O
Papel do Juiz na efetivao
dos Direitos humanos 4r3v4g
FABIO
KONDER COMPARATO
Proponho
organizar minhas consideraes sobre o tema desta aula em duas 1.
teses, vale dizer, proposies a serem demonstradas, tal como se
fazia tradicionalmente nos exames de proficincia doutoral, nas
Universidades do Velho Mundo. claro que a defesa dessas teses,
tendo em vista a matria de que se trata, no uma demonstrao
geomtrica, mas sim a apresentao de razes justificativas, anloga
aos arrazoados forenses, como convm a um professor de direito e
antigo advogado, falando a magistrados.
PRIMEIRA
TESE:
O
sistema de direitos humanos est situado no pice do ordenamento
jurdico, e constitui a ponte de integrao do direito interno ao
direito internacional
O
primeiro postulado da cincia jurdica o de que a
finalidade-funo ou razo de ser do Direito a proteo da
dignidade humana, ou seja, da nossa condio de nico ser no
mundo, capaz de amar, descobrir a verdade e criar a beleza.
Ao
recolherem dos norte-americanos a idia central de que a Constituio
um ato de vontade coletiva, mais exatamente o instrumento de
refundao, em novas bases, da sociedade poltica, os revolucionrios
franceses de 1789 afirmaram, solenemente, que as instituies da
sociedade assim constituda tinham por finalidade precpua
garantir a livre fruio dos direitos humanos. Toda
sociedade, proclamou a Declarao dos Direitos do Homem e do
Cidado daquele ano, na qual a garantia dos direitos no
assegurada nem a separao dos poderes determinada, no tem
constituio (art. 16). A separao dos poderes. como
precisou a cincia jurdica contempornea, nada mais do que
uma garantia institucional dos direitos humanos, ou seja, uma forma
de organizao interna do Estado, destinada a impedir o abuso de
poder, o qual. desde a repblica romana e a democracia grega,
sempre foi considerado como a negao dos grandes valores da
convivncia humana.
Lembrar
essa idia matriz do Estado constitucional de suma importncia
no presente momento histrico, quando a civilizao capitalista
procura tornar o Direito uma simples tcnica de organizao
eficiente da vida econmica, em proveito da classe empresarial.
Nesse contexto, a finalidade do Estado reduz-se, tecnicamente.
tarefa de organizar, de modo seguro e eficiente, as atividades de
mercado, e a Constituio tende a tornar-se um simples regulamento
econmico-istrativo, mutvel ao sabor dos interesses e
convenincias dos grupos dominantes.
Felizmente,
no apenas essa globalizao capitalista que est em curso no
mundo contemporneo. Ao lado dela, ou melhor, contra ela trabalha
outra fora histrica de unificao da humanidade: a conscincia
de que nada h de mais importante no mundo que a pessoa humana, e
de que todos os homens, no importando a sua raa, o seu sexo, as
suas condies patrimoniais, a sua nacionalidade ou a sua cultura,
possuem essa mesma dignidade. Assim, se a sociedade capitalista
obedece unicamente ao princpio do individualismo soberano, que
a lei do mais forte, a sociedade universal do gnero humano,
j anunciada pela filosofia estica h mais de vinte sculos,
funda-se em princpio oposto: a comunho) solidria de todos, na
construo de um mundo livre, justo e fraterno.
O
sistema de direitos humanos est intimamente ligado a essa civilizao
comunitria, e tem hoje, por conseguinte. no capitalismo o seu mais
temeroso inimigo.
O
que importa dizer. antes de mais nada, do sistema de direitos
humanos, que ele representa o principal elemento de integrao
do direito interno ao direito internacional, representando assim o ncleo
pr-constitutivo da mencionada sociedade universal do gnero
humano.
Na
verdade, o sistema integrado de direitos humanos, nacional e
internacional, comporta dois nveis: o do direito positivo e o do
direito suprapositivo.
No
primeiro, situam-se os chamados direitos fundamentais, isto , os
direitos humanos declarados pelos Estados, seja internamente em suas
Constituies seja internacionalmente por via de tratados, pactos
ou convenes. A integrao ao ordenamento nacional dos
direitos fundamentais, declarados em tratados ou convenes
internacionais, tende hoje a generalizar-se. A Constituio
brasileira de 1988, como sabido, seguiu essa tendncia, com a
disposio constante de seu art. 5., 2..
No
nvel suprapositivo, encontramos os direitos humanos que ainda no
chegaram a positivar-se, mas que vigem, efetivamente, na conscincia
jurdica coletiva, nacional ou internacional. Dois exemplos nos
ajudam a entender em que consistem esses direitos.
Ao
final da 2. Guerra Mundial, quando a opinio pblica comeou a
tomar conhecimento das atrocidades praticadas pelos regimes totalitrios,
europeus ou asiticos, firmou-se a convico de que a destruio
deliberada de um grupo tnico, racial ou religioso, promovida por
autoridades governamentais como poltica estatal, constitua um
crime, cuja gravidade superava em muito o elenco tipolgico dos
delitos definidos nas diferentes leis nacionais, ou das violaes
tradicionais dos princpios do direito internacional. Foi com base
nessa convico generalizada, e no no fato de que os Estados
responsveis por essas atrocidades haviam perdido a guerra, que a
deciso das potncias vencedoras de criar o Tribunal de Nuremberg,
e julgar como criminosas algumas das autoridades civis e militares
do 3 Reich, foi aceita como perfeitamente legtima, ainda que
contrria ao tradicional principio nullum crimen sine lege. Em
1946, por duas vezes, a Assemblia Geral das Naes Unidas
reafirmou os princpios do direito internacional reconhecidos
pelo estatuto do Tribunal de Nuremberg e pelo acrdo desse
tribunal. Assim, pois, antes mesmo da aprovao, em 12 de
dezembro de 1948, da Conveno para a Preveno e a Represso
do Crime de Genocdio, reconhecia-se a vigncia internacional do
direito dos povos existncia, e identificava-se no genocdio um
crime contra a humanidade, ainda que a ao delituosa no fosse
definida tipologicamente, nem as penalidades cominadas.
Um
outro exemplo nos mostra como a conscincia tica da dignidade
humana acaba por criar uma responsabilidade estatal, ainda que
formalmente contrria ao direito positivo.
Uma
das prticas mais nefandas do regime militar que se imps entre ns
a partir do golpe de 1964 foi a dos desaparecimentos forados
(homicdio com ocultao de cadver). Em 1980, a Comisso de
Direitos Humanos das
Naes
Unidas criou um Grupo de Trabalho para Desaparecimentos Forados, o
qual registrou, at 1998, 45.000 casos. Em 18 de dezembro de 1992,
a Assemblia Geral das Naes Unidas aprovou uma Declarao
sobre a Proteo de Todas as Pessoas contra Desaparecimentos Forados.
Antes
de deixarem o poder, porm, os governantes militares fizeram votar
a Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, a qual lhes concedeu, por
via de uma falsa conexidade, uma anistia por todos os crimes que
haviam cometido desde os anos de preparao do golpe. Ademais, nos
termos da legislao federal, qualquer pretenso indenizatria
contra a Unio, com base nesses crimes, estaria prescrita em cinco
anos.
Apesar
disso, a presso da opinio pblica, tanto no Pas quanto no
estrangeiro, acabou por conseguir fosse votada a Lei n. 9.140, de
4 de dezembro de 1995, que reconheceu como mortas pessoas
desaparecidas em razo de participao, ou acusao de
participao, em atividades polticas, no perodo de 2 de
setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e atribuiu uma indenizao
aos cnjuges, companheiros ou familiares das vtimas. Ou seja, o
direito vida, pressuposto de todos os direitos, acabou por se
impor entre ns, mesmo contra disposies expressas do direito
positivo.
Os
direitos humanos suprapositivos representam, pois, um fator de
constante progresso ou aperfeioamento do direito interno ou
internacional, na direo de uma mais adequada proteo da
dignidade humana.
Ora,
essa multiplicidade de nveis em matria de direitos humanos
acarreta, naturalmente, uma multiplicidade de conflitos normativos,
que o sistema jurdico deve resolver. Vejamos quais as regras de
soluo, s quais deve recorrer a autoridade incumbida de fazer
aplicar o direito em vigor.
Conflitos entre normas
constitucionais e normas legais 622a59
preciso distinguir, aqui, entre o conflito normativo real e o de
simples aparncia.
5a3426
No
primeiro caso, ocorre uma contradio insupervel entre uma norma
constitucional de direitos humanos e uma norma legal, no plano do prprio
enunciado normativo. A soluo para esse conflito , obviamente,
o reconhecimento de que a norma legal no tem validade, pois ela
infringe a Constituio.
No
segundo caso, no existe essa contradio em tese entre os dois
contedos normativos, mas a aplicao da lei, na hiptese do
caso concreto, conduz a uma violao incontestvel da norma
constitucional.
o que sucede, por exemplo, com a proibio de penas cruis,
determinada pelo art. 5., XLVII, alnea e, da Constituio.
A
crueldade de uma pena no pode ser aferida unicamente em tese, como
se o sentido tico dos modelos jurdicos fosse imutvel
historicamente, ou seja, que uma pena considerada no cruel no
ado no pudesse ser sentida como desumana ou degradante no
presente. E esse, de modo paradigmtico, o caso da pena de morte.
Durante milnios, ela foi cominada e aplicada, em todas as
sociedades, para uma grande variedade de crimes. Aos poucos, o seu
emprego foi sendo limitado aos crimes considerados mais graves,
notadamente o homicdio. Hoje, a tendncia universal a da abolio,
pura e simples, da pena capita!, considerada cruel e abusiva em si
mesma. Prova disto a disposio constante do art. 4., ~3.,
da Conveno Americana de Direitos Humanos, estatuindo que no
se pode restabelecer a pena de morte nos Estados que a hajam
abolido, bem como o fato de as Naes Unidas terem aprovado, em
1 989, o Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Polticos, objetivando a abolio dessa pena.
Alm
disso, preciso sempre distinguir entre a pena, abstratamente
cominada na lei, e a forma de sua execuo na prtica.
E
exatamente por isso que a Constituio emprega sabiamente, naquela
disposio, um conceito jurdico indeterminado, dando ao Poder
Judicirio a capacidade de aplicar a norma com a necessria prudncia.
Com efeito, faz sentido itir-se que, quando a lei penal fala em
cumprimento da pena privativa de liberdade em regime fechado, os
Poderes Pblicos possam, por exemplo, decidir, discricionariamente,
que os condenados permanecero vinte e quatro horas por dia em
masmorras hermeticamente cerradas e desprovidas de iluminao?
Na
verdade, a proibio constitucional de penas cruis dirige-se a
todos os rgos do Estado e no apenas ao legislador. Viola tambm
a Constituio o Poder Executivo que no providencia prises
decentes para o recolhimento de condenados, assim como o Judicirio
que, ciente dessa omisso culposa do governo, torna-se cmplice
deste, ordenando o cumprimento cego e indiferenado da norma legal.
Ademais,
seria ilgico que no sistema de controle difuso da constitucionalidade
das leis e atos jurdicos, prprio de nosso ordenamento jurdico,
o juiz pudesse declarar a invalidade de uma lei, mas no tivesse
competncia para afastar a sua aplicao lide em julgamento.
Afinal, como reza o lugar-comum, quem pode o mais, pode o menos.
Alis,
a considerao integral do sistema de direitos humanos, para alm
do direito interno, conduz claramente soluo aqui recomendada.
Toda pessoa privada de sua liberdade, dispe o art. 10 do
Pacto Internacional de Direitos Civis e Polticos de 1 966,
ratificado pelo nosso pas, dever ser tratada com humanidade e
respeito dignidade inerente pessoa humana. No havendo
condies institucionais para que essa exigncia seja cumprida, o
juiz dever ordenar que o condenado cumpra a pena privativa de
liberdade em regime aberto, at que sejam providenciadas instalaes
carcerrias decentes.
Consideremos,
agora, a outra possibilidade de conflito normativo em matria de
direitos humanos, aquele que ocorre entre o direito internacional e
o direito interno.
Conflito entre o direito
internacional e o direito interno 4f1r11
Esta
questo, ao contrrio daquela referente coliso entre norma
constitucional e norma legal no caso concreto, que praticamente
ignorada pelos autores, tem sido assaz debatida na doutrina e nos
tribunais, sobretudo em matria de priso civil do depositrio
infiel.
O
art. II do j citado Pacto sobre Direitos Civis e Polticos de
1966 dispe que ningum poder ser preso apenas por no poder
cumprir com uma obrigao contratual. Reafirmando essa proibio,
a Conveno Americana de Direitos Humanos estatui em seu art.
7., 7.: Ningum deve ser detido por dvidas. Este principio
no limita os mandados de autoridade judiciria competente,
expedidos em virtude de inadimplemento de obrigao alimentar.
Ambos esses tratados internacionais foram ratificados pelo Brasil.
Ora,
a Constituio de 1988, na seqncia das que a precederam,
excepciona expressamente da proibio de priso civil por dvidas
o caso do depositrio infiel (art. 5., LXVII).
E
bvio que a regra de integrao, constante do art. 5., 2.,
exige que essa contradio normativa seja superada. Qual o critrio
adequado para solucionar o conflito?
Justamente
porque nos encontramos diante de um sistema que integra, num mesmo
ordenamento, direito interno e direito internacional, a soluo
para esse conflito de normas no pode ser encontrada com fundamento
numa pretensa superioridade da Constituio sobre os tratados
internacionais, ou vice-versa. O intrprete obrigado a remontar
ao princpio jurdico que legitima o sistema como um todo. E esse
princpio supremo , evidentemente, o da dignidade transcendente
da pessoa humana.
Devemos,
portanto. nos perguntar, qual das duas situaes o sacrifcio
da liberdade do depositrio, ou o do interesse econmico do
depositante
representa
a soluo que melhor respeita a dignidade humana. De modo geral, a
liberdade um valor mais elevado que o interesse econmico, pois
este constitui o meio ou instrumento para a preservao daquele.
Ademais, em nosso Pas, a mora do depositrio em restituir o
objeto cuja guarda lhe foi confiada ocorre, indefectivelmente, no
no depsito mercantil, mas sim nas estipulaes de alienao
fiduciria em garantia, como pactos adjetos de contratos de
financiamento bancrio. E bvio, em tais condies, que a norma
que melhor respeita a dignidade humana a estabelecida nos
mencionados tratados internacionais, proibindo a priso civil do
depositrio infiel.
Ao
encerrar a primeira parte desta exposio, seja-me permitido
formular as seguintes recomendaes aos magistrados:
1.
Como o sistema de direitos humanos situa-se no pice do
ordenamento jurdico, o juiz no deve julgar demanda alguma,
antes de verificar a possvel incidncia, no caso, das normas
desse sistema, ainda que no haja a esse respeito nenhuma alegao
das partes.
2.
Tratando-se de um sistema integrado de normas, nacionais e
internacionais, deve o juiz, em ateno ao disposto no art. 5.,
~ 2., da Constituio Federal, certificar-se sempre da vigncia
dos tratados internacionais sobre direitos humanos, de que o Brasil
parte.
SEGUNDA
TESE:
Para
a correta aplicao do sistema de direitos humanos ao caso em
julgamento, o juiz deve levar em considerao a diferente natureza
das normas que o compem.
A
grande distino a ser feita, no conjunto das normas componentes
do sistema de direitos humanos, entre princpios e regras.
Para
entender o sentido dessa distino categorial, preciso analisar
a norma jurdica, decompondo-a em seus dois elementos
constitutivos: o contedo e o campo de aplicao. O contedo
corresponde ao enunciado normativo, ou seja, proposio de
dever-ser, O campo de aplicao formado pelas situaes da
vida social, s quais a proposio normativa se refere.
Ora,
enquanto nas regras jurdicas o campo de aplicao sempre
delimitado, nos princpios ele nunca se define com preciso. O
princpio representa, por conseguinte, o prottipo da norma
aberta, aplicvel a situaes sociais que no podem nunca ser
precisadas de antemo. E essa indeterminao de contornos dos
princpios repercute, necessariamente, sobre o seu contedo
normativo, que sempre mais abstrato que o das regras jurdicas,
cuja funo precpua, alis, consiste em concretiz-los.
Tomemos,
por exemplo, o princpio inscrito no caput do art. 5. da Constituio:
todos so iguais perante a lei, sem distino de qualquer
natureza. A generalidade da norma absoluta, no s quanto
aos sujeitos (todos), como tambm no tocante ao atributo, que
vem sublinhado pela repetio enftica: ., sem distino de
qualquer natureza. bvio, por conseguinte, que nos
encontramos, neste exemplo, diante de uma norma ilimitada quanto ao
campo de sua aplicao e, por conseguinte, dotada de um teor de mxima
abstrao.
Pois
bem, em hipteses que tais, o constituinte (ou o legislador),
temeroso sem dvida da incerteza na aplicao do princpio pelos
diferentes ramos do Estado, inclusive pelo prprio Judicirio,
encarregado de dizer o direito em definitivo, costuma concretizar o
contedo normativo em relao a algumas situaes mais sensveis
controvrsia, ou suscetveis de eluso normativa. Assim, por
exemplo, logo no primeiro inciso do art. 5., superando a
desigualdade de gnero que vigorou at o sculo XX em todos os pases
do mundo, a Constituio precisa que homens e mulheres so
iguais em direitos e obrigaes. No inciso XLI, determina ao
legislador que se estabelea a punio de qualquer discriminao
atentatria dos direitos e liberdades fundamentais. No inciso
seguinte, declara que a prtica do racismo constitui crime
inafianvel e imprescritvel, sujeito pena de recluso, nos
termos da lei. No art. 12, ~ 2., vem enunciada a regra de que
a lei no poder estabelecer distino entre brasileiros
natos e naturalizados, salvo nos casos previstos nesta Constituio.
No art. 7., a Constituio estabelece ainda varias regras de
igualdade nas relaes de trabalho assalariado.
Ressalte-se,
no entanto, que, apesar do seu elevado grau de abstrao, os princpios
so normas jurdicas e no simples recomendaes programticas,
ou exortaes polticas. Mais ainda: trata-se de normas jurdicas
de eficcia plena e imediata, a dispensar a intermediao de
regras concretizadoras. Provocado ou no pelas partes, o juiz est
sempre autorizado a aplicar diretamente um princpio ao caso
trazido ao seu julgamento, por fora do disposto no 1 . do art.
5. da Constituio: As normas definidoras de direitos e
garantias fundamentais tm aplicao imediata. O mandado de
injuno, criado pelo art. 5., LXXI da Constituio veio
justamente dar ao titular de direitos fundamentais a possibilidade
jurdica de impor judicialmente ao sujeito ivo, seja ele um rgo
pblico ou uma pessoa privada, o cumprimento da norma
constitucional mencionada.
Por
a se v quo aberrante da boa teoria jurdica a deciso
liminar do Supremo Tribunal Federal, tomada no julgamento do mandado
de injuno n.0 107, do Distrito Federal, pouco mais de
um ano aps a promulgao da Constituio, de que o exerccio
(desse remdio jurdico) est inviabilizado pela falta de norma
regulamentadora; e que o provimento jurisdicional demandado deve
ser assimilado a uma simples declarao, por aquele tribunal, da
inconstitucionalidade por omisso de medida para tomar efetiva
norma constitucional. O contra-senso palmar: uma garantia de
direitos fundamentais, criada para suprir a omisso legislativa,
no se considera em vigor justamente por falta de lei
regulamentar...
Vale
a pena ainda ressaltar que essa eficcia direta e imediata dos
princpios, no obstante o teor necessariamente abstrato de sua
formulao normativa, autoriza o juiz a denegar vigncia s
regras legais que lhe paream contrariar o sentido de um princpio,
mesmo quando tais regras tenham a seu favor um longo tempo de vigncia
incontestada. A sensibilidade jurdica pode se alterar com o ar
dos anos e fazer aflorar uma incompatibilidade que no ado jamais
foi sentida. o que est em vias de suceder, por exemplo, com a
norma constante do art. 295 do Cdigo de Processo Penal, que
garante o privilgio da priso especial para nada menos do que 11
(onze) categorias de cidados.
Vejamos
agora, tal como fizemos no tocante s diferentes fontes normativas
dos direitos humanos, quais os conflitos que podem surgir entre dois
ou mais princpios, ou entre princpios e regras.
Conflito entre princpios jurdicos
fundamentais 231g4o
Aqui,
diferentemente do que ocorre em matria de conflito de normas
legais, no h revogao de um princpio por outro, mas apenas
a preferncia dada pelo juiz a um deles em detrimento do outro ou
outros, no caso concreto.
Mas
qual o critrio que deve orientar o juiz nessa preferncia? A meu
ver, tal como preconizado na hiptese de coliso entre normas do
direito interno e do direito internacional, o julgador deve remontar
fonte legitimadora do sistema como um todo, que o valor
supremo da dignidade humana.
Cuida-se,
por exemplo, de saber se determinada lei, que autoriza para fins
tributrios a quebra do sigilo de contas bancrias, compatvel
ou no com o sistema de direitos fundamentais. H, de um lado, o
princpio da liberdade da pessoa humana, dentro do qual se insere o
direito preservao da intimidade, e que, pela sua prpria
natureza, diz respeito to-s pessoa natural, no podendo ser
estendido s pessoas jurdicas. De outro lado, entra
necessariamente em considerao, no caso, o princpio da
solidariedade, que conduz obrigatria participao
proporcional de todos, no nus cvico de contribuir,
pecuniariamente, para o custeio das atividades estatais. Em outras
palavras, a contraposio se estabelece, numa hiptese como essa,
entre os indivduos e a comunidade. Ao juiz cabe ponderar
criteriosamente (os alemes falam em Ahwgung. os anglfonos em
balancing) todas as disposies da lei em questo, em seus
efeitos diretos e indiretos, para ver qual dos dois princpios
melhor preserva, no caso, o valor da dignidade humana.
Conflito entre princpios e regras 3u66a
A
questo anloga quela, j examinada, do conflito entre
normas constitucionais e normas legais. Em ambas as hipteses,
preciso distinguir entre o conflito real e o aparente.
Quando
a coliso real e inarredvel, como sucede com a regra da priso
especial em confronto com o princpio fundamental da igualdade, a
regra no tem validade, pois os princpios situam-se, como foi
assinalado, no pice da pirmide normativa.
Muitas
vezes, porm, os conflitos entre princpios e regras so meramente
aparentes: embora determinadas regras, quando abstratamente consideradas,
no sejam contrrias s disposies constantes dos princpios,
a sua aplicao pode ser afastada, no caso concreto, se ela
importar em inquestionvel violao do princpio.
Podemos
ilustrar esse tipo de soluo, imaginando o conflito entre, de um
lado, o direito que tem o locador, ou o sublocador, de prdio de
residncia coletiva de despejar o locatrio em mora do pagamento
de alugueres, e, de outro lado, o direito moradia do locatrio
insolvente, que no tem condies econmicas de se instalar em
outro local de residncia. A Emenda Constitucional n. 26 inseriu
o direito moradia no texto do art. 6., onde so enumerados os
direitos sociais, como expresses do princpio fundamental da
solidariedade. E indisputvel que o sacrifcio do direito do
locador recuperao da posse direta do imvel muito menos
atentatrio sua dignidade de pessoa, do que seria, para a pessoa
do locatrio, o no reconhecimento do direito fundamental de
dispor de um teto sob o qual se abrigar.
E
incabvel alegar que, em tais situaes, o Judicirio nada tem a
fazer, pois os direitos sociais s se concretizam mediante a
implementao de polticas pblicas, que entram na competncia
exclusiva do Poder Executivo. A alegao descabida, porque o
que o titular do direito social violado pede ao juiz, no caso, no
obviamente a implementao de um programa de ao
governamental, mas sim a satisfao de um interesse prprio da
parte, fundado em direito fundamental. E isto o Judicirio no
pode se recusar a dar ao jurisdicionado, sob pena de denegao de
justia.
Estabelecida
assim a distino entre princpios e regras, e discutidas, luz
dessa distino, as solues cabveis para as hipteses de
conflitos normativos, nem por isso a funo judicial de dar aplicao
efetiva aos direitos humanos fica livre de dificuldades. Subsistir,
sempre, o problema maior da interpretao de disposies
normativas vazadas em termos semanticamente imprecisos.
Eu
assinalei, a esse respeito, a dificuldade de se dar sentido prtico
proibio constitucional de penas cruis (art. 5., XLVII, e).
E um exemplo paradigmtico de conceito indeterminado ou impreciso,
segundo a terminologia alem, ou de noo de contedo varivel,
como querem os doutrinadores de lngua sa.
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No
final do sculo XVIII, por ocasio das grandes revolues
burguesas que inauguraram a histria contempornea, o ideal
largamente proclamado era suprimir o arbtrio do ancien regimen, em
que a lei nada mais representava do que a vontade do monarca (quod
placuit principi legis habet vigorem, como sentenciou Ulpiano, ulico
do imperador romano). Para tanto, impunha-se proibir ao magistrado
qualquer liberdade exegtica.
A
grande justificativa ideolgica, para isso, era a concepo de J.
J. Rousseau de que s O POVO ~ soberano, e que s ele, por
conseguinte, teria o poder de editar a lei, enquanto expresso
daquele princpio supremo, por ele denominado vontade geral. Por
via de consequncia, s ao povo soberano competia a interpretao
autntica da lei. Afastava-se, com isto, a necessidade ou mesmo a
convenincia de se constituir no Estado um corpo de juizes
independentes, incumbidos de dizer o direito em ltima instncia.
claro que esse radicalismo da soberania popular no agradava nem um
pouco burguesia, em vias de se tornar classe dominante. Era
indispensvel que houvesse certeza na aplicao da lei em
determinado sentido, quando mais no seja porque a economia
capitalista toda fundada em previses e clculos de
produtividade e lucratividade. O efeito da aplicao das Leis
deveria ser previsvel, o que supunha a univocidade das normas
legais, com o emprego de termos tcnicos previamente definidos pela
cincia do direito, a modo de conceitos geomtricos.
Nessa
concepo, era indispensvel estabelecer uma rgida separao
entre os campos do direito e da moral, tarefa de que se desincumbiu
a corrente doutrinria conhecida sob a denominao de positivismo
jurdico, e que fora inaugurada j na primeira metade do sculo
XIX pelo jurista ingls John Austin. Ao juiz, segundo essa teoria,
no cabe julgar da justia ou moralidade da soluo legal, pois,
no regime de separao de Poderes (essa a justificativa poltica)
o magistrado no legislador. Compete-lhe, apenas, obedecer ao
ditado legal. Citavam-se, em apoio anacrnico a essa opinio, as
consideraes tiradas do De Legibus de Ccero (III, 1, 2):
Do
mesmo modo que as leis governam os magistrados (na acepo romana,
isto , os governantes dotados de poder potestas, imperium
sobre o povo, o que inclua os juizes, mas no se limitava a
eles), assim tambm o magistrado governa o povo, podendo dizer-se
que o magistrado a voz da lei, e a lei um magistrado sem voz (vere
dici potest, magistratum legem esse loquentem, legem autem mutum
magistratum).
O
que se procurou esconder, no entanto, que o conceito de lex, a
empregado, era de natureza filosfica e no poltica: era a reta
razo (recta rufia), inconfundvel com a norma jurdica editada
pela autoridade estatal.
Tornada
classe dominante e substituta poltica do povo, a burguesia ou
a controlar estreitamente o exerccio do poder legislativo, e no
tinha a menor inteno de permitir que as leis votadas pelos mal
denominados representantes do povo pudessem ser julgadas segundo os
perigosos critrios de justia, legitimidade, ou mesmo
razoabilidade.
Um
s elemento destoava nesse novo quadro poltico: era justamente a
Constituio, cuja razo de ser, como proclamou a Declarao de
1789, consistia em assegurar os direitos humanos e evitar o abuso de
poder.
Mas
a pureza terica dessa concepo foi desde logo comprometida na
prtica. O paradigma de todas as Constituies, a
norte-americana, foi promulgada, como se sabe, sem declarao de
direitos fundamentais. O bill of
rights, a ela acrescentado em 179 1, veio redigido em estilo
cerradamente tcnico, de modo a se evitar, tanto quanto possvel,
o emprego de frmulas de contedo moralizante, tal como as
constantes da Declarao de Direitos de Virgnia.
Mas
essa recusa do uso de termos de sentido vago, ou de claro contedo
axiolgico, no foi absoluta. A 5; Emenda Constituio
norte-americana, por exemplo, ressuscitou a frmula medieval
inglesa do due process of law. Graas a ela, a Suprema Corte dos
Estados Unidos pde controlar a compatibilidade das leis editadas
pelo Congresso, com o interesse particular das classes dominantes na
sociedade norte-americana, de incio os proprietrios rurais,
depois os empresrios industriais e os banqueiros. No famoso Dred
Scott case, julgado em 1 857, a Suprema Corte declarou
inconstitucional o chamado Compromisso de Missouri de 1820, segundo
o qual a prtica da escravido ficava proibida no territrio recm-adquirido
da Frana, a Louisiana. Em 1905, no processo Lochner v. New York,
uma lei deste Estado, que estabelecia um mximo de 60 horas
semanais para o trabalho dos padeiros assalariados, foi invalidada
por inconstitucionalidade. Na mesma poca, a Suprema Corte julgava
no abusivas as clusulas dos chamados yellow-dog contracts, em
que os patres impunham aos seus empregados a obrigao de no
se filiarem a nenhum sindicato. Em Adkins v. Children s Hospital,
julgado em 1923, a lei federal que fixava um salrio mnimo para
mulheres e crianas trabalhadoras foi tambm declarada
inconstitucional. Em todas essas decises, o fundamento de decidir
foi a clusula de due process law, cuja vigncia a 14. Emenda
estendeu tambm aos Estados, e que ou a ser interpretada
substantivamente, ou seja, fora do processo judicial: ningum
poderia ser privado de seus bens ou direitos, sem o devido processo
jurdico.
Que
dizer, ento? As normas que contenham standards, ou conceitos jurdicos
indeterminados, reintroduzem no direito moderno a arbitrariedade
decisria, tpica da era pr-constitucional?
De
modo algum. O que elas fazem atribuir ao Judicirio a delicada e
importante funo de julgar, de acordo com os grandes parmetros
de moralidade e justia, estabelecidos pela conscincia tica
coletiva, e expressos no sistema vigente de direitos humanos. A
arbitrariedade supe o subjetivismo de julgamento, a fixao da
vontade prpria do julgador como critrio supremo de deciso. Mas
os direitos humanos, sobretudo aqueles j positivados no
ordenamento interno ou internacional, denominados direitos
fundamentais, constituem parmetros objetivos de apreciao, que
se impem ao juiz, ainda quando contrariem a viso pessoal que
este tenha do mundo, ou o interesse prprio da classe social a que
ele se acha ligado, sociologicamente.
Ademais,
as Constituies mais recentes, como a nossa de 1988, j
consagram princpios fundamentais de natureza funcional ou finalstica,
a indicar os objetivos supremos da organizao poltica. o que
se l no art. 3. da Constituio brasileira, onde se indicam como
objetivos fundamentais da Repblica: ~I construir uma sociedade
livre, justa e solidria; II -~ garantir o desenvolvimento
nacional; III erradicar a misria e reduzir as desigualdades
sociais e regionais; IV promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminao. Trata-se de imposies
constitucionais, no de meras recomendaes programticas.
Tomemos,
por exemplo, a norma do art. 5., XXIV, que manda seja atribudo ao
expropriado uma justa indenizao. Juizes e tribunais, como
sabido, recusando-se a dar a esse qualificativo o seu evidente
sentido tico, preferindo refugiar-se no critrio falsamente
objetivo do valor venal da coisa expropriada. Com isto, acabam por
submeter-se estimativa dos peritos avaliadores, como se se
tratasse de decidir uma questo de fato e no de direito.
Ora,
de um lado, no pode o juiz desatender ao imperativo constitucional
de usar do poder de julgar para construir uma sociedade mais livre,
justa e solidria, bem como de colaborar para reduzir as
desigualdades sociais, como determina o art. 3.. De outro lado, a
Constituio impe a todo proprietrio o dever fundamental de
cumprir a funo social inerente a esse direito (art. 5.,
XXIII).
Se
assim , para que o juiz fixe nas desapropriaes uma indenizao
justa, como manda a Constituio, deve ele considerar, em seu
julgamento, antes a pessoa do proprietrio do que a coisa
expropriada. Se o proprietrio no deu a esta a sua obrigatria
destinao social, no pode ser premiado com uma indenizao
correspondente ao preo que obteria, se decidisse vender o bem no
mercado.
Se,
diferentemente, a coisa expropriada , por hiptese, a pequena
casa de residncia de um modesto assalariado, ou de um aposentado
de parcos recursos, o juiz no pode deixar de considerar toda a
extenso do dano pessoal causado pela expropriao, quando, por
exemplo, o expropriado no tem como adquirir, com o montante do
valor venal da coisa, outra casa onde morar em condies
semelhantes s daquela que lhe foi tirada. Assim sendo, o dever
constitucional de uma justa indenizao obriga o juiz, neste caso,
a fix-la em valor acima do preo de mercado da coisa expropriada.
Com
isto, ao concluir esta segunda parte de minha exposio,
permito-me fazer aos juizes as seguintes recomendaes:
1.
Os juizes no podem ignorar que todas as normas relativas a
direitos humanos, inclusive as normas de princpio, so de aplicao
direta e imediata, nos precisos termos do disposto no art. 5., ~ li,
da Constituio Federal. Por conseguinte, quando estiver
convencido de que um princpio constitucional incide sobre a matria
trazida ao seu julgamento, o juiz deve aplic-lo, sem necessidade
de pedido da parte.
2.
Ao verificar que a aplicao de determinada regra legal ao caso
submetido a julgamento acarreta clara violao de um princpio
fundamental de direitos humanos, muito embora a regra no seja
inconstitucional em tese, o juiz deve afastar a aplicao da lei
na hiptese, tendo em vista a supremacia dos princpios sobre as
regras, o que acarreta a necessidade lgica de se interpretarem
estas em funo da norma de princpio.
3.
Na eventual coliso entre dois princpios para a soluo da
lide, o juiz deve preferir aquele cuja aplicao ao caso
representa maior respeito dignidade humana.
4.
No exerccio da funo jurisdicional, os magistrados, como todos
os demais agentes pblicos, devem orientar-se pelos objetivos
supremos de nossa organizao poltica, expressos no art. 3. da
Constituio Federal, os quais expressam os grandes valores de
liberdade, igualdade e solidariedade, em funo dos quais
constituiu-se, progressivamente, o sistema de direitos humanos.
5.
As normas jurdicas que contm standards, ou termos de sentido
valorativo, abrem ao magistrado a possibilidade de adequar tecnicamente
as suas decises a esses objetivos fundamentais do Estado
brasileiro, submetendo as leis ao esprito da Constituio, bem
como os interesses prprios de cada classe ou grupo social
supremacia do bem comum.
6.
O juiz no pode, sob o falso argumento de que no um rgo
poltico, recusar-se a apreciar eticamente as lides submetidas ao
seu julgamento. A finalidade ltima do ato de julgar consiste em
fazer justia, no em aplicar cegamente as normas do direito
positivo. Ora, a justia, como advertiu a sabedoria clssica,
consiste em dar a cada um o que seu. O que pertence
essencialmente a cada indivduo, pela sua prpria natureza, a
dignidade de pessoa humana, supremo valor tico. Uma deciso
judicial que negue, no caso concreto, a dignidade humana imoral
e, portanto, juridicamente insustentvel.
Doutor
Honoris Causa da Universidade de Coimbra.
Doutor
em Direito da Universidade de Paris.
Professor
Titular da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo
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