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A
Emancipao do Ser Humano como sujeito do Direito Internacional e os
Limites da Razo de Estado
Vivemos,
nesta agem de sculo, um momento na histria marcado por uma
profunda reflexo, em escala universal, sobre as prprias bases da
sociedade internacional e a formao gradual da agenda internacional do
sculo XXI. Dificilmente poderia haver ocasio mais propcia para
refletir sobre o futuro, tendo presentes as lies que nos deixa o
sculo XX. Proponho-me, nas pginas seguintes, desenvolver algumas
breves reflexes a respeito, entremeadas de um depoimento de minha
prpria experincia pessoal, acumulada no domnio do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, com ateno voltada a um ponto
central de importncia capital, que me permito denominar de emancipao
do ser humano como sujeito do direito internacional em meio ao
reconhecimento dos limites da razo de Estado.
Os
grandes pensadores contemporneos que se dispam a extrair as lies
que levaremos deste sculo coincidem em um ponto fundamental, to bem
ressaltado, por exemplo, nos derradeiros escritos de Bertrand Russell, de
Karl Popper, de Isaiah Berlim, dentre outros: nunca, como no sculo XX,
verificou-se tanto progresso na cincia e na tecnologia, acompanhado
tragicamente de tanta destruio e crueldade; nunca, como em nossos
tempos, verificou-se tanto aumento da prosperidade acompanhado de modo
igualmente trgico de tanto aumento estatisticamente comprovado
das disparidades econmico-soclais e da pobreza extrema! O crepsculo
deste sculo desvenda um panorama e. progresso cientfico e tecnolgico
sem precedentes, acompanhado de padecimentos humanos indescritveis.
Ao
longo deste sculo de trgicas contradies, do divrcio entre a
sabedoria e o conhecimento especializado, da antinomia entre o domnio
das cincias e o descontrole dos impulsos humanos, das oscilaes entre
avanos e retrocessos, gradualmente se transformou a funo do
direito internacional como instrumental jurdico j no s de
regulao, como sobretudo de libertao. O direito internacional
tradicional, vigente no incio do sculo, marcava-se pelo voluntarismo
estatal ilimitado, que se refletia na permissividade do recurso a
guerra, da celebrao de tratados desiguais, da diplomacia secreta, da
manuteno de colnias e protetorados e de zonas de influncia. Contra
essa ordem oligrquica e injusta se insurgiram princpios como os da
proibio do uso e ameaa da fora e da guerra de agresso (e do
no-reconhecimento de situaes por estas geradas), da igualdade
jurdica dos Estados e da soluo pacifica das controvrsias
internacionais. Deu-se, ademais, incio ao combate s desigualdades (com
a abolio das capitulaes, o estabelecimento do) sistema de
proteo de minorias sob a Liga das Naes, e as primeiras
convenes internacionais do Trabalho da OIT.
um
meados do sculo, reconheceu-se a necessidade da reconstruo do
direito internacional, com ateno aos direitos do ser humano, do que
deu eloqente testemunho a adoo da Declarao Universal de 1948,
seguida, ao longo de cinco dcadas, por mais de 70 tratados de proteo
hoje vigentes nos planos global e regional. Na era das Naes Unidas,
consolidou-se, paralelamente, o sistema de segurana coletiva, que, no
entanto, deixou de operar a contento em razo dos imes gerados pela
Guerra Fria. O direito internacional ou a experimentar, no segundo
meado deste sculo, uma extraordinria expanso, fomentada em grande
parte pela atuao das Naes Unidas e agncias especializadas,
ademais das organizaes regionais, estendida tambm ao domnio
econmico e social, a par do comrcio internacional.
A
emergncia dos novos Estados, em meio ao processo histrico de
descolonizao, veio marcar profundamente sua evoluo nas dcadas de
cinqenta e sessenta, em meio ao grande impacto no seio das Naes
Unidas do direito emergente de autodeterminao dos povos.
Desencadeou-se o processo de desmocratizao do direito internacional.
Ao transcender os antigos parmetros do direito clssico da paz e da
guerra, equipou-se o direito internacional para responder s novas
demandas e desafios da vida internacional, com maior nfase na
cooperao internacional. Nas dcadas de sessenta a oitenta, os foros
multilaterais se engajaram em um intenso processo de elaborao e
adoo de sucessivos tratados e resolues de regulamentao dos
espaos, em reas distintas como a do espao exterior e a do direito do
mar.
As
notveis transformaes no cenrio mundial contemporneo,
desencadeadas, a partir de 1989, pelo fim da Guerra Fria e a irrupo de
numerosos conflitos internos, tm caracterizado os anos noventa como um
perodo de grande densidade histrica. O exerccio de reflexo
universal que tm ensejado se reflete no ciclo das Conferncias Mundiais
das Naes Unidas deste final de sculo, que tm procedido a uma
reavaliao global de muitos conceitos luz da considerao de temas
que afetam a humanidade como um todo. Seu denominador comum tem sido a
ateno especial s condies de vida da populao (particularmente
dos grupos vulnerveis, em necessidade especial de proteo), da
resultando o reconhecimento universal da necessidade de situar os seres
humanos de modo definitivo no centro de todo processo de
desenvolvimento.
Com
efeito, os grandes desafios de nossos tempos a proteo do ser
humano e do meio ambiente, o desarmamento, a erradicao da pobreza
crnica e o desenvolvimento humano, e a superao das disparidades
alarmantes entre os pases e dentro deles tm incitado
revitalizao dos prprios fundamentos e princpios do direito
internacional contemporneo, tendendo a fazer abstrao de solues
jurisdicionais e espaciais (territoriais) clssicas e deslocando a
nfase para a noo de solidariedade. Compreende-se hoje, enfim, que
a rato de Estado tem limites, no atendimento das necessidades e
aspiraes da populao, e no tratamento equnime das questes que
afetam toda a humanidade.
O
ordenamento internacional tradicional, marcado pelo predomnio das
soberanias estatais e pela excluso dos indivduos, no foi capaz de
evitar a intensificao da produo e o uso de armamentos de
destruio em massa, tampouco as violaes macias dos direitos
humanos perpetradas em todas as regies do mundo, e as sucessivas
atrocidades de nosso sculo, inclusive as contemporneas como o
holocausto, o gulag, seguidos de novos atos de genocdio, no sudeste
asitico, na Europa Central (ex-Iugoslvia) e na frica (Ruanda).
Tais atrocidades tm despertado a conscincia jurdica universal para a
necessidade de reconceituar as prprias bases do ordenamento
internacional.
Afirmam-se,
assim, com maior vigor, os direitos humanos universais. J no se
sustentam o monoplio estatal da titularidade de direitos nem os excessos
de um positivismo jurdico degenerado, que excluram do ordenamento
jurdico internacional o destinatrio final das normas jurdicas: o ser
humano. Reconhece-se hoje a necessidade de restituir a este ltimo a
posio central como sujeito do direito tanto interno corno
internacional de onde foi indevidamente alijado, com as consequencias
desastrosas j assinaladas. Em fl05505 dias o modelo westphaliano do
ordenamento internacional afigura-se esgotado e superado.
A
prpria dinmica da vida internacional cuidou de desautorizar o
entendimento tradicional de que as relaes internacionais se regiam por
regras derivadas inteiramente da livre vontade dos prprios Estados. O
positivismo voluntarsta mostrou-se incapaz de explicar o processo de
formao das normas do direito internacional geral, e se tornou
evidente que 50) se poderia encontrar uma resposta ao problema dos
fundamentos e da validade deste ltimo na conscincia jurdica
universal, a partir da assero da idia de uma justia objetiva.
Nesta linha de evoluo tambm se insere a tendncia atual de
criminalizao de violaes graves dos direitos da pessoa
humana, paralelamente consagrao do princpio da jurisdio
universal. Neste final de sculo, temos o privilgio de testemunhar o
processo de humanizao do direito internacional, que a a se ocupar
mais diretamente da realizao de metas comuns superiores. O
reconhecimento da centralidade dos direitos humanos corresponde a um novo
ethos de nossos tempos.
A
titularidade jurdica internacional do ser humano, tal como a anteviam os
chamados fundadores do direito internacional (o direito) das gentes,
hoje uma realidade. Para alcanar esse grau de evoluo, foi
necessrio superar inmeros obstculos, nos planos tanto nacional como
internacional. Permito-me recordar alguns episdios de minha prpria
experincia pessoal. Desde que apresentei meu Parecer, de 16.8.1985, com
os fundamentos jurdicos para a adeso do Brasil aos tratados gerais de
direitos humanos, como ento Consultor Jurdico do ltamaraty, foi
necessrio aguardar por mais de seis anos sua aprovao congressual,
para que o Brasil enfim se tornasse Parte nos dois Pactos de Direitos
Humanos (de Direitos Civis e Polticos, e de Direitos Econmicos,
Sociais e Culturais) das Naes Unidas (em 24.1.1992), e na Conveno
Americana sobre Direitos Humanos (em 25.9.1992). Durante essa longa
espera, tive o ensejo de criar na Universidade de Braslia a disciplina
Proteo Internacional dos Direitos Humanos, e de organizar em
vrias cidades, com o respaldo de entidades humanitrias, uma srie de
seminrios de mobilizao da opinio pblica nacional neste
propsito, que contaram com a valiosa participao de diversos colegas
de nossos crculos acadmicos.
Desde
que apresentei outro Parecer, de 18.10.1989, ainda como Consultor
Jurdico do Itamaraty, com os fundamentos jurdicos para a aceitao,
pelo Brasil, da competncia da Corte interamericana de Direitos Humanos
em matria contenciosa, foi necessrio esperar quase uma dcada, at
que, em 10.12.1998, se efetuasse o deposito do respectivo instrumento de
aceitao pelo Brasil. Felizmente essas decises foram tomadas,
reconciliando a posio de nosso pais com seu pensamento jurdico mais
lcido, e congregando as instituies do poder pblico e as
organizaes no-governamentais e demais entidades de nossa sociedade
civil em torno da causa comum da proteo do ser humano.
No
tocante aplicao da normativa internacional de proteo no
direito interno, o quadro no tem sido distinto. Desde que apresentei, em
audincia pblica na Assemblia Nacional Constituinte, em 29.4.1987,
a proposta que se transformou no art. 5, 2, de nossa Constituio
Federal de 1988, em virtude do qual 05 direitos constitucionalmente
consagrados abarcam igualmente os constantes dos tratados de direitos
humanos em que o Brasil Parte, at hoje continuamos esperando pelo dia
em que se venha a dar a devida aplicao a essa disposio
constitucional. A Constituio de um pas no um menu, de onde se
possam extrair as disposies a aplicar, ignorando as demais. Estou
convencido de que, em mais de uma dcada da vigncia de nossa
Constituio Federal, muito mais poderamos ter avanado na proteo
dos direitos humanos em nosso pais se todos os setores do Poder
judicirio estivessem dando aplicao cabal aquela disposio.
Outras
ilustraes poderiam ser mencionadas: por exemplo, desde que o brasil
ratificou as duas Convenes contra a Tortura que hoje o vinculam a
das Naes Unidas, em 28.9. 1989, e a Interamericana, de 20.7.1989
, foi necessrio esperar quase oito anos at que a Lei n 9.455, de
7.4.1997, viesse a tipificar o crime de tortura em nosso direito interno,
e ainda assim com algumas falhas, guardando um paralelismo apenas
imperfeito com as duas Convenes supracitadas. Assim trabalhar no
campo da proteo dos direitos humanos: e como nadar contra a
correnteza, para fazer uso de expresso consagrada cm um dos escritos de
Isaiah Berlin.
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Se
amos do plano nacional ao internacional, o mesmo quadro de
dificuldades se nos apresenta. Sempre me recordarei dos momentos finais da
II Conferncia Mundial de Direitos Humanos em junho de 1993, quando, a
duras penas e aparentemente mais pela exausto do que pela
convico da maioria dos delegados , logramos em incluir, no art. 1
da Declarao e Programa de Ao de Viena, a simples reassero da
universalidade dos direitos humanos, que as delegaes partidrias do
chamado relativismo cultural buscavam evitar. Os que hoje lem aquele
documento no se do conta da luta que travamos para evitar o grave
retrocesso conceitual de uma relativizao que teria sido desastrosa
dos direitos humanos universais. Naqueles momentos dramticos da
Conferncia Mundial de Viena, o teor da Declarao Universal dos
Direitos Humanos de 1948 me parecia demasiado avanado para o mundo de
1993.
A
insensatez humana parece no ter limites, e a memria do sofrimento de
geraes adas parece no resistir a eroso do tempo. Assim
trabalhar no campo da proteo dos direitos humanos, onde o progresso
parece dar-se em forma no linear, mas pendular. No plano regional, por
exemplo, h poucas semanas em 26 de maio ado, entrou em vigor uma
denncia, sem precedentes, da Conveno Americana sobre Direitos
Humanos, efetuada por Trinidad e Tobago. Jamais me esquecerei das ltimas
horas do dia 25 de maio, em que, em sesso da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, cinco horas antes da entrada em vigor da referida
denncia, logramos ordenar a tempo, sempre sob a presso impiedosa do
relgio, medidas provisrias de proteo, no sentido de suspender a
execuo de condenados pena de morte naquele pas. Poderia aqui
evocar, como fiel ilustrao das dificuldades que permeiam a luta em
prol dos direitos humanos, o mito do Ssifo, nas imorredouras
reflexes de um dos maiores escritores deste sculo, Albert Camus: e
um trabalho de perseverana que simplesmente no tem fim.
Por
outro lado, e talvez em razo da dimenso humana do desafio sempre a
defrontar, dificilmente poderia haver labor mais gratificante do que o
empreendido no presente domnio sobretudo quando, uma vez resolvido
um litigio, recebemos a visita de uma vtima para dizer-nos, como j
ocorreu, que em seu caso enfim se fez justia graas operao dos
mecanismos internacionais de proteo. Considero um privilgio poder
estar atuando, em benefcio de tantos seres humanos no contencioso
internacional que j faz parte da histria contempornea da proteo
internacional dos direitos humanos na Amrica Latina.
A
par dos casos decididos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos,
que me eximo de comentar (referindo-me a meus votos nas respectivas
sentenas da Corte), guardo a melhor das lembranas, por exemplo, do
desfecho de dois importantes casos para cuja soluo fui convocado: um
relativo Nicargua, no mbito da Organizao dos Estados Americanos
(OEA), e outro relativo Rssia, no mbito do Conselho da Europa. O
relatrio sobre o primeiro caso, entregue ao Secretrio-Geral da OEA
em 4.2.1994, contribuiu decisivamente a pr fim a uma gravssima crise
institucional que ocasionara a suspenso por alguns meses dos trabalhos
do Parlamento nicaraguense.
No
continente europeu, transcorrido pouco mais de um ano, ante a
fragmentao da Unio Sovitica e a emergncia e consolidao da
Comunidade dos Estados Independentes (CEI), o Conselho da Europa
solicitou-me um parecer sobre as implicaes jurdicas da coexistncia
entre a Conveno Europia de Direitos Humanos e a Conveno de Minsk
sobre Direitos Humanos, de 1995. Recordo-me de que, na poca, havia
muitos em Estrasburgo que temiam que uma aproximao com a Rssia
poderia baixar 05 padres de proteo dos direitos humanos em um
Conselho da Europa ampliado. Ponderei que a preocupao no deveria
ser esta, mas sim auxiliar a Rssia a que elevasse seus prprios
padres de proteo, trazendo-a para dentro do Conselho da Europa, e
no excluindo-a, como ocorrera no ado com Cuba no sistema
interamericano. O Parecer que apresentei ao Conselho da Europa em
6.10.1995, acatado por sua Assemblia Parlamentar, contribuiu, para minha
satisfao, ao ingresso da Federao Russa no Conselho da Europa e a
que se tornasse ela Parte na Conveno Europia de Direitos Humanos.
Espero
que o mesmo desfecho positivo tenha o mais recente caso submetido a minha
considerao: em 25.6.1999, no mbito do atual processo negociador
tripartite Naes Unidas/Portugal/Indonsia sobre o futuro do Timor
Leste, fiz entrega do Parecer que me foi solicitado sobre a matria, em
que desenvolvo os fundamentos jurdicos em defesa do direito de
autodeterminao do povo do Timor Leste, e os argumentos em favor da
opo pela independncia (ao invs de simples autonomia mitigada) no
referendo popular a realizar-se na ilha, programado em princpio para
agosto, sob a superviso das Naes Unidas. A ao, no presente
domnio de proteo, no visa a reger as relaes entre iguais, mas
proteger os ostensvamente mais fracos e vulnerveis, e quando
sentimos que contribumos para assegurar a proteo do Direito
queles que dela mais necessitam, a satisfao redobrada, e
ousaria acrescentar possivelmente maior do que em qualquer outra
rea da cincia jurdica contempornea.
Em
meio a muitos percalos, alguns avanos inequvocos se tm
efetivamente registrado no presente domnio de proteo. Por exemplo,
em fl0550 continente, desde sua instalao em 1979 at hoje, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos j realizou 44 perodos ordinrios
e 23 extraordinrios de sesses, ao longo dos quais emitiu, at o
presente, 53 sentenas (sobre excees preliminares, mrito,
reparaes e interpretao) e 15 pareceres, alm de 55 medidas
provisrias de proteo. Graas a essa jurisprudncia protetora,
ainda virtualmente desconhecida no Brasil, temos logrado salvar vicias,
pr fim a violaes dos direitos humanos, modificar prticas
istrativas e medidas legislativas, e prover reparaes s
vtimas OU a seus familiares.
Fim
sua jurisprudncia recente, a Corte Interamericana tem enfatizado o papel
central, no sistema de proteo, das garantias judiciais e do direito
a um recurso rpido e eficaz perante as instncias judiciais nacionais
competentes. A consagrao de tal direito, originalmente no art. 8.0 da
Declarao Universal dos Direitos Humanos, constituiu a contribuio
talvez mais importante dos pases latino-americanos elaborao
daquele histrico documento de 1948, que desencadeou o processo de
generalizao da proteo internacional dos direitos humanos. Esse
direito encontra-se hoje consagrado no art. 25 da Conveno Americana
sobre Direitos Humanos, e a Corte Interamericana, em sentenas recentes,
tem assinalado que o direito a um recurso efetivo ante os juizes ou
tribunais nacionais competentes Constitui um dos pilares bsicos no s
da Conveno Americana, como do prprio Estado de Direito em uma
sociedade democrtica, no sentido da Conveno, uma vez que se
encontra diretamente ligado ao direito de o justia.
E
este um tema que me parece de importncia capital: impe-se o direito
de o justia nos planos tanto nacional como internacional. A
proteo judicial constitui a forma mais aperfeioada de salvaguarda
dos direitos humanos. Em meu entender, devemos assegurar a maior
participao possvel dos indivduos, das supostas vtimas, no
procedimento perante a Corte Interamericana, sem a intermediao da
Comisso Interamericana de Direitos Humanos.
E
esta uma bandeira que venho empunhando j h algum tempo nos foros
internacionais e que, apesar das costumeiras resistncias, vem ganhando
ultimamente crescentes e importantes adeses. E esta a causa que
continuarei defendendo, no plano internacional, at suas ltimas
conseqncias. Os europeus tiveram de esperar por mais de quatro
dcadas, at a entrada em vigor, em 1.11.1998, do Protocolo Xl
Conveno Europia de Direitos Humanos, que veio enfim assegurar jus
standi dos indivduos diretamente Corte Europia de Direitos Humanos,
em todos 05 casos.
Entendo
que ao reconhecimento de direitos deve corresponder a capacidade
processual de vindic-los ou exerc-los igualmente no plano
internacional. E este um imperativo de equidade que contribui
instruo e transparncia do processo. Ao direito de o justia
no plano internacional deve corresponder a garantia da igualdade
processual das partes os indivduos demandantes e os Estados
demandados , que da prpria essncia da proteo internacional
dos direitos humanos. A jurisdicionalizao do mecanismo de proteo
convencional interessa a todos, inclusive aos indivduos demandantes e
aos Estados demandados. Impe-se a consolidao da plena capacidade
processual dos indivduos, como sujeitos do Direito Internacional dos
Direitos Humanos.
A
despeito dos avanos logrados no presente domnio de proteo, resta,
no entanto, um longo caminho a percorrer. Ainda falta muito para que a
linguagem dos direitos humanos alcance as bases das sociedades nacionais;
nestas, h que se superar freqentemente a inrcia e a indiferena do
prprio meio social, que por vezes parece no se aperceber de que o
destino de cada um de seus membros est inelutavelmente ligado sorte
de todos. Da a importncia da educao em direitos humanos. Durante o
binio em que dirigi o Instituto Interamericano de Direitos Humanos
(1994-1996), elegi como pases-piloto, para suprir suas carncias e
atender s suas necessidades nessa rea, trs Estados da regio: na
Amrica do Sul, o Brasil (com a realizao de numerosos projetos); na
Amrica Central, a Guatemala (com o lanamento do Plano Integral em
Direitos Humanos para aquele pas); e no Caribe, Cuba (com a realizao
do primeiro grande Seminrio de Direitos Humanos naquele pais, em
parceria com a Unio Nacional de Juristas Cubanos). Somente com a
educao formal e no formal em direitos humanos em todos os nveis
alcanaro tais direitos as bases das sociedades nacionais.
Ainda
no existe uma clara compreenso do amplo alcance das obrigaes
convencionais de proteo, que vinculam todos os poderes e agentes do
Estado. H que adotar e aplicar as medidas nacionais de implementao,
assegurando a aplicabilidade direta das normas internacionais de
proteo dos direitos humanos no plano do direito interno. H que
garantir o o direto dos indivduos justia nos planos tanto
nacional como internacional. H que assegurar o fiel cumprimento das
sentenas dos tribunais internacionais de direitos humanos no mbito do
direito interno dos Estados-Partes nos respectivos tratados de proteo.
H que estender a proteo convencional aos direitos econmicos
sociais e culturais, de modo a lograr a indivisibilidade dos direitos
humanos no s na teoria, como tambm na prtica. H que assegurar
melhor coordenao entre os mltiplos mecanismos e procedimentos
internacionais de direitos humanos, nos planos global e regional, como
assinalei em curso ministrado na Academia de Direito Internacional da
Haia, em 1987.
H
que conceber novas formas de proteo do ser humano ante a
diversificao das fontes de violao de seus direitos. Para
contribuir a assegurar a observncia dos direitos da pessoa humana em
quaisquer circunstncias, inclusive em emergncias pblicas e estados
de sitio, e evitar a vacatio legis, h que fomentar as convergncias
nos planos normativo, hermenutico e operacional entre o Direito
Internacional dos Direitos Humanos, o Direito internacional dos Refugiados
e o Direito Internacional Humanitrio, inclusive propiciando, quando
for o caso, a aplicao simultnea ou concomitante de suas normas. Foi
o que sustentei na avaliao a que procedi, em 1994, por solicitao
do Alto-Comissariado das Naes Unidas para os Refugiados (ACNUR), do
processo desenvolvido no perodo de 1989-1994 pela Conferncia
Internacional sobre Refugiados Centro-americanos (CIREECA); foi igualmente
a concluso a que chegaram os Seminrios, convocados pelo Instituto
Interamericano de Direitos Humanos, de atualizao da aplicao, no
continente americano, da normativa do Direito Internacional dos Refugiados
(San Jos da Costa Rica, dezembro de 1994) e do Direito Internacional
Humanitrio (Santa Cruz de la Sierra, junho de 1995).
Para
concluir, permito-me retornar brevemente a meu ponto de partida: o das
contradies de nosso sculo, e da premente necessidade de super-las.
Em luminoso livro, publicado h mais de cinqenta anos, ao questionar as
prprias bases do que entendemos por civilizao (conquistas
modestssimas nos planos moral e social), o historiador Arnold Toynbee
lamentava que o domnio, alcanado pelos homens, da natureza humana
infelizmente aio se estendeu ao plano espiritual. Outro historiador,
contemporneo, Eric Ilobsbawn, vem de diagnosticar o sculo XX como um
perodo da histria marcado sobretudo pelos crimes e loucuras da
humanidade. Com um toque de esperana, eu me permitiria acrescentar que,
em meio a tanta violncia e destruio, nos dado resgatar, talvez
como o mais precioso legado para o prximo sculo, a evoluo,
impulsionada em raros momentos ou lampejos de lucidez, da proteo
internacional dos direitos humanos ao longo das cinco ltimas dcadas.
Na
construo do ordenamento jurdico internacional
do novo sculo, testemunhamos, com a gradual eroso
da reciprocidade, a emergncia pari para de consideraes
superiores de ordre public, refletidas nas concepes
das normas imperativas do direito internacional
geral (o jus cogens), dos direitos fundamentais
inderrogveis, das obrigaes erga omnes de proteo
(devidas comunidade internacional como um todo).
A consagrao dessas obrigaes representa a
superao de um padro de conduta erigido sobre
a pretensa autonomia da vontade do Estado, do
qual o prprio direito internacional buscou gradualmente
se libertar ao consagrar o conceito de jus cogens.
H que dar seguimento evoluo auspiciosa da
consagrao das normas de jus cogens e das correspondentes
obrigaes erga omnes, buscando assegurar sua
plena aplicao prtica, em beneficio de todos
os seres humanos. Estas novas concepes se impem
em nossos dias, e de sua fiel observncia depender
em grande parte a evoluo futura do direito internacional.
este, em meu entender, o caminho a seguir, para
que no mais tenhamos de continuar a conviver
com as contradies trgicas que marcaram este
sculo prximo ao final.
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