Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
Direitos Humanos
Desejos Humanos
Educao EDH
Cibercidadania
Memria Histrica
Arte e Cultura
Central de Denncias
Banco de Dados
MNDH Brasil
ONGs Direitos Humanos
ABC Militantes DH
Rede Mercosul
Rede Brasil DH
Redes Estaduais
Rede Estadual RN
Mundo Comisses
Brasil Nunca Mais
Brasil Comisses
Estados Comisses
Comits Verdade BR
Comit Verdade RN
Rede Lusfona
Rede Cabo Verde
Rede Guin-Bissau
Rede Moambique

1t6y6m

CIDADANIA GLOBAL E ESTADO NACIONAL


1. A Atualidade da Cidadania

H um renovado interesse pela cidadania nos anos 90. O conceito de cidadania parece integrar noes centrais da filosofia poltica, como os reclamos de justia e participao poltica. Cidadania vincula-se intimamente idia de direitos individuais e de pertena a uma comunidade particular, colocando-se, portanto, no corao do debate contemporneo entre liberais e comunitaristas.

Os inmeros trabalhos tericos sobre cidadania nesta dcada parecem apontar na direo de uma teoria da cidadania. Segundo Will Kymlicka, haveria, porm, dois grandes obstculos a esta pretenso.

O primeiro seria o mbito potencialmente ilimitado de uma teoria da cidadania, que poderia abranger qualquer problema envolvendo relaes entre o cidado e o Estado. O segundo seria a dualidade existente no interior do conceito de cidadania, ou melhor, duas concepes distintas coexistindo na noo de cidadania.

Existiria uma concepo 'fina' de cidadania como status legal, isto , cidado como membro pleno de uma comunidade poltica particular. E, de outro lado, uma concepo 'espessa' de cidadania como escopo, como atividade desejvel, onde a extenso e a qualidade da cidadania seriam funo da participao do cidado naquela comunidade (Kymlicka &Norman, 1995).

No existe, at hoje, nenhuma teoria da cidadania, mas importantes contribuies tericas j foram dadas a respeito da tenso entre os diversos elementos que compem o conceito de cidadania, esclarecendo melhor as razes de sua atualidade neste final de sculo. Duas grandes interpretaes contraditrias se enfrentam na conceptualizao de cidadania.

Na primeira, o papel de cidado visto de forma individualista e instrumental, segundo a tradio liberal iniciada com Locke. Os indivduos so vistos como pessoas privadas, externos ao Estado, e seus interesses so pr-polticos. Na segunda, prevalece uma concepo comunitarista oriunda da tradio de filosofia poltica proveniente de Aristteles. Temos aqui uma cidadania ativa, e no mais iva como no primeiro caso. Os indivduos esto integrados numa comunidade poltica e sua identidade pessoal funo das tradies e instituies comuns.

Segundo Charles Taylor, trata-se de dois modelos de cidadania. O primeiro baseado nos direitos individuais e no tratamento igual. O segundo define a participao no governo como essncia da liberdade, como componente essencial da cidadania (Taylor, apud Habermas, 1995b).

Em formulao semelhante, Bryan Turner (1990) constata a existncia de uma cidadania iva, a partir 'de cima', via Estado, e uma cidadania ativa, a partir 'de baixo'. Haveria, assim, uma cidadania conservadora - iva e privada - e uma outra revolucionria - ativa e pblica.

No que diz respeito relao problemtica entre cidadania e identidade nacional, ela foi influenciada, segundo Habermas, por trs acontecimentos histricos recentes.

Primeiro, a questo do futuro do Estado-Nao tornou-se inesperadamente atual aps a unificao alem, a liberao dos Estados da Europa Centro-Oriental e os conflitos de nacionalidade irrompendo em toda a Europa oriental. Segundo, a formao histrica da Unio Europia ajuda a esclarecer as relaes entre Estado-Nao e democracia, pois os processos democrticos que se desenvolveram juntamente com o Estado-Nao ficam aqum da forma supranacional assumida pela integrao europia. E, terceiro, os fluxos migratrios das regies pobres do sul e leste europeu assumem cada vez mais relevncia urgente e significativa. Essas migraes exacerbam os conflitos entre os princpios universais das democracias constitucionais e as reivindicaes particulares das comunidades para preservar a integridade de seus estilos habituais de vida (Habermas, 1995a).

A sbita ampliao de regimes democrtico-liberais desencadeada pelo colapso do comunismo sovitico e pelo fim da Guerra Fria tem provocado, em algumas regies, efeitos paradoxais: em certos pases, ela permitiu (s vezes pela primeira vez) a participao eleitoral e a emergncia de novas e mltiplas associaes voluntrias que ampliaram e aprofundaram a cidadania democrtica, enquanto em outros surgiram graves contradies internas, em precrios Estados-nao, dando lugar a conflitos tnicos, divises territoriais, guerra civis, genocdio (Held, 1995b).
Em decorrncia, vemos que a relao, j de si contraditria, entre cidadania e Estado-Nao a a ser entrecortada pela relao, igualmente contraditria, entre cidadania e multiculturalismo.

De um lado, a cidadania nacional vem sendo ameaada pelas presses globais e tambm, em contrapartida, por presses locais. O nacionalismo a forma assumida por uma reao tpica a sentimentos de identidade ameaada; e nada ameaa mais a identidade nacional do que o processo de globalizao. O nacionalismo 'aglutinador' de outrora parece substitudo hoje por um nacionalismo 'separatista'. Os Tchecos e os Eslovacos constituem um exemplo pacfico dessa tendncia, que chegou a guerras sangrentas entre servos, croatas e bsnios na antiga Iugoslvia e, mais recentemente, entre servos e kosovares.

Quando, no dizer de Habermas, a idia de 'nao do povo', ao longo do sculo XIX, arrebatou a imaginao das massas, ela produziu efeitos diferenciados. Converteu-se em motor das lutas de democratizao, produzindo gradualmente e por intermdio de distintas estratgias de incorporao, a agem do status de sdito para o de cidado e a generalizao da participao poltica (Bobbio, 1992; Turner, 1994).

No mesmo movimento, a poltica democrtica nacionaliza-se. Intercambivel com o termo 'povo', o termo 'nao' a a ser portador ambguo do republicanismo e do nacionalismo, dois componentes que operam juntos, embora com sentidos diferentes. Um primeiro sentido de carter legal e poltico - a nao de cidados, legalmente capacitados para exercer seus direitos e obrigaes, que proporciona a legitimao democrtica. Um outro sentido tem carter pr-poltico - a nao herdada ou atribuda, moldada pela origem, cultura, histria, lngua comum, que facilita a integrao social (Habermas, 1995a).

O conceito poltico de nao absorveu conotaes de seu conceito gmeo mais antigo, pr-poltico, levando a preconceitos estereotipados.


O novo auto-entendimento como nao foi com freqncia empregado para hostilizar todas as coisas estrangeiras, para menosprezar as demais naes e para discriminar ou excluir minorias nacionais, tnicas ou religiosas, especialmente os judeus. (Habermas, 1995a, p.90)

Assim, da ambigidade do termo 'nao' pode surgir - como aconteceu na histria europia dos sculos XIX e XX - uma ameaa perigosa para o componente republicano do Estado Nacional, quando este, em lugar de respaldar a democratizao do sistema poltico, reduz a fora integrativa da nao sua noo pr-poltica e a manipula.
Conforme assinalou Habermas, existe - inscrita no auto-entendimento do Estado-Nao - uma tenso entre o universalismo de uma comunidade legal igualitria e o particularismo de uma comunidade cultural a que se pertence por origem e destino. Essa tenso
...pode ser resolvida desde que os princpios constitucionais dos direitos humanos e da democracia priorizem um entendimento cosmopolita da nao como uma nao de cidados, em detrimento de uma interpretao etnocntrica da nao como uma entidade pr-poltica. (Habermas,1995a, p.94)
Por outro lado, a coexistncia, num mesmo territrio nacional, de diversos grupos tnicos com culturas e religies diferentes, questiona a tradicional viso liberal de igualdade que sempre ignorou as diferenas socioeconmicas e culturais existentes na populao. Segundo Sergio Costa:
... o multiculturalismo a expresso da afirmao e da luta pelo reconhecimento desta pluralidade de valores e diversidade cultural no arcabouo institucional do Estado democrtico de direito, mediante o reconhecimento dos direitos bsicos dos indivduos enquanto seres humanos e o reconhecimento das 'necessidades particulares' dos indivduos enquanto membros de grupos culturais especficos. (Costa, 1997, p.159)
Descortinam-se, aqui, trs perspectivas diferentes. Em primeiro lugar, a viso liberal (John Rawls, Ronald Dworkin, Bruce Ackerman), enfatizando o indivduo que, acima do grupo e da identidade coletiva, sempre capaz de redefinir seus prprios fins. A racionalidade e a formao da identidade se do aqui independentemente da cultura e da sociedade, so anteriores vida social. A nosso ver, a viso liberal mais sofisticada sobre cidadania a abordagem de Will Kymlicka que chega por vezes a aproximar-se da viso comunitarista (Kymlicka, 1995) .
A viso comunitarista (Charles Taylor, Michael Walzer), ao contrrio, enfatiza a cultura e o grupo social que conferem identidade aos indivduos 'atomizados' pelas tendncias desenraizadoras da sociedade liberal. O indivduo no anterior sociedade, construdo por fins que no escolhe, mas que descobre em funo de sua vida em contextos culturais compartilhados na sociedade. Aqui, com nfases variadas segundo cada autor, destacam-se os aspectos culturais e polticos da comunidade como elementos centrais na organizao do 'self' individual.
Uma terceira perspectiva refere-se concepo de Habermas, chamada de 'discursiva' ou 'deliberativa'. A comunidade poltica, para os liberais, instrumental em relao aos esforos dos indivduos em dar sentido a suas vidas. Para os comunitaristas, instrumental em relao aos esforos das comunidades para elaborar uma identidade coletiva. Nesta terceira perspectiva, a comunidade poltica um bem em si mesmo, irredutvel aos propsitos individuais ou s metas comunitrias.
O modelo liberal de contrato entre participantes de um mercado substitudo pela busca do consenso, pelo dilogo, entre participantes de uma ao comunicativa intersubjetiva. Contra os liberais, Habermas apoia os comunitaristas no sentido de que o reconhecimento das diferenas culturais deve ser uma questo poltica. Mas se afasta dos comunitaristas porque, no dizer de Sergio Costa (1997, p.169) "... no deseja promover a vinculao incondicional das pessoas s prticas que se quer defender ou preservar". A reflexo poltica como processo de argumentao pblica , assim, necessria para evitar a perpetuao acrtica de prticas e necessidades tornadas anacrnicas, na perspectiva de um grupo sociocultural determinado (Costa, 1997).
Esta terceira perspectiva, de carter procedimental, critica os liberais por enfatizarem a dimenso individual e rejeitarem a solidariedade social, e os comunitaristas por apresentarem uma noo limitada de comunidade, excessivamente dependente dos laos tnicos e culturais.
Assim, ultraando a viso liberal de comunidade poltica a servio da identidade individual, bem como a viso comunitarista de comunidade poltica a servio da identidade comunal, chegaramos a uma concepo de comunidade poltica como expresso republicana de uma identidade 'cvica', onde a participao poltica nos negcios pblicos elemento central na conceituao de cidadania.
2. Cidadania e Nacionalidade
A cidadania nacional vem sendo abalada pela formao de instituies supranacionais, como o caso da Unio Europia, bem como pela irrupo de identidades infra-nacionais, que assumem a forma de movimentos reivindicatrios ou separatistas.
Alm disso, a importncia crescente da dimenso econmica e social na vida moderna vem enfraquecendo os laos polticos da cidadania. Os interesses econmicos materiais predominam, em muitos casos, sobre os direitos e deveres cvicos do cidado.
O Estado-Nao democrtico clssico, moldado nos princpios das revolues americana e sa no sculo XVIII, funda sua legitimidade sobre a idia de cidadania. Todos os cidados tm os mesmos direitos e deveres, independentemente de raa, religio, grupo tnico, sexo, regio de origem, condio social etc.
O projeto democrtico universal, porque se destina a todos, e pode ser adotado por qualquer sociedade. A liberdade e a igualdade, valores fundadores da democracia moderna, possuem uma dimenso universal consagrada no princpio da cidadania. Mas a cidadania no uma essncia, uma construo histrica. Ela est intimamente ligada s lutas pela conquista dos direitos do cidado moderno.
Mas, como vimos, a vinculao entre cidadania e Estado-Nao comea a enfraquecer-se. O Estado no tem mais o monoplio das normas, pois h regras internacionais que ele deve partilhar com a comunidade internacional. E perde fora com o avano da globalizao. O Estado-Nao pode deixar de ser o lar da cidadania.
Alm da identidade cvica, h outras identidades no territrio nacional. Se o Estado-Nao no mais a identidade poltica bsica, os direitos individuais ficam desguarnecidos sem adquirirem proteo adequada no plano internacional, como nos mostraram os trgicos exemplos de Bsnia e Kosovo.
No se pode esquecer, porm, que o enfraquecimento do Estado-Nao se refere principalmente sua funo de elaborar e decidir polticas bem como sua capacidade autnoma de elaborar projetos polticos nacionais. Mas o Estado-Nao ainda a principal arena poltica, o principal ator poltico no cenrio internacional. ar do nacional para a comunidade internacional perder fora na defesa dos direitos, na medida em que no existe - pelo menos ainda - uma estrutura institucional internacional com fora suficiente para garantir a defesa dos direitos humanos.
Mas as instituies supranacionais comeam a se desenvolver com rapidez surpreendente. O melhor exemplo sem dvida a Unio Europia. Normalmente, os tratados internacionais, para vigorarem no interior de cada Estado-Nao, necessitam ser transformados em leis pelos respectivos parlamentos. No caso europeu, eles tm efeitos diretos nos Estados membros, sem necessidade de transformao em leis nacionais.
Se diferentes leis colidem, a lei europia tem prioridade sobre a lei nacional, de acordo com o Tratado de Maastricht. Mas a construo democrtica da integrao europia enfrenta dificuldades. Trata-se sobretudo do chamado 'dficit democrtico', que pode ser resumido no fato de "os cidados no disporem de meios efetivos de debater as decises europias e influenciar os processos de tomada de deciso" (Habermas, 1995b, p.267).
Duas posies se chocam na proposta de superao desse dficit democrtico. A primeira busca fortalecer a competncia do Parlamento Europeu, para lhe dar a autoridade tradicional dos parlamentos nacionais, como meio de se atingir a democracia no plano supranacional. A segunda posio afirma que isto no possvel, pois no existe um 'demos' europeu, uma esfera pblica comum, uma lngua comum. Seria um poder sem base social e cultural, pois o 'demos' nacional que seria a base legtima para fortalecer a influncia dos parlamentos nacionais nas decises dos rgos executivos europeus.
Este debate tem implicaes importantes para a cidadania. A identidade supranacional uma segunda identidade. A cidadania europia, por exemplo, no substituir a identidade nacional. Trata-se, na realidade, de um status adicional, uma segunda camada acrescentada cidadania nacional.
Com o enfraquecimento progressivo do Estado-Nao, porm, o indivduo a a ter vrias identidades, nacional, profissional, tnico-religiosa, e tambm supranacional. O Tratado de Maastricht, de 1992, consagra uma idia que desconecta a cidadania da nacionalidade. Esta desconexo ainda simblica, mas extremamente significativa.
Recordemos que o princpio das nacionalidades, tal como se desenvolveu nos sculos XVIII e XIX, remodelou o conceito de cidadania. A soberania atributo da nao, do povo, e no do prncipe. A nao precede a cidadania, pois no quadro da comunidade nacional que os direitos cvicos podem ser exercidos. A cidadania fica, assim, limitada ao espao territorial de uma nao, contrariando a esperana generosa dos filsofos do Iluminismo que haviam imaginado uma repblica universal.
Tradicionalmente, somente so cidados os nacionais de determinado pas. A cidadania vista como relao de filiao, de sangue, entre os membros de uma nao. Esta viso nacionalista exclui os imigrantes e estrangeiros dos benefcios da cidadania. De outro lado, temos a viso republicana, segundo a qual a cidadania est fundada no na filiao, mas no contrato. Seria inaceitvel restringir a cidadania a determinaes de ordem biolgica. A Revoluo sa, numa exceo histrica, concedeu cidadania aos estrangeiros. Como se l na inscrio de sua esttua em Paris, Thomas Paine era cidado do mundo, ingls por nascimento, cidado francs por decreto, americano por adoo.
No plano jurdico, h dois plos opostos de definio de nacionalidade que determinam as condies de o a cidadania. O jus soli um direito mais aberto que facilitou a imigrao e a aquisio de cidadania. O jus sanguinis um direito mais fechado, pois restringe a cidadania aos nacionais e seus descendentes. Na Alemanha, at o fim da segunda guerra mundial,
... havia ainda finas distines entre Deutschen, cidados descendentes de alemes, Reichsdeutschen, cidados alemes no descendentes de alemes, e Volksdeutschen, indivduos descendentes de alemes vivendo em outros pases. (Habermas apud Taylor, 1994, p.145)
A dissociao entre nacionalidade e cidadania confere a esta ltima uma dimenso puramente jurdica e poltica, afastando-a da dimenso cultural existente em cada nao. A cidadania aria a ter uma proteo transnacional, como os direitos humanos. Por esta concepo, seria possvel pertencer a uma comunidade poltica e nela ter participao, independentemente de ser ou no nacional.
Existem duas grandes opes para os que constatam a ruptura do elo entre cidadania e nacionalidade. A primeira declara a morte da cidadania poltica e prope sua substituio pela 'nova cidadania', de natureza essencialmente econmica e social. A segunda prope a construo de uma cidadania poltica ps-nacional, fundada sobre os princpios dos direitos humanos. Trata-se de um debate ao mesmo tempo cientfico e poltico (Schnapper, 1997).
3. A Cidadania Poltica Ps-nacional
A constatao de que a comunidade sociopoltica no se deduz historicamente da participao econmica e social, e de que a sociedade poltica no simples efeito da economia, levou os tericos da cidadania ps-nacional a manter o conceito de cidadania no interior de uma concepo poltica vinculada aos direitos humanos.
A concepo de cidadania ps-nacional constata que a soberania nacional est em processo de esvaziamento, no apenas pela criao de instituies supranacionais, mas tambm pela multiplicidade de filiaes e de identidades decorrente do deslocamento das populaes. As populaes estrangeiras querem permanecer fiis cultura e nacionalidade de origem, mas participando na sociedade onde se instalaram. Isto se torna possvel com a ruptura do elo entre nacionalidade enquanto comunidade cultural e cidadania enquanto participao poltica.
Entre as diversas frmulas encontradas para viabilizar esta concepo, destaca-se a proposta de um 'contrato de cidadania', segundo o qual os direitos de cidadania seriam concedidos a estrangeiros, que guardariam sua prpria cultura, mas se comprometeriam a aderir aos valores democrticos e s legislaes nacionais de proteo dos direitos humanos. Os estrangeiros seriam livres de manter sua prpria cultura, desde ela que no seja incompatvel com os princpios supranacionais de direitos humanos.
Nessa mesma ordem de idias, destaca-se ainda a concepo de 'patriotismo constitucional', formulada por Habermas, que se insurge contra a forma convencional de identidade nacional que une nacionalidade e cidadania. Seria necessrio dissociar a nao - lugar da afetividade - do Estado - lugar da lei. Separar a identidade nacional, com sua dimenso tnico-cultural, da participao cvica e poltica, fundada na razo e nos direitos humanos. O patriotismo no estaria mais ligado nao enquanto dimenso cultural e histrica particular, mas ao Estado de direito e aos princpios polticos da cidadania.
A noo de patriotismo constitucional foi objeto de muitas crticas por parte daqueles que no acreditam ser possvel separar a filiao nacional da participao poltica. Os membros de uma nao partilham uma lngua, uma cultura e valores comuns. At que ponto uma sociedade puramente cvica, fundada em princpios abstratos - direitos humanos, Estado de direito - poderia controlar as paixes nascidas das filiaes tnico-religiosas?
Para esses crticos, a adeso intelectual a princpios abstratos no poderia substituir a mobilizao poltica e afetiva suscitada pelas tradies polticas e culturais nacionais. Os partidrios da cidadania ps-nacional so acusados de utpicos, por superestimarem os princpios cvicos e subestimarem a base cultural real sobre a qual se funda a sociedade nacional. Quem morreria pelas instituies supranacionais?
A expresso 'patriotismo constitucional' utilizada por Habermas no deve, entretanto, ser interpretada literalmente. No se trata aqui do patriotismo do incio do sculo, quando os governos europeus conclamavam seus povos a morrerem pela ptria nas trincheiras da primeira guerra mundial. Os hinos nacionais, compostos em geral poca da independncia ou constituio autnoma do Estado nacional, quase sempre falam em 'morrer pela ptria'. Hoje, em pleno processo de globalizao, os cidados no parecem mais dispostos a morrerem pela ptria, com exceo de algumas disputas territoriais nacionalistas que em geral ocultam conflitos tnicos, religiosos ou ambientais.
Ao recusar a reduo do cidado a cliente, a concepo da cidadania ps-nacional leva os cidados a se conformarem a uma cultura mais ampla, mas esta cultura cvico-nacional, e no tnico-nacional. Trata-se aqui de uma filiao mais poltica do que social.
Os exemplos de sociedades multiculturais como Sua e Estados Unidos
... demonstram que uma cultura poltica sobre a qual esto enraizados princpios constitucionais no tem de modo algum que estar baseada no fato de todos os cidado partilharem uma lngua comum ou a mesma origem tnica ou cultural. Ao invs, a cultura poltica deve servir de denominador comum para um patriotismo constitucional que simultaneamente agua uma conscincia da multiplicidade e integridade das diferentes formas de vida que coexistem numa sociedade multicultural. (Habermas, 1995b, p.264)
Somente um conceito de cidadania dissociado da identidade nacional pode possibilitar uma poltica mais ampla em relao a imigrao e concesso de asilo. Apenas um sistema constitucional democrtico pode assegurar a coexistncia e igualdade de diferentes modos de vida que, entretanto, devem ajustar-se a uma cultura poltica comum. Apenas a cidadania democrtica pode abrir caminho a uma cidadania mundial (Habermas, 1995b).
4. O Declnio da Cidadania Nacional
As questes e categorias centrais da teoria e prtica da democracia contempornea resultam indissociveis da figura do Estado-Nao: o consenso e a legitimidade do poder poltico; a base poltico-territorial do processo poltico; a responsabilidade das decises polticas; a forma e o alcance da participao poltica; e at o prprio papel do Estado-Nao como garante institucional dos direitos e deveres dos cidados. Por isso, a democracia como forma de governo e a cidadania democrtica como meio privilegiado de integrao social na comunidade poltica esto, inexoravelmente, 'territorializadas' em virtude de sua vinculao histrica e terica com a figura do Estado-Nao e, consequentemente, com a ordem internacional baseada nos princpios e normas fixadas no Tratado de Westflia.
Ocorre, porm, que os processos em curso de globalizao esto desafiando as fundaes e princpios polticos do Estado-Nao e da ordem de Westflia, e, por extenso, da prpria democracia e cidadania. O processo de globalizao econmica est enfraquecendo os laos territoriais que ligam o indivduo e os povos ao Estado, deslocando o locus da identidade poltica, diminuindo a importncia das fronteiras internacionais e abalando seriamente as bases da cidadania tradicional.
A globalizao econmica tende, assim, a produzir um declnio na qualidade e significao da cidadania, a no ser que a idia de filiao poltica e identidade existencial possam ser efetivamente vinculadas a realidades transnacionais de comunidade e participao num mundo 'ps-estatal' ou 'ps-moderno'. Para ser bem sucedido, tal processo dever ser capaz de envolver foras sociais e polticas ocidentais e no-ocidentais, tornando-se significativo para um grande nmero de pessoas, em todos os nveis da sociedade.
O declnio da cidadania est intimamente vinculado mudana no papel do Estado. O Estado moderno, com sua perspectiva espacial, priorizou a populao dentro de seu territrio nacional, dotando-a de uma identidade bsica e de uma poderosa ideologia, o nacionalismo. Aps sculos de lutas, a noo monrquica de sdito foi substituda pelo princpio democrtico da cidadania, baseado nos direitos e deveres do cidado.
O peso poltico da cidadania nacional tornou-se to forte que nem a perspectiva marxista, que considerava o governo democrtico mera expresso dos interesses das classes dominantes, conseguiu ultraar as fronteiras do territrio nacional nas suas lutas polticas. Os trabalhadores socialistas, que nada tinham a perder a no ser seus grilhes, no assumiram uma perspectiva transnacional em nome da solidariedade de classe, e acabaram morrendo nas frentes de batalha da primeira e segunda guerras mundiais, lutando contra outros trabalhadores, seguindo apelos patriticos e nacionalistas de seus respectivos governos.
Hoje, mais do que o trabalho, quem adquiriu conscincia internacional foi o capital. Os impactos da globalizao reorientam o Estado e os interesses das elites dominantes, conferindo-lhes perspectivas no territoriais e extra-nacionais. O Estado reformula seu papel em funo de variveis econmicas exgenas, como expanso do comrcio mundial, polticas macroeconmicas e maior mobilidade internacional do capital. A mentalidade das elites dominantes se desterritorializou a tal ponto que mesmo a 'segurana' definida mais em termos da economia global do que em relao defesa da integridade territorial.
Diante desse quadro, a grande maioria da populao dos diversos Estados, marginalizada social e economicamente pela globalizao, perde interesse e energia para participar das lutas polticas internas, que percebem como secundrias, mergulhando em ividade e alienao. Ao lado dessa maioria inerte, surgem diversas vises, destacando-se, de um lado, uma minoria 'tribal' desorientada que vai servir de massa de manobra para polticas direitistas e, no outro extremo, uma minoria de militantes idealistas que oferecem resistncia globalizao dominante, propondo uma globalizao alternativa, um projeto emergente de construir uma sociedade civil global fundada no ethos da democracia cosmopolita (Archibugi & Held, 1995).
Esse projeto de construo de uma 'democracia cosmopolita' entrecortado pelas diversas identidades ligadas a gnero, raa, meio ambiente, concepes espirituais etc., associando-se, assim, aos chamados novos movimentos sociais. Nesse contexto, a cidadania clssica, definida no interior de um Estado terrritorial, afigura-se muito marginal a essa agenda normativa que expressa, de certa forma, a desterritorializao do Estado.
Cabe, portanto, destacar as diversas fontes alternativas de identidade que reemergem a partir do deslocamento parcial do Estado, ligadas a perspectivas civilizacionais, religiosas, tnicas e ecolgicas. Tais perspectivas constituiriam hoje fonte maior de identidade do que a cidadania nacional. importante ressaltar, porm, que as exacerbaes da perspectiva cultural, como a teoria do choque de civilizaes, de Samuel Huntington, e a viso ps-moderna de desintegrao multicultural, levam necessariamente ao abastardamento do conceito de cidadania, que a a ser uma categoria subordinada de identidade.
interessante ainda notar que a nova ordem mundial tende a diminuir a importncia do individualismo e da cidadania mesmo no ocidente, j que nos pases no-ocidentais esses ideais nunca adquiriram relevncia. Segundo Richard Falk:
... diferentemente da democracia, e mesmo dos direitos humanos, onde existem abundantes antecedentes no-ocidentais numa variedade de formas culturais, a noo de cidadania parece comparativamente especfica da civilizao ocidental e, nesse sentido, representa uma perspectiva um tanto 'provinciana' para uma investigao de identidade poltica concebida intercivilizacionalmente ou globalmente. E, mais adiante, conclui:
... o futuro da cidadania, que uma preocupao do Ocidente, nos dias de hoje, parcialmente vinculado ao declnio e mudana no papel do Estado, uma questo predileta, mas caracteristicamente abordada como matria de exclusiva preocupao intracivilizacional. (Falk, 1996, p.16)

Alm da significao cada vez mais reduzida da expanso territorial como elemento de poder e influncia, outro fator interessante a ser considerado a tendncia 'ps-herica' da guerra contempornea, cada vez mais baseada em armamento de alta tecnologia e precisando menos da contribuio humana direta. Esse novo modo 'high-tech' de geopoltica ps-herica reduz a necessidade de apelar ao cidado patriota nas operaes de segurana nacional, diminuindo o papel tradicional da cidadania na defesa da nao.
Com efeito, nas condies atuais, face s graves implicaes sociais da globalizao econmica, interessa ao Estado incentivar a desmobilizao popular, mantendo a cidadania iva e apoltica. Como ao mercado no interessa outra coisa, cabe sociedade civil, agrupada em torno do interesse pblico, a tarefa de mobilizar as energias cvicas da populao para defender, no plano nacional e transnacional, os princpios da cidadania poltica fertilizados com os ideais de democracia, diversidade cultural e sustentabilidade ambiental.
A ascenso de foras sociais transnacionais constitui um tipo novo e diferente de poltica. A idia de poltica cvica mundial significa que, enraizada nas atividades de grupos transnacionais, encontra-se um entendimento de que os Estados no detm o monoplio dos instrumentos que governam os negcios humanos e que existem formas no estatais de governana que podem ser usadas para efetuar mudanas em larga escala (Wapner, 1996).
A atividade transnacional desses atores no estatais objetiva a criao de uma globalizao alternativa, uma globalizao 'a partir de baixo' que se contrape cooptao dos governos pelas foras do mercado que conduzem a globalizao autoritria dominante 'a partir de cima' (Falk, 1995). A atuao dessas organizaes transnacionais permite discernir, com mais evidncia, o declnio da cidadania nacional e o "surgimento de elementos rudimentares de uma emergente cidadania transnacional em fase inicial de formao de uma sociedade civil global" (Falk, 1996, p.18).
Um dos principais objetivos desses atores no estatais transnacionais assegurar normas que regulem as operaes das foras transnacionais do mercado. Um dos importantes cenrios desse confronto tem sido o sistema das Naes Unidas com suas conferncias globais, onde essas associaes civis transnacionais tiveram participao.
Apesar da eficcia relativa, as conferncias da ONU sobre meio ambiente e desenvolvimento (Rio, 1992), direitos humanos (Viena, 1993), populao (Cairo, 1994), desenvolvimento social (Copenhague, 1995), mulheres (Beijing, 1995) e habitat (Istambul, 1996) representaram uma verdadeira escola de aprendizagem e luta que transformou essas associaes transnacionais de direitos humanos, ecologia, gnero, desenvolvimento etc. em atores polticos globais. Hoje, organizaes como Anistia Internacional ou Greenpeace, por exemplo, tm mais poder no cenrio internacional do que a maioria dos pases.
A atuao dessas organizaes transnacionais da sociedade civil j extrapolou o sistema das Naes Unidas. Foi por influncia dessas organizaes que as negociaes secretas na OCDE sobre o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) acabaram divulgadas na Internet e posteriormente bloqueadas. Recorde-se que o AMI estipulava que os investidores internacionais poderiam ignorar a legislao social, ambiental ou trabalhista do pas onde investissem capital, com direito a escolher o que e onde investir, sem consultar os respectivos governos, e podendo recorrer a um tribunal internacional de comrcio por cima dos Estados nacionais.
Apesar do abalo que vem sofrendo a cidadania pelo declnio do Estado territorial e da soberania nacional, a atuao transnacional da cidadania na salvaguarda da democracia e dos direitos humanos, bem como na luta pelo desenvolvimento sustentvel e pela diversidade cultural, justifica alguma esperana em relao ao futuro.
Por outro lado, no se pode esquecer que, em situaes de crescente competio pelo emprego, agrava-se a rivalidade entre cidados e residentes no-cidados, negando-se a estes ltimos proteo social e pleno o aos servios pblicos. Assim, a no ser que, desvinculada da nacionalidade, a cidadania se estenda aos estrangeiros residentes, ela poder ser invocada como pretexto para penalizar os setores mais vulnerveis da sociedade.
O declnio da territorialidade como fundamento da identidade poltica, a perda por parte do Estado do monoplio da esfera pblica e o impacto da globalizao econmica sem uma contrapartida ideolgica ou poltica adequada deslocam a nfase do espao para o tempo, reforando a busca de alternativas de carter normativo, como, por exemplo, a regulao do mercado global e a constituio de uma esfera pblica transnacional.
Tudo indica que a construo do futuro tende a transformar a cidadania nacional, surgida com os Estados territoriais modernos do Ocidente, em foras sociais transnacionais, abrindo caminho para a criao de uma sociedade civil global emergente.
5. Paz Perptua, Cidadania Global e Democracia Cosmopolita
A perspectiva tradicional de cidadania, ancorada no Estado territorial, afirma que a cidadania perde seu sentido se desvinculada da territorialidade e soberania nacional. Nessa perspectiva, ser cidado ter direitos e deveres concretos em relao a um Estado soberano especfico, e no direitos ou deveres abstratos em relao humanidade. Os cidados tm direitos como membros de um Estado soberano que os estrangeiros no possuem nem tm direito a reivindicar. Cidadania global seria apenas uma expresso moral.
A idia de que cidadania global teria apenas uma fora moral originria da Paz Perptua de Kant, com seu apelo solidariedade em relao aos estrangeiros. Mas, na realidade, o ius cosmopoliticum envolve mais do que a compaixo em relao a estrangeiros, preocupando-se, ainda que de forma incipiente, com estruturas universais de comunicao. Segundo Kant:
O processo pelo qual todos os povos da terra estabeleceram uma comunidade universal chegou a um ponto em que a violao de direitos em uma parte do mundo sentida em toda a parte; isto significa que a idia de um direito cosmopolita no mais uma idia fantstica ou extravagante. um complemento necessrio ao direito civil e internacional, transformando-o em direito pblico da humanidade (ou direitos humanos [Menschenrechte]); apenas sob esta condio (a saber, a existncia de uma esfera pblica global em funcionamento) podemos nos gabar de estarmos continuamente avanando em direo paz perptua. (Kant apud Habermas, 1997, p.124; Kant, 1992, p.140)
Os tericos do direito natural nos sculos XVII e XVIII haviam adotado uma perspectiva estatista no que se refere cidadania. Os cidados s assumiriam direitos e deveres legais perfeitos dentro dos limites territoriais de um Estado soberano. Contra essa viso insurgiu-se outra, inspirada em Kant, afirmando que os indivduos tm obrigaes ticas com o resto da humanidade que podem sobrepujar suas obrigaes com seus compatriotas. A nfase aqui mais no aspecto moral do que no aspecto poltico da comunidade.
A teoria kantiana de relaes internacionais esclarecedora porque adota nitidamente a viso de que a cidadania mundial requer que cidados de Estados diferentes desenvolvam uma preocupao moral mais profunda com os seres humanos, onde quer que se encontrem, e que os chefes de Estado se tratem como iguais numa esfera pblica mundial.
A viso kantiana uma espcie de preldio a uma terceira perspectiva de cidadania global. Seus comentrios na Paz Perptua sobre a crescente preocupao com violao de direitos humanos, em qualquer parte do mundo, mostra que Kant:
... identificou o fenmeno de uma esfera pblica mundial, que hoje est se tornando realidade pela primeira vez com as novas relaes de comunicao global. (Habermas, 1995b, p.279)
Esta terceira perspectiva julga que moralmente desejvel e politicamente possvel desvincular cidadania do Estado, assim como a cidadania destacou-se da cidade e fundiu-se com a noo moderna de soberania territorial no sculo XVII. Trata-se aqui de desenvolver comunidades de comunicao onde os vulnerveis podem contestar a forma como so tratados. Esta abordagem dialgica de cidadania global requer a criao de direitos e deveres transnacionais concretos.
Esta viso freqentemente acusada de utpica, por no existir hoje nenhuma outra comunidade poltica, alm do Estado, para defender os direitos do cidado. Uma questo controvertida saber se a Unio Europia vai superar essa objeo, inaugurando nova fase no desenvolvimento da cidadania. Em 1992, o Tratado de Maastricht e seu artigo oitavo, que dispe sobre os direitos do cidado europeu, pouco fez para ultraar a soberania dos Estados membros. O Tratado no prope uma cidadania transnacional com poder para eleger os membros da Comisso Europia, gerando um 'dficit democrtico' na integrao europia ao no estimular com vigor a formao de uma cidadania europia ativa (Preuss, 1995).
Hoje, algumas indicaes mostram uma tendncia superao deste dficit democrtico. Diversas propostas propugnam a criao de novos centros de poder poltico nos nveis subnacional e transnacional. Tais propostas vo desde sistemas polticos que suplementem, embora no suplantem, o Estado-Nao, am por dispositivos polticos ps-nacionais que no concentrem os poderes monopolistas do Estado nem tentem substitu-lo como o nico lugar da lealdade poltica, indo at a criao de mltiplos lugares de responsabilidade poltica que reconhecem que as lealdades humanas, alm de nacionais, so crescentemente subestatais e transnacionais (Held, 1995a).
Afastando-se da viso estatista tradicional, que entende estar a cidadania indissoluvelmente ligada ao Estado-Nao, bem como da viso kantiana clssica, com seu apelo solidariedade com os estrangeiros, a perspectiva da democracia cosmopolita afirma que direitos e deveres concretos podem estar enraizados em dispositivos polticos transnacionais complexos, como a Unio Europia, por exemplo.
Na viso da democracia cosmopolita, o apelo kantiano para que os indivduos se definam como cosmopolitas, alm de cidados nacionais, pode ter efeito importante no modo de vida,
... mas a finalidade a longo prazo de tais apelos cidadania global o desenvolvimento de novas formas de comunidade poltica em que cidados e estrangeiros se igualem como co-legisladores em uma esfera pblica mais ampla. (Linklater, 1998, p.29)
Este enfoque dialgico de cidadania global afirma que a capacidade de o Estado moderno proteger o direito do cidado foi destruda pelo atual processo de globalizao. Hoje, as conquistas da cidadania nacional podem apenas ser asseguradas mediante o desenvolvimento de formas polticas transnacionais.
Neste sentido, Habermas entende que a tenso entre a noo poltica de cidadania e a noo histrico-cultural de nao
... s pode ser superada com a condio de os princpios constitucionais de direitos humanos e democracia atriburem prioridade a uma compreenso cosmopolita da nao como uma nao de cidados, por cima e contra uma interpretao etnocntrica da nao como entidade pr-poltica. (Habermas, 1996, p.287)
E, mais adiante, "devemos tentar salvar a herana republicana transcendendo os limites do Estado-Nao" (Habermas, 1996, p.293).
Por outro lado, David Held (1995a) aponta trs razes para a criao de um novo nvel de direitos e deveres ligados a uma cidadania transnacional. A primeira se refere s condies atuais de complexa interdependncia, que impossibilita aos cidados o controle de suas vidas individuais e coletivas confiando apenas nos dispositivos democrticos nacionais.
A segunda diz respeito ao fato de as organizaes internacionais, criadas para istrar um mundo mais interdependente, apresentarem um dficit democrtico, pois suas decises no requerem aprovao popular. Para a teoria da democracia cosmopolita, s o desenvolvimento de uma cidadania transnacional pode assegurar o controle popular das organizaes internacionais. E a terceira assinala o fato de o Estado soberano no poder mais reivindicar ser a nica comunidade moral relevante, quando a incidncia de fenmenos transnacionais nocivos continua a intensificar-se juntamente com a crescente interdependncia.
A perspectiva da democracia cosmopolita prope, assim, que a cidadania seja desvinculada do Estado soberano e investida em novas estruturas de cooperao internacional. O problema no reconstituir o poder soberano em um domnio territorial mais amplo, mas promover mltiplos lugares de responsabilidade poltica representando fidelidades subestatais e transnacionais, alm de nacionais. Os cidados poderiam assim exercer direitos polticos e expressar diferentes lealdades polticas em diversas esferas pblicas (Linklater, 1998).
importante assinalar que uma forma mais solidria de sociedade internacional poder emergir com a crescente influncia das organizaes no governamentais dentro das Naes Unidas (Vieira, 1997). No apenas os Estados, mas uma srie de atores no estatais tendem a participar na criao dessa esfera pblica mundial, onde as normas internacionais no refletiro apenas os interesses das grandes potncias e das corporaes transnacionais dominantes (Habermas, 1996, 1997).
Trata-se aqui de uma dissoluo parcial da sociedade internacional de Estados numa esfera pblica mundial mais ampla, governada pelo dilogo e consentimento - e no pela fora - onde tero participao as organizaes da sociedade civil voltadas defesa do interesse pblico, da democracia, da sustentabilidade ambiental e da diversidade cultural. Segundo James Bohman, para quem "esferas pblicas cosmopolitas j existem",
... o problema da soberania democrtica pode ser resolvido por atores coletivos internacionais emergindo da sociedade civil e ganhando a ateno do pblico cosmopolita" (Bohman, 1997, p.198).
A construo dessa emergente esfera pblica transnacional possibilitaria avanar na universalizao dos direitos individuais e polticos, na reduo das desigualdades econmicas e na garantia de sobrevivncia de diferenas culturais. A cesso de parte da soberania nacional a estruturas democrticas transnacionais permitiria a construo de diversas 'comunidades de discurso' e a reduo de formas injustas de excluso, assegurando-se, assim, que a governana global se fundamente no consentimento de uma proporo crescente da humanidade (Linklater, 1998).
Essa perspectiva dialgica de cidadania global e esfera pblica transnacional geralmente acusada de utpica, por se basear em esferas mais amplas que o Estado-Nao. Mas as conquistas da cidadania nacional, se encerradas apenas dentro do territrio do Estado soberano, esto ameaadas pelo crescente enfraquecimento do Estado nacional acarretado pelo processo de globalizao em curso. Segundo Habermas, o que j significou, certa vez, a idia de soberania popular est condenada a decair em pura quimera se permanecer encerrada na forma histrica do Estado-Nao soberano (Habermas, 1994).
A sobrevivncia da cidadania nacional requer, assim, a criao de formas ps-nacionais de organizao poltica, como as que comeam a ser criadas na Unio Europia. A construo de uma cidadania global, como vimos, envolve muito mais do que caridade ou compaixo, apontando para a igualdade de todos os seres humanos como co-legisladores de uma esfera pblica transnacional. Ao propor a construo dessa comunidade universal de comunicao, a cidadania cosmopolita situa-se no plano de uma aposta normativa.
Para Habermas, apenas a cidadania democrtica pode abrir caminho construo de uma cidadania global aberta a formas mundiais de comunicao poltica. Segundo ele, Kant identificou uma esfera pblica mundial que hoje, pela primeira vez, comea a tornar-se uma realidade poltica com as novas relaes de comunicao global.
O advento da cidadania mundial no mais mera fantasia, embora ainda estejamos longe de alcan-la. A cidadania estatal e a cidadania mundial formam um continuum cujos contornos, pelo menos, j se tornam visveis. (Habermas, 1995a, p.279)
No se trata, evidentemente, de romantizar a sociedade civil global emergente, que est longe de ser perfeita. Em alguns contextos, foras sociais liberadas manifestam tendncias religiosas e polticas regressivas, como nos diversos casos de repulsa fascista aos estrangeiros, especialmente refugiados, de apoio de importantes parcelas da sociedade pena de morte e de limitaes rgidas aos direitos reprodutivos das mulheres. Mas, para impedir uma globalizao catastrfica, o principal caminho ser a resistncia e a perspectiva da sociedade civil global embrionria (Falk, 1994b).
A chamada 'poltica cvica mundial' (Wapner, 1996) no resposta nica aos problemas globais; no existe resposta nica. Ela representa, entretanto, uma contribuio fundamental aos esforos para assegurar a democracia poltica, o desenvolvimento social, a proteo ambiental e a diversidade cultural, nos nveis local, nacional e global.
A tendncia anrquica da globalizao econmica no uma fatalidade histrica. A histria no tem leis. Contra essa globalizao autoritria, ope-se a ao poltica das foras democrticas que, em todo o mundo, exigem novos acordos internacionais que coloquem as necessidades dos povos, das economias locais e do meio ambiente acima dos interesses das corporaes multinacionais.
Segundo Habermas, a ao da sociedade civil global no ter certamente efeitos imediatos nos governos das grandes potncias.
O que, entretanto, obtemos desse panorama uma conscincia mais aguda dos riscos globais, de cujo impacto quase ningum escapar, se essas tendncias globais no forem bloqueadas e revertidas. Em vista das inmeras foras de desintegrao, dentro e alm das sociedades nacionais, existe este fato que aponta na direo oposta: do ponto de vista de um observador, todas as sociedades j so parte e parcela de uma comunidade de riscos partilhados percebidos como desafios para a ao poltica cooperativa. (Habermas, 1996, p.294).
A sociedade de riscos no uma opo a ser escolhida ou rejeitada no calor das lutas polticas:
Ela surge na continuidade dos processos de modernizao autnoma, que so cegos e surdos a seus prprio efeitos e ameaas. De maneira cumulativa e latente, estes ltimos produzem ameaas () que questionam e finalmente destroem as bases da sociedade industrial. (Giddens, Beck & Lash, 1994, p.16)
sob o signo da incerteza, que marca o nosso tempo 'ps-moderno' ou 'ps-nacional', que os cidados do mundo se deparam com os riscos da nova ordem internacional, esgrimindo, em nome do interesse pblico, os valores da democracia e da sustentabilidade, agrupados em torno a uma sociedade civil global emergente e operando em um nascente espao pblico transnacional, onde enfrentam as foras dominantes do Estado e do mercado. Do resultado deste embate, depende o destino da democracia, a sustentabilidade do planeta e a sorte de seus habitantes.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

Archibugi, Daniele & Held, David. Cosmopolitan Democracy - An Agenda for a New
World Order. Cambridge, Polity Press, 1995.

Bohman, James. "The Public Spheres of the World Citizen", in: J. Bohmam. & M. Lutz-
Bachmann (orgs.), Perpetual Peace: Essays on Kant's Cosmopolitan Ideal, Cambridge, The MIT Press, 1997.

Costa, Sergio. "Categoria Analtica ou e-Partout Poltico-Normativo: Notas Bibliogrficas sobre o Conceito de Sociedade Civil". BIB, n.43, 1997.

Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1992.

Falk, Richard. "Democratizing, Internationalizing, and Globalizing", in: Yoshikazu

Sakamoto (org.), Global Transformation: Challenge to the State System, Tokio, United Nations University Press, 1994b.
"The World Order between the Inter-State Law and the Law of Humanity: the Role of Civil Society Institutions", in: Archibugi & Held (orgs.),

Cosmopolitan Democracy An Agenda for a New World Order, Cambridge,
Polity Press, 1995.
---------. The Decline of Citizenship in an Era of Globalization. Mimeo. Trabalho
apresentado na Conferncia Internacional sobre Globalizao e Cidadania, Naes Unidas, Genebra, 1996.
Giddens, A., Beck, U. & Lash, S. Modernizao Reflexiva - Poltica, Tradio e Esttica
na Ordem Social Moderna. So Paulo, Ed. UNESP, 1994.
Habermas, Jrgen. The Past as Future. Cambridge, Polity Press, 1994.
---------. "O Estado-nao europeu frente aos desafios da globalizao", Novos Estudos
(So Paulo), n.43., nov./1995a.
---------. "Citizenship and National Identity: Some Reflections on the Future of
Europe", in: Ronald Beiner (org.), Theorizing Citizenship, New York, State
University of New York Press, 1995b

---------. "The European Nation-State - Its Achievements and Its Limits. On the Past
and Future of Sovereignty and Citizenship", in: G. Balakrishnan (org.),
Mapping the Nation, Londres, Verso, 1996.
---------. "Uma Conversa Sobre Questes da Teoria Poltica". Novos Estudos (So
Paulo), n 47, 1997.
Held, David. Democracy and the Global Order - From the Modern State to Cosmopolitan
Governance. Stanford, Stanford University Press, 1995a.
--------. "Democracy and the New International Order", in: D.Archibugi & D. Held (orgs.), Cosmopolitan Democracy, Cambridge, Polity Press, 1995b.
Kant, Immanuel. A Paz Perptua e Outros Opsculos. Lisboa, Edies 70, 1992.
Kymlicka, Will. Multicultural Citizenship: A Liberal Theory of Minority Rights. Oxford,
Claredon Press, 1995.
--------- & Norman, Wayne. "Return of the Citizen: A Survey of Recent Work on
Citizenship Theory", in: R. Beiner (org.), Theorizing Citizenship, State
University of New York Press, 1995.
Linklater, Andrew. "Cosmopolitan Citizenship". Citizenship Studies, vol. 2, n.1, fev.
1998.
Preuss, Ulrich. "Problems of a Concept of European Citizenship". European Law Journal,
vol. 1, n. 3, 1995.
Schnapper, Dominique. "Comment Penser la Citoyennet Moderne?". Philosophie
Politique, vol. 8. La Nation. Paris, Presses Universitaires de , 1997.
Taylor, Charles. "The Politics of Recognition", in: Multiculturalism. Princeton, Princeton
University Press, 1994.
Triadafilopoulos, Triadafilos. "Culture vs. Citizenship? A Review and Critique of Will Kymlicka's Multicultural Citizenship". Citizenship Studies, vol. 1, n.2, 1997.
Turner, Bryan. "Outline of a Theory of Citizenship". Sociology .The Journal of the British
Sociological Association, vol. 24, n.2, 1990.
--------- Citizenship and Social Theory. Londres, Sage, 1994.
Vieira, Liszt. Cidadania e Globalizao. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1997.
Wapner, Paul. Environmental Activism and World Civic Politics. New York, State
University of New York Press, 1996.


DADOS - REVISTA DE CIENCIAS SOCIAIS - VOL 42 N 3 - 1999


Cidado do Mundo
ngls por Nascimento
Cidado Francs por Decreto
Americano por Adoo

[inscrio na esttua de
THOMAS PAINE (1737-1809)
em Paris]

Desde 1995 dhnet-br.diariodetocantins.com Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: [email protected] Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Not
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
Hist
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Mem
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multim