhor preserva, no caso, o valor da dignidade humana.

Conflito entre princpios e regras 3u66a

A questo anloga quela, j examinada, do conflito entre normas constitucionais e normas legais. Em ambas as hipteses, preciso distinguir entre o conflito real e o aparente.

Quando a coliso real e inarredvel, como sucede com a regra da priso especial em confronto com o princpio fundamental da igualdade, a regra no tem validade, pois os princpios situam-se, como foi assinalado, no pice da pirmide normativa.

Muitas vezes, porm, os conflitos entre princpios e regras so meramente aparentes: embora determinadas regras, quando abstratamente consideradas, no sejam contrrias s disposies constantes dos princpios, a sua aplicao pode ser afastada, no caso concreto, se ela importar em inquestionvel violao do princpio.

Podemos ilustrar esse tipo de soluo, imaginando o conflito entre, de um lado, o direito que tem o locador, ou o sublocador, de prdio de residncia coletiva de despejar o locatrio em mora do pagamento de alugueres, e, de outro lado, o direito moradia do locatrio insolvente, que no tem condies econmicas de se instalar em outro local de residncia. A Emenda Constitucional n. 26 inseriu o direito moradia no texto do art. 6., onde so enumerados os direitos sociais, como expresses do princpio fundamental da solidariedade. E indisputvel que o sacrifcio do direito do locador recuperao da posse direta do imvel muito menos atentatrio sua dignidade de pessoa, do que seria, para a pessoa do locatrio, o no reconhecimento do direito fundamental de dispor de um teto sob o qual se abrigar.

E incabvel alegar que, em tais situaes, o Judicirio nada tem a fazer, pois os direitos sociais s se concretizam mediante a implementao de polticas pblicas, que entram na competncia exclusiva do Poder Executivo. A alegao descabida, porque o que o titular do direito social violado pede ao juiz, no caso, no obviamente a implementao de um programa de ao governamental, mas sim a satisfao de um interesse prprio da parte, fundado em direito fundamental. E isto o Judicirio no pode se recusar a dar ao jurisdicionado, sob pena de denegao de justia.

Estabelecida assim a distino entre princpios e regras, e discutidas, luz dessa distino, as solues cabveis para as hipteses de conflitos normativos, nem por isso a funo judicial de dar aplicao efetiva aos direitos humanos fica livre de dificuldades. Subsistir, sempre, o problema maior da interpretao de disposies normativas vazadas em termos semanticamente imprecisos.

Eu assinalei, a esse respeito, a dificuldade de se dar sentido prtico proibio constitucional de penas cruis (art. 5., XLVII, e). E um exemplo paradigmtico de conceito indeterminado ou impreciso, segundo a terminologia alem, ou de noo de contedo varivel, como querem os doutrinadores de lngua sa. ????t??????/font>/span>

No final do sculo XVIII, por ocasio das grandes revolues burguesas que inauguraram a histria contempornea, o ideal largamente proclamado era suprimir o arbtrio do ancien regimen, em que a lei nada mais representava do que a vontade do monarca (quod placuit principi legis habet vigorem, como sentenciou Ulpiano, ulico do imperador romano). Para tanto, impunha-se proibir ao magistrado qualquer liberdade exegtica.

A grande justificativa ideolgica, para isso, era a concepo de J. J. Rousseau de que s O POVO ~ soberano, e que s ele, por conseguinte, teria o poder de editar a lei, enquanto expresso daquele princpio supremo, por ele denominado vontade geral. Por via de consequncia, s ao povo soberano competia a interpretao autntica da lei. Afastava-se, com isto, a necessidade ou mesmo a convenincia de se constituir no Estado um corpo de juizes independentes, incumbidos de dizer o direito em ltima instncia.

claro que esse radicalismo da soberania popular no agradava nem um pouco burguesia, em vias de se tornar classe dominante. Era indispensvel que houvesse certeza na aplicao da lei em determinado sentido, quando mais no seja porque a economia capitalista toda fundada em previses e clculos de produtividade e lucratividade. O efeito da aplicao das Leis deveria ser previsvel, o que supunha a univocidade das normas legais, com o emprego de termos tcnicos previamente definidos pela cincia do direito, a modo de conceitos geomtricos.

Nessa concepo, era indispensvel estabelecer uma rgida separao entre os campos do direito e da moral, tarefa de que se desincumbiu a corrente doutrinria conhecida sob a denominao de positivismo jurdico, e que fora inaugurada j na primeira metade do sculo XIX pelo jurista ingls John Austin. Ao juiz, segundo essa teoria, no cabe julgar da justia ou moralidade da soluo legal, pois, no regime de separao de Poderes (essa a justificativa poltica) o magistrado no legislador. Compete-lhe, apenas, obedecer ao ditado legal. Citavam-se, em apoio anacrnico a essa opinio, as consideraes tiradas do De Legibus de Ccero (III, 1, 2):

Do mesmo modo que as leis governam os magistrados (na acepo romana, isto , os governantes dotados de poder potestas, imperium sobre o povo, o que inclua os juizes, mas no se limitava a eles), assim tambm o magistrado governa o povo, podendo dizer-se que o magistrado a voz da lei, e a lei um magistrado sem voz (vere dici potest, magistratum legem esse loquentem, legem autem mutum magistratum).

O que se procurou esconder, no entanto, que o conceito de lex, a empregado, era de natureza filosfica e no poltica: era a reta razo (recta rufia), inconfundvel com a norma jurdica editada pela autoridade estatal.

Tornada classe dominante e substituta poltica do povo, a burguesia ou a controlar estreitamente o exerccio do poder legislativo, e no tinha a menor inteno de permitir que as leis votadas pelos mal denominados representantes do povo pudessem ser julgadas segundo os perigosos critrios de justia, legitimidade, ou mesmo razoabilidade.

Um s elemento destoava nesse novo quadro poltico: era justamente a Constituio, cuja razo de ser, como proclamou a Declarao de 1789, consistia em assegurar os direitos humanos e evitar o abuso de poder.

Mas a pureza terica dessa concepo foi desde logo comprometida na prtica. O paradigma de todas as Constituies, a norte-americana, foi promulgada, como se sabe, sem declarao de direitos fundamentais. O bill of rights, a ela acrescentado em 179 1, veio redigido em estilo cerradamente tcnico, de modo a se evitar, tanto quanto possvel, o emprego de frmulas de contedo moralizante, tal como as constantes da Declarao de Direitos de Virgnia.

Mas essa recusa do uso de termos de sentido vago, ou de claro contedo axiolgico, no foi absoluta. A 5; Emenda Constituio norte-americana, por exemplo, ressuscitou a frmula medieval inglesa do due process of law. Graas a ela, a Suprema Corte dos Estados Unidos pde controlar a compatibilidade das leis editadas pelo Congresso, com o interesse particular das classes dominantes na sociedade norte-americana, de incio os proprietrios rurais, depois os empresrios industriais e os banqueiros. No famoso Dred Scott case, julgado em 1 857, a Suprema Corte declarou inconstitucional o chamado Compromisso de Missouri de 1820, segundo o qual a prtica da escravido ficava proibida no territrio recm-adquirido da Frana, a Louisiana. Em 1905, no processo Lochner v. New York, uma lei deste Estado, que estabelecia um mximo de 60 horas semanais para o trabalho dos padeiros assalariados, foi invalidada por inconstitucionalidade. Na mesma poca, a Suprema Corte julgava no abusivas as clusulas dos chamados yellow-dog contracts, em que os patres impunham aos seus empregados a obrigao de no se filiarem a nenhum sindicato. Em Adkins v. Children s Hospital, julgado em 1923, a lei federal que fixava um salrio mnimo para mulheres e crianas trabalhadoras foi tambm declarada inconstitucional. Em todas essas decises, o fundamento de decidir foi a clusula de due process law, cuja vigncia a 14. Emenda estendeu tambm aos Estados, e que ou a ser interpretada substantivamente, ou seja, fora do processo judicial: ningum poderia ser privado de seus bens ou direitos, sem o devido processo jurdico.

Que dizer, ento? As normas que contenham standards, ou conceitos jurdicos indeterminados, reintroduzem no direito moderno a arbitrariedade decisria, tpica da era pr-constitucional?

De modo algum. O que elas fazem atribuir ao Judicirio a delicada e importante funo de julgar, de acordo com os grandes parmetros de moralidade e justia, estabelecidos pela conscincia tica coletiva, e expressos no sistema vigente de direitos humanos. A arbitrariedade supe o subjetivismo de julgamento, a fixao da vontade prpria do julgador como critrio supremo de deciso. Mas os direitos humanos, sobretudo aqueles j positivados no ordenamento interno ou internacional, denominados direitos fundamentais, constituem parmetros objetivos de apreciao, que se impem ao juiz, ainda quando contrariem a viso pessoal que este tenha do mundo, ou o interesse prprio da classe social a que ele se acha ligado, sociologicamente.

Ademais, as Constituies mais recentes, como a nossa de 1988, j consagram princpios fundamentais de natureza funcional ou finalstica, a indicar os objetivos supremos da organizao poltica. o que se l no art. 3. da Constituio brasileira, onde se indicam como objetivos fundamentais da Repblica: ~I construir uma sociedade livre, justa e solidria; II -~ garantir o desenvolvimento nacional; III erradicar a misria e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao. Trata-se de imposies constitucionais, no de meras recomendaes programticas.

Tomemos, por exemplo, a norma do art. 5., XXIV, que manda seja atribudo ao expropriado uma justa indenizao. Juizes e tribunais, como sabido, recusando-se a dar a esse qualificativo o seu evidente sentido tico, preferindo refugiar-se no critrio falsamente objetivo do valor venal da coisa expropriada. Com isto, acabam por submeter-se estimativa dos peritos avaliadores, como se se tratasse de decidir uma questo de fato e no de direito.

Ora, de um lado, no pode o juiz desatender ao imperativo constitucional de usar do poder de julgar para construir uma sociedade mais livre, justa e solidria, bem como de colaborar para reduzir as desigualdades sociais, como determina o art. 3.. De outro lado, a Constituio impe a todo proprietrio o dever fundamental de cumprir a funo social inerente a esse direito (art. 5., XXIII).

Se assim , para que o juiz fixe nas desapropriaes uma indenizao justa, como manda a Constituio, deve ele considerar, em seu julgamento, antes a pessoa do proprietrio do que a coisa expropriada. Se o proprietrio no deu a esta a sua obrigatria destinao social, no pode ser premiado com uma indenizao correspondente ao preo que obteria, se decidisse vender o bem no mercado.

Se, diferentemente, a coisa expropriada , por hiptese, a pequena casa de residncia de um modesto assalariado, ou de um aposentado de parcos recursos, o juiz no pode deixar de considerar toda a extenso do dano pessoal causado pela expropriao, quando, por exemplo, o expropriado no tem como adquirir, com o montante do valor venal da coisa, outra casa onde morar em condies semelhantes s daquela que lhe foi tirada. Assim sendo, o dever constitucional de uma justa indenizao obriga o juiz, neste caso, a fix-la em valor acima do preo de mercado da coisa expropriada.

Com isto, ao concluir esta segunda parte de minha exposio, permito-me fazer aos juizes as seguintes recomendaes:

1. Os juizes no podem ignorar que todas as normas relativas a direitos humanos, inclusive as normas de princpio, so de aplicao direta e imediata, nos precisos termos do disposto no art. 5., ~ li, da Constituio Federal. Por conseguinte, quando estiver convencido de que um princpio constitucional incide sobre a matria trazida ao seu julgamento, o juiz deve aplic-lo, sem necessidade de pedido da parte.

2. Ao verificar que a aplicao de determinada regra legal ao caso submetido a julgamento acarreta clara violao de um princpio fundamental de direitos humanos, muito embora a regra no seja inconstitucional em tese, o juiz deve afastar a aplicao da lei na hiptese, tendo em vista a supremacia dos princpios sobre as regras, o que acarreta a necessidade lgica de se interpretarem estas em funo da norma de princpio.

3. Na eventual coliso entre dois princpios para a soluo da lide, o juiz deve preferir aquele cuja aplicao ao caso representa maior respeito dignidade humana.

4. No exerccio da funo jurisdicional, os magistrados, como todos os demais agentes pblicos, devem orientar-se pelos objetivos supremos de nossa organizao poltica, expressos no art. 3. da Constituio Federal, os quais expressam os grandes valores de liberdade, igualdade e solidariedade, em funo dos quais constituiu-se, progressivamente, o sistema de direitos humanos.

5. As normas jurdicas que contm standards, ou termos de sentido valorativo, abrem ao magistrado a possibilidade de adequar tecnicamente as suas decises a esses objetivos fundamentais do Estado brasileiro, submetendo as leis ao esprito da Constituio, bem como os interesses prprios de cada classe ou grupo social supremacia do bem comum.

6. O juiz no pode, sob o falso argumento de que no um rgo poltico, recusar-se a apreciar eticamente as lides submetidas ao seu julgamento. A finalidade ltima do ato de julgar consiste em fazer justia, no em aplicar cegamente as normas do direito positivo. Ora, a justia, como advertiu a sabedoria clssica, consiste em dar a cada um o que seu. O que pertence essencialmente a cada indivduo, pela sua prpria natureza, a dignidade de pessoa humana, supremo valor tico. Uma deciso judicial que negue, no caso concreto, a dignidade humana imoral e, portanto, juridicamente insustentvel.


Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

Doutor em Direito da Universidade de Paris.

Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

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