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CIDADANIA
GLOBAL E ESTADO NACIONAL
1. A Atualidade da Cidadania
H um renovado interesse pela cidadania nos anos 90. O conceito
de cidadania parece integrar noes centrais da filosofia poltica,
como os reclamos de justia e participao poltica. Cidadania
vincula-se intimamente idia de direitos individuais e de
pertena a uma comunidade particular, colocando-se, portanto, no
corao do debate contemporneo entre liberais e comunitaristas.
Os inmeros trabalhos tericos sobre cidadania nesta dcada
parecem apontar na direo de uma teoria da cidadania. Segundo
Will Kymlicka, haveria, porm, dois grandes obstculos a esta
pretenso.
O primeiro seria o mbito potencialmente ilimitado de uma teoria
da cidadania, que poderia abranger qualquer problema envolvendo
relaes entre o cidado e o Estado. O segundo seria a
dualidade existente no interior do conceito de cidadania, ou
melhor, duas concepes distintas coexistindo na noo de
cidadania.
Existiria uma concepo 'fina' de cidadania como status legal,
isto , cidado como membro pleno de uma comunidade poltica
particular. E, de outro lado, uma concepo 'espessa' de
cidadania como escopo, como atividade desejvel, onde a extenso
e a qualidade da cidadania seriam funo da participao do
cidado naquela comunidade (Kymlicka &Norman, 1995).
No existe, at hoje, nenhuma teoria da cidadania, mas
importantes contribuies tericas j foram dadas a respeito
da tenso entre os diversos elementos que compem o conceito de
cidadania, esclarecendo melhor as razes de sua atualidade neste
final de sculo. Duas grandes interpretaes contraditrias se
enfrentam na conceptualizao de cidadania.
Na primeira, o papel de cidado visto de forma individualista
e instrumental, segundo a tradio liberal iniciada com Locke.
Os indivduos so vistos como pessoas privadas, externos ao
Estado, e seus interesses so pr-polticos. Na segunda,
prevalece uma concepo comunitarista oriunda da tradio de
filosofia poltica proveniente de Aristteles. Temos aqui uma
cidadania ativa, e no mais iva como no primeiro caso. Os
indivduos esto integrados numa comunidade poltica e sua
identidade pessoal funo das tradies e instituies
comuns.
Segundo Charles Taylor, trata-se de dois modelos de cidadania. O
primeiro baseado nos direitos individuais e no tratamento igual. O
segundo define a participao no governo como essncia da
liberdade, como componente essencial da cidadania (Taylor, apud
Habermas, 1995b).
Em formulao semelhante, Bryan Turner (1990) constata a existncia
de uma cidadania iva, a partir 'de cima', via Estado, e uma
cidadania ativa, a partir 'de baixo'. Haveria, assim, uma
cidadania conservadora - iva e privada - e uma outra
revolucionria - ativa e pblica.
No que diz respeito relao problemtica entre cidadania e
identidade nacional, ela foi influenciada, segundo Habermas, por
trs acontecimentos histricos recentes.
Primeiro, a questo do futuro do Estado-Nao tornou-se
inesperadamente atual aps a unificao alem, a liberao
dos Estados da Europa Centro-Oriental e os conflitos de
nacionalidade irrompendo em toda a Europa oriental. Segundo, a
formao histrica da Unio Europia ajuda a esclarecer as
relaes entre Estado-Nao e democracia, pois os processos
democrticos que se desenvolveram juntamente com o Estado-Nao
ficam aqum da forma supranacional assumida pela integrao
europia. E, terceiro, os fluxos migratrios das regies pobres
do sul e leste europeu assumem cada vez mais relevncia urgente e
significativa. Essas migraes exacerbam os conflitos entre os
princpios universais das democracias constitucionais e as
reivindicaes particulares das comunidades para preservar a
integridade de seus estilos habituais de vida (Habermas, 1995a).
A sbita ampliao de regimes democrtico-liberais
desencadeada pelo colapso do comunismo sovitico e pelo fim da
Guerra Fria tem provocado, em algumas regies, efeitos
paradoxais: em certos pases, ela permitiu (s vezes pela
primeira vez) a participao eleitoral e a emergncia de novas
e mltiplas associaes voluntrias que ampliaram e
aprofundaram a cidadania democrtica, enquanto em outros surgiram
graves contradies internas, em precrios Estados-nao,
dando lugar a conflitos tnicos, divises territoriais, guerra
civis, genocdio (Held, 1995b).
Em decorrncia, vemos que a relao, j de si contraditria,
entre cidadania e Estado-Nao a a ser entrecortada pela
relao, igualmente contraditria, entre cidadania e
multiculturalismo.
De um lado, a cidadania nacional vem sendo ameaada pelas presses
globais e tambm, em contrapartida, por presses locais. O
nacionalismo a forma assumida por uma reao tpica a
sentimentos de identidade ameaada; e nada ameaa mais a
identidade nacional do que o processo de globalizao. O
nacionalismo 'aglutinador' de outrora parece substitudo hoje por
um nacionalismo 'separatista'. Os Tchecos e os Eslovacos
constituem um exemplo pacfico dessa tendncia, que chegou a
guerras sangrentas entre servos, croatas e bsnios na antiga
Iugoslvia e, mais recentemente, entre servos e kosovares.
Quando, no dizer de Habermas, a idia de 'nao do povo', ao
longo do sculo XIX, arrebatou a imaginao das massas, ela
produziu efeitos diferenciados. Converteu-se em motor das lutas de
democratizao, produzindo gradualmente e por intermdio de
distintas estratgias de incorporao, a agem do status de
sdito para o de cidado e a generalizao da participao
poltica (Bobbio, 1992; Turner, 1994).
No mesmo movimento, a poltica democrtica nacionaliza-se.
Intercambivel com o termo 'povo', o termo 'nao' a a ser
portador ambguo do republicanismo e do nacionalismo, dois
componentes que operam juntos, embora com sentidos diferentes. Um
primeiro sentido de carter legal e poltico - a nao de
cidados, legalmente capacitados para exercer seus direitos e
obrigaes, que proporciona a legitimao democrtica. Um
outro sentido tem carter pr-poltico - a nao herdada ou
atribuda, moldada pela origem, cultura, histria, lngua
comum, que facilita a integrao social (Habermas, 1995a).
O conceito poltico de nao absorveu conotaes de seu
conceito gmeo mais antigo, pr-poltico, levando a
preconceitos estereotipados.
O novo auto-entendimento como nao foi com freqncia
empregado para hostilizar todas as coisas estrangeiras, para
menosprezar as demais naes e para discriminar ou excluir
minorias nacionais, tnicas ou religiosas, especialmente os
judeus. (Habermas, 1995a, p.90)
Assim, da
ambigidade do termo 'nao' pode surgir - como aconteceu na
histria europia dos sculos XIX e XX - uma ameaa perigosa
para o componente republicano do Estado Nacional, quando este, em
lugar de respaldar a democratizao do sistema poltico, reduz
a fora integrativa da nao sua noo pr-poltica e a
manipula.
Conforme assinalou Habermas, existe - inscrita no
auto-entendimento do Estado-Nao - uma tenso entre o
universalismo de uma comunidade legal igualitria e o
particularismo de uma comunidade cultural a que se pertence por
origem e destino. Essa tenso
...pode ser resolvida desde que os princpios constitucionais dos
direitos humanos e da democracia priorizem um entendimento
cosmopolita da nao como uma nao de cidados, em
detrimento de uma interpretao etnocntrica da nao como
uma entidade pr-poltica. (Habermas,1995a, p.94)
Por outro lado, a coexistncia, num mesmo territrio nacional,
de diversos grupos tnicos com culturas e religies diferentes,
questiona a tradicional viso liberal de igualdade que sempre
ignorou as diferenas socioeconmicas e culturais existentes na
populao. Segundo Sergio Costa:
... o multiculturalismo a expresso da afirmao e da luta
pelo reconhecimento desta pluralidade de valores e diversidade
cultural no arcabouo institucional do Estado democrtico de
direito, mediante o reconhecimento dos direitos bsicos dos indivduos
enquanto seres humanos e o reconhecimento das 'necessidades
particulares' dos indivduos enquanto membros de grupos culturais
especficos. (Costa, 1997, p.159)
Descortinam-se, aqui, trs perspectivas diferentes. Em primeiro
lugar, a viso liberal (John Rawls, Ronald Dworkin, Bruce
Ackerman), enfatizando o indivduo que, acima do grupo e da
identidade coletiva, sempre capaz de redefinir seus prprios
fins. A racionalidade e a formao da identidade se do aqui
independentemente da cultura e da sociedade, so anteriores
vida social. A nosso ver, a viso liberal mais sofisticada sobre
cidadania a abordagem de Will Kymlicka que chega por vezes a
aproximar-se da viso comunitarista (Kymlicka, 1995) .
A viso comunitarista (Charles Taylor, Michael Walzer), ao contrrio,
enfatiza a cultura e o grupo social que conferem identidade aos
indivduos 'atomizados' pelas tendncias desenraizadoras da
sociedade liberal. O indivduo no anterior sociedade,
construdo por fins que no escolhe, mas que descobre em funo
de sua vida em contextos culturais compartilhados na sociedade.
Aqui, com nfases variadas segundo cada autor, destacam-se os
aspectos culturais e polticos da comunidade como elementos
centrais na organizao do 'self' individual.
Uma terceira perspectiva refere-se concepo de Habermas,
chamada de 'discursiva' ou 'deliberativa'. A comunidade poltica,
para os liberais, instrumental em relao aos esforos dos
indivduos em dar sentido a suas vidas. Para os comunitaristas,
instrumental em relao aos esforos das comunidades para
elaborar uma identidade coletiva. Nesta terceira perspectiva, a
comunidade poltica um bem em si mesmo, irredutvel aos propsitos
individuais ou s metas comunitrias.
O modelo liberal de contrato entre participantes de um mercado
substitudo pela busca do consenso, pelo dilogo, entre
participantes de uma ao comunicativa intersubjetiva. Contra os
liberais, Habermas apoia os comunitaristas no sentido de que o
reconhecimento das diferenas culturais deve ser uma questo poltica.
Mas se afasta dos comunitaristas porque, no dizer de Sergio Costa
(1997, p.169) "... no deseja promover a vinculao
incondicional das pessoas s prticas que se quer defender ou
preservar". A reflexo poltica como processo de argumentao
pblica , assim, necessria para evitar a perpetuao acrtica
de prticas e necessidades tornadas anacrnicas, na perspectiva
de um grupo sociocultural determinado (Costa, 1997).
Esta terceira perspectiva, de carter procedimental, critica os
liberais por enfatizarem a dimenso individual e rejeitarem a
solidariedade social, e os comunitaristas por apresentarem uma noo
limitada de comunidade, excessivamente dependente dos laos tnicos
e culturais.
Assim, ultraando a viso liberal de comunidade poltica a
servio da identidade individual, bem como a viso comunitarista
de comunidade poltica a servio da identidade comunal, chegaramos
a uma concepo de comunidade poltica como expresso
republicana de uma identidade 'cvica', onde a participao poltica
nos negcios pblicos elemento central na conceituao de
cidadania.
2. Cidadania e Nacionalidade
A cidadania nacional vem sendo abalada pela formao de instituies
supranacionais, como o caso da Unio Europia, bem como pela
irrupo de identidades infra-nacionais, que assumem a forma de
movimentos reivindicatrios ou separatistas.
Alm disso, a importncia crescente da dimenso econmica e
social na vida moderna vem enfraquecendo os laos polticos da
cidadania. Os interesses econmicos materiais predominam, em
muitos casos, sobre os direitos e deveres cvicos do cidado.
O Estado-Nao democrtico clssico, moldado nos princpios
das revolues americana e sa no sculo XVIII, funda sua
legitimidade sobre a idia de cidadania. Todos os cidados tm
os mesmos direitos e deveres, independentemente de raa, religio,
grupo tnico, sexo, regio de origem, condio social etc.
O projeto democrtico universal, porque se destina a todos, e
pode ser adotado por qualquer sociedade. A liberdade e a
igualdade, valores fundadores da democracia moderna, possuem uma
dimenso universal consagrada no princpio da cidadania. Mas a
cidadania no uma essncia, uma construo histrica.
Ela est intimamente ligada s lutas pela conquista dos direitos
do cidado moderno.
Mas, como vimos, a vinculao entre cidadania e Estado-Nao
comea a enfraquecer-se. O Estado no tem mais o monoplio das
normas, pois h regras internacionais que ele deve partilhar com
a comunidade internacional. E perde fora com o avano da
globalizao. O Estado-Nao pode deixar de ser o lar da
cidadania.
Alm da identidade cvica, h outras identidades no territrio
nacional. Se o Estado-Nao no mais a identidade poltica
bsica, os direitos individuais ficam desguarnecidos sem
adquirirem proteo adequada no plano internacional, como nos
mostraram os trgicos exemplos de Bsnia e Kosovo.
No se pode esquecer, porm, que o enfraquecimento do Estado-Nao
se refere principalmente sua funo de elaborar e decidir polticas
bem como sua capacidade autnoma de elaborar projetos polticos
nacionais. Mas o Estado-Nao ainda a principal arena poltica,
o principal ator poltico no cenrio internacional. ar do
nacional para a comunidade internacional perder fora na
defesa dos direitos, na medida em que no existe - pelo menos
ainda - uma estrutura institucional internacional com fora
suficiente para garantir a defesa dos direitos humanos.
Mas as instituies supranacionais comeam a se desenvolver com
rapidez surpreendente. O melhor exemplo sem dvida a Unio
Europia. Normalmente, os tratados internacionais, para vigorarem
no interior de cada Estado-Nao, necessitam ser transformados
em leis pelos respectivos parlamentos. No caso europeu, eles tm
efeitos diretos nos Estados membros, sem necessidade de transformao
em leis nacionais.
Se diferentes leis colidem, a lei europia tem prioridade sobre a
lei nacional, de acordo com o Tratado de Maastricht. Mas a construo
democrtica da integrao europia enfrenta dificuldades.
Trata-se sobretudo do chamado 'dficit democrtico', que pode
ser resumido no fato de "os cidados no disporem de meios
efetivos de debater as decises europias e influenciar os
processos de tomada de deciso" (Habermas, 1995b, p.267).
Duas posies se chocam na proposta de superao desse dficit
democrtico. A primeira busca fortalecer a competncia do
Parlamento Europeu, para lhe dar a autoridade tradicional dos
parlamentos nacionais, como meio de se atingir a democracia no
plano supranacional. A segunda posio afirma que isto no
possvel, pois no existe um 'demos' europeu, uma esfera pblica
comum, uma lngua comum. Seria um poder sem base social e
cultural, pois o 'demos' nacional que seria a base legtima
para fortalecer a influncia dos parlamentos nacionais nas decises
dos rgos executivos europeus.
Este debate tem implicaes importantes para a cidadania. A
identidade supranacional uma segunda identidade. A cidadania
europia, por exemplo, no substituir a identidade nacional.
Trata-se, na realidade, de um status adicional, uma segunda camada
acrescentada cidadania nacional.
Com o enfraquecimento progressivo do Estado-Nao, porm, o
indivduo a a ter vrias identidades, nacional,
profissional, tnico-religiosa, e tambm supranacional. O
Tratado de Maastricht, de 1992, consagra uma idia que desconecta
a cidadania da nacionalidade. Esta desconexo ainda simblica,
mas extremamente significativa.
Recordemos que o princpio das nacionalidades, tal como se
desenvolveu nos sculos XVIII e XIX, remodelou o conceito de
cidadania. A soberania atributo da nao, do povo, e no do
prncipe. A nao precede a cidadania, pois no quadro da
comunidade nacional que os direitos cvicos podem ser exercidos.
A cidadania fica, assim, limitada ao espao territorial de uma nao,
contrariando a esperana generosa dos filsofos do Iluminismo
que haviam imaginado uma repblica universal.
Tradicionalmente, somente so cidados os nacionais de
determinado pas. A cidadania vista como relao de filiao,
de sangue, entre os membros de uma nao. Esta viso
nacionalista exclui os imigrantes e estrangeiros dos benefcios
da cidadania. De outro lado, temos a viso republicana, segundo a
qual a cidadania est fundada no na filiao, mas no
contrato. Seria inaceitvel restringir a cidadania a determinaes
de ordem biolgica. A Revoluo sa, numa exceo histrica,
concedeu cidadania aos estrangeiros. Como se l na inscrio de
sua esttua em Paris, Thomas Paine era cidado do mundo, ingls
por nascimento, cidado francs por decreto, americano por adoo.
No plano jurdico, h dois plos opostos de definio de
nacionalidade que determinam as condies de o a cidadania.
O jus soli um direito mais aberto que facilitou a imigrao e
a aquisio de cidadania. O jus sanguinis um direito mais
fechado, pois restringe a cidadania aos nacionais e seus
descendentes. Na Alemanha, at o fim da segunda guerra mundial,
... havia ainda finas distines entre Deutschen, cidados
descendentes de alemes, Reichsdeutschen, cidados alemes no
descendentes de alemes, e Volksdeutschen, indivduos
descendentes de alemes vivendo em outros pases. (Habermas apud
Taylor, 1994, p.145)
A dissociao entre nacionalidade e cidadania confere a esta ltima
uma dimenso puramente jurdica e poltica, afastando-a da
dimenso cultural existente em cada nao. A cidadania aria
a ter uma proteo transnacional, como os direitos humanos. Por
esta concepo, seria possvel pertencer a uma comunidade poltica
e nela ter participao, independentemente de ser ou no
nacional.
Existem duas grandes opes para os que constatam a ruptura do
elo entre cidadania e nacionalidade. A primeira declara a morte da
cidadania poltica e prope sua substituio pela 'nova
cidadania', de natureza essencialmente econmica e social. A
segunda prope a construo de uma cidadania poltica ps-nacional,
fundada sobre os princpios dos direitos humanos. Trata-se de um
debate ao mesmo tempo cientfico e poltico (Schnapper, 1997).
3. A Cidadania Poltica Ps-nacional
A constatao de que a comunidade sociopoltica no se deduz
historicamente da participao econmica e social, e de que a
sociedade poltica no simples efeito da economia, levou os
tericos da cidadania ps-nacional a manter o conceito de
cidadania no interior de uma concepo poltica vinculada aos
direitos humanos.
A concepo de cidadania ps-nacional constata que a soberania
nacional est em processo de esvaziamento, no apenas pela criao
de instituies supranacionais, mas tambm pela multiplicidade
de filiaes e de identidades decorrente do deslocamento das
populaes. As populaes estrangeiras querem permanecer fiis
cultura e nacionalidade de origem, mas participando na
sociedade onde se instalaram. Isto se torna possvel com a
ruptura do elo entre nacionalidade enquanto comunidade cultural e
cidadania enquanto participao poltica.
Entre as diversas frmulas encontradas para viabilizar esta
concepo, destaca-se a proposta de um 'contrato de cidadania',
segundo o qual os direitos de cidadania seriam concedidos a
estrangeiros, que guardariam sua prpria cultura, mas se
comprometeriam a aderir aos valores democrticos e s legislaes
nacionais de proteo dos direitos humanos. Os estrangeiros
seriam livres de manter sua prpria cultura, desde ela que no
seja incompatvel com os princpios supranacionais de direitos
humanos.
Nessa mesma ordem de idias, destaca-se ainda a concepo de
'patriotismo constitucional', formulada por Habermas, que se
insurge contra a forma convencional de identidade nacional que une
nacionalidade e cidadania. Seria necessrio dissociar a nao -
lugar da afetividade - do Estado - lugar da lei. Separar a
identidade nacional, com sua dimenso tnico-cultural, da
participao cvica e poltica, fundada na razo e nos
direitos humanos. O patriotismo no estaria mais ligado nao
enquanto dimenso cultural e histrica particular, mas ao Estado
de direito e aos princpios polticos da cidadania.
A noo de patriotismo constitucional foi objeto de muitas crticas
por parte daqueles que no acreditam ser possvel separar a
filiao nacional da participao poltica. Os membros de uma
nao partilham uma lngua, uma cultura e valores comuns. At
que ponto uma sociedade puramente cvica, fundada em princpios
abstratos - direitos humanos, Estado de direito - poderia
controlar as paixes nascidas das filiaes tnico-religiosas?
Para esses crticos, a adeso intelectual a princpios
abstratos no poderia substituir a mobilizao poltica e
afetiva suscitada pelas tradies polticas e culturais
nacionais. Os partidrios da cidadania ps-nacional so
acusados de utpicos, por superestimarem os princpios cvicos
e subestimarem a base cultural real sobre a qual se funda a
sociedade nacional. Quem morreria pelas instituies
supranacionais?
A expresso 'patriotismo constitucional' utilizada por Habermas no
deve, entretanto, ser interpretada literalmente. No se trata
aqui do patriotismo do incio do sculo, quando os governos
europeus conclamavam seus povos a morrerem pela ptria nas
trincheiras da primeira guerra mundial. Os hinos nacionais,
compostos em geral poca da independncia ou constituio
autnoma do Estado nacional, quase sempre falam em 'morrer pela ptria'.
Hoje, em pleno processo de globalizao, os cidados no
parecem mais dispostos a morrerem pela ptria, com exceo de
algumas disputas territoriais nacionalistas que em geral ocultam
conflitos tnicos, religiosos ou ambientais.
Ao recusar a reduo do cidado a cliente, a concepo da
cidadania ps-nacional leva os cidados a se conformarem a uma
cultura mais ampla, mas esta cultura cvico-nacional, e no
tnico-nacional. Trata-se aqui de uma filiao mais poltica
do que social.
Os exemplos de sociedades multiculturais como Sua e Estados
Unidos
... demonstram que uma cultura poltica sobre a qual esto
enraizados princpios constitucionais no tem de modo algum que
estar baseada no fato de todos os cidado partilharem uma lngua
comum ou a mesma origem tnica ou cultural. Ao invs, a cultura
poltica deve servir de denominador comum para um patriotismo
constitucional que simultaneamente agua uma conscincia da
multiplicidade e integridade das diferentes formas de vida que
coexistem numa sociedade multicultural. (Habermas, 1995b, p.264)
Somente um conceito de cidadania dissociado da identidade nacional
pode possibilitar uma poltica mais ampla em relao a imigrao
e concesso de asilo. Apenas um sistema constitucional democrtico
pode assegurar a coexistncia e igualdade de diferentes modos de
vida que, entretanto, devem ajustar-se a uma cultura poltica
comum. Apenas a cidadania democrtica pode abrir caminho a uma
cidadania mundial (Habermas, 1995b).
4. O Declnio da Cidadania Nacional
As questes e categorias centrais da teoria e prtica da
democracia contempornea resultam indissociveis da figura do
Estado-Nao: o consenso e a legitimidade do poder poltico; a
base poltico-territorial do processo poltico; a
responsabilidade das decises polticas; a forma e o alcance da
participao poltica; e at o prprio papel do Estado-Nao
como garante institucional dos direitos e deveres dos cidados.
Por isso, a democracia como forma de governo e a cidadania democrtica
como meio privilegiado de integrao social na comunidade poltica
esto, inexoravelmente, 'territorializadas' em virtude de sua
vinculao histrica e terica com a figura do Estado-Nao
e, consequentemente, com a ordem internacional baseada nos princpios
e normas fixadas no Tratado de Westflia.
Ocorre, porm, que os processos em curso de globalizao esto
desafiando as fundaes e princpios polticos do Estado-Nao
e da ordem de Westflia, e, por extenso, da prpria democracia
e cidadania. O processo de globalizao econmica est
enfraquecendo os laos territoriais que ligam o indivduo e os
povos ao Estado, deslocando o locus da identidade poltica,
diminuindo a importncia das fronteiras internacionais e abalando
seriamente as bases da cidadania tradicional.
A globalizao econmica tende, assim, a produzir um declnio
na qualidade e significao da cidadania, a no ser que a idia
de filiao poltica e identidade existencial possam ser
efetivamente vinculadas a realidades transnacionais de comunidade
e participao num mundo 'ps-estatal' ou 'ps-moderno'. Para
ser bem sucedido, tal processo dever ser capaz de envolver foras
sociais e polticas ocidentais e no-ocidentais, tornando-se
significativo para um grande nmero de pessoas, em todos os nveis
da sociedade.
O declnio da cidadania est intimamente vinculado mudana
no papel do Estado. O Estado moderno, com sua perspectiva
espacial, priorizou a populao dentro de seu territrio
nacional, dotando-a de uma identidade bsica e de uma poderosa
ideologia, o nacionalismo. Aps sculos de lutas, a noo monrquica
de sdito foi substituda pelo princpio democrtico da
cidadania, baseado nos direitos e deveres do cidado.
O peso poltico da cidadania nacional tornou-se to forte que
nem a perspectiva marxista, que considerava o governo democrtico
mera expresso dos interesses das classes dominantes, conseguiu
ultraar as fronteiras do territrio nacional nas suas lutas
polticas. Os trabalhadores socialistas, que nada tinham a perder
a no ser seus grilhes, no assumiram uma perspectiva
transnacional em nome da solidariedade de classe, e acabaram
morrendo nas frentes de batalha da primeira e segunda guerras
mundiais, lutando contra outros trabalhadores, seguindo apelos
patriticos e nacionalistas de seus respectivos governos.
Hoje, mais do que o trabalho, quem adquiriu conscincia
internacional foi o capital. Os impactos da globalizao
reorientam o Estado e os interesses das elites dominantes,
conferindo-lhes perspectivas no territoriais e extra-nacionais.
O Estado reformula seu papel em funo de variveis econmicas
exgenas, como expanso do comrcio mundial, polticas
macroeconmicas e maior mobilidade internacional do capital. A
mentalidade das elites dominantes se desterritorializou a tal
ponto que mesmo a 'segurana' definida mais em termos da
economia global do que em relao defesa da integridade
territorial.
Diante desse quadro, a grande maioria da populao dos diversos
Estados, marginalizada social e economicamente pela globalizao,
perde interesse e energia para participar das lutas polticas
internas, que percebem como secundrias, mergulhando em
ividade e alienao. Ao lado dessa maioria inerte, surgem
diversas vises, destacando-se, de um lado, uma minoria 'tribal'
desorientada que vai servir de massa de manobra para polticas
direitistas e, no outro extremo, uma minoria de militantes
idealistas que oferecem resistncia globalizao dominante,
propondo uma globalizao alternativa, um projeto emergente de
construir uma sociedade civil global fundada no ethos da
democracia cosmopolita (Archibugi & Held, 1995).
Esse projeto de construo de uma 'democracia cosmopolita'
entrecortado pelas diversas identidades ligadas a gnero, raa,
meio ambiente, concepes espirituais etc., associando-se,
assim, aos chamados novos movimentos sociais. Nesse contexto, a
cidadania clssica, definida no interior de um Estado
terrritorial, afigura-se muito marginal a essa agenda normativa
que expressa, de certa forma, a desterritorializao do Estado.
Cabe, portanto, destacar as diversas fontes alternativas de
identidade que reemergem a partir do deslocamento parcial do
Estado, ligadas a perspectivas civilizacionais, religiosas, tnicas
e ecolgicas. Tais perspectivas constituiriam hoje fonte maior de
identidade do que a cidadania nacional. importante ressaltar,
porm, que as exacerbaes da perspectiva cultural, como a
teoria do choque de civilizaes, de Samuel Huntington, e a viso
ps-moderna de desintegrao multicultural, levam
necessariamente ao abastardamento do conceito de cidadania, que
a a ser uma categoria subordinada de identidade.
interessante ainda notar que a nova ordem mundial tende a
diminuir a importncia do individualismo e da cidadania mesmo no
ocidente, j que nos pases no-ocidentais esses ideais nunca
adquiriram relevncia. Segundo Richard Falk:
... diferentemente da democracia, e mesmo dos direitos humanos,
onde existem abundantes antecedentes no-ocidentais numa
variedade de formas culturais, a noo de cidadania parece
comparativamente especfica da civilizao ocidental e, nesse
sentido, representa uma perspectiva um tanto 'provinciana' para
uma investigao de identidade poltica concebida
intercivilizacionalmente ou globalmente. E, mais adiante, conclui:
... o futuro da cidadania, que uma preocupao do Ocidente,
nos dias de hoje, parcialmente vinculado ao declnio e mudana
no papel do Estado, uma questo predileta, mas
caracteristicamente abordada como matria de exclusiva preocupao
intracivilizacional. (Falk, 1996, p.16)
Alm da
significao cada vez mais reduzida da expanso territorial
como elemento de poder e influncia, outro fator interessante a
ser considerado a tendncia 'ps-herica' da guerra
contempornea, cada vez mais baseada em armamento de alta
tecnologia e precisando menos da contribuio humana direta.
Esse novo modo 'high-tech' de geopoltica ps-herica reduz a
necessidade de apelar ao cidado patriota nas operaes de
segurana nacional, diminuindo o papel tradicional da cidadania
na defesa da nao.
Com efeito, nas condies atuais, face s graves implicaes
sociais da globalizao econmica, interessa ao Estado
incentivar a desmobilizao popular, mantendo a cidadania
iva e apoltica. Como ao mercado no interessa outra coisa,
cabe sociedade civil, agrupada em torno do interesse pblico,
a tarefa de mobilizar as energias cvicas da populao para
defender, no plano nacional e transnacional, os princpios da
cidadania poltica fertilizados com os ideais de democracia,
diversidade cultural e sustentabilidade ambiental.
A ascenso de foras sociais transnacionais constitui um tipo
novo e diferente de poltica. A idia de poltica cvica
mundial significa que, enraizada nas atividades de grupos
transnacionais, encontra-se um entendimento de que os Estados no
detm o monoplio dos instrumentos que governam os negcios
humanos e que existem formas no estatais de governana que
podem ser usadas para efetuar mudanas em larga escala (Wapner,
1996).
A atividade transnacional desses atores no estatais objetiva a
criao de uma globalizao alternativa, uma globalizao 'a
partir de baixo' que se contrape cooptao dos governos
pelas foras do mercado que conduzem a globalizao autoritria
dominante 'a partir de cima' (Falk, 1995). A atuao dessas
organizaes transnacionais permite discernir, com mais evidncia,
o declnio da cidadania nacional e o "surgimento de
elementos rudimentares de uma emergente cidadania transnacional em
fase inicial de formao de uma sociedade civil global" (Falk,
1996, p.18).
Um dos principais objetivos desses atores no estatais
transnacionais assegurar normas que regulem as operaes das
foras transnacionais do mercado. Um dos importantes cenrios
desse confronto tem sido o sistema das Naes Unidas com suas
conferncias globais, onde essas associaes civis
transnacionais tiveram participao.
Apesar da eficcia relativa, as conferncias da ONU sobre meio
ambiente e desenvolvimento (Rio, 1992), direitos humanos (Viena,
1993), populao (Cairo, 1994), desenvolvimento social
(Copenhague, 1995), mulheres (Beijing, 1995) e habitat (Istambul,
1996) representaram uma verdadeira escola de aprendizagem e luta
que transformou essas associaes transnacionais de direitos
humanos, ecologia, gnero, desenvolvimento etc. em atores polticos
globais. Hoje, organizaes como Anistia Internacional ou
Greenpeace, por exemplo, tm mais poder no cenrio internacional
do que a maioria dos pases.
A atuao dessas organizaes transnacionais da sociedade
civil j extrapolou o sistema das Naes Unidas. Foi por influncia
dessas organizaes que as negociaes secretas na OCDE sobre
o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) acabaram divulgadas
na Internet e posteriormente bloqueadas. Recorde-se que o AMI
estipulava que os investidores internacionais poderiam ignorar a
legislao social, ambiental ou trabalhista do pas onde
investissem capital, com direito a escolher o que e onde investir,
sem consultar os respectivos governos, e podendo recorrer a um
tribunal internacional de comrcio por cima dos Estados
nacionais.
Apesar do abalo que vem sofrendo a cidadania pelo declnio do
Estado territorial e da soberania nacional, a atuao
transnacional da cidadania na salvaguarda da democracia e dos
direitos humanos, bem como na luta pelo desenvolvimento sustentvel
e pela diversidade cultural, justifica alguma esperana em relao
ao futuro.
Por outro lado, no se pode esquecer que, em situaes de
crescente competio pelo emprego, agrava-se a rivalidade entre
cidados e residentes no-cidados, negando-se a estes ltimos
proteo social e pleno o aos servios pblicos. Assim, a
no ser que, desvinculada da nacionalidade, a cidadania se
estenda aos estrangeiros residentes, ela poder ser invocada como
pretexto para penalizar os setores mais vulnerveis da sociedade.
O declnio da territorialidade como fundamento da identidade poltica,
a perda por parte do Estado do monoplio da esfera pblica e o
impacto da globalizao econmica sem uma contrapartida ideolgica
ou poltica adequada deslocam a nfase do espao para o tempo,
reforando a busca de alternativas de carter normativo, como,
por exemplo, a regulao do mercado global e a constituio de
uma esfera pblica transnacional.
Tudo indica que a construo do futuro tende a transformar a
cidadania nacional, surgida com os Estados territoriais modernos
do Ocidente, em foras sociais transnacionais, abrindo caminho
para a criao de uma sociedade civil global emergente.
5. Paz Perptua, Cidadania Global e Democracia Cosmopolita
A perspectiva tradicional de cidadania, ancorada no Estado
territorial, afirma que a cidadania perde seu sentido se
desvinculada da territorialidade e soberania nacional. Nessa
perspectiva, ser cidado ter direitos e deveres concretos em
relao a um Estado soberano especfico, e no direitos ou
deveres abstratos em relao humanidade. Os cidados tm
direitos como membros de um Estado soberano que os estrangeiros no
possuem nem tm direito a reivindicar. Cidadania global seria
apenas uma expresso moral.
A idia de que cidadania global teria apenas uma fora moral
originria da Paz Perptua de Kant, com seu apelo
solidariedade em relao aos estrangeiros. Mas, na realidade, o
ius cosmopoliticum envolve mais do que a compaixo em relao a
estrangeiros, preocupando-se, ainda que de forma incipiente, com
estruturas universais de comunicao. Segundo Kant:
O processo pelo qual todos os povos da terra estabeleceram uma
comunidade universal chegou a um ponto em que a violao de
direitos em uma parte do mundo sentida em toda a parte; isto
significa que a idia de um direito cosmopolita no mais uma
idia fantstica ou extravagante. um complemento necessrio
ao direito civil e internacional, transformando-o em direito pblico
da humanidade (ou direitos humanos [Menschenrechte]); apenas sob
esta condio (a saber, a existncia de uma esfera pblica
global em funcionamento) podemos nos gabar de estarmos
continuamente avanando em direo paz perptua. (Kant apud
Habermas, 1997, p.124; Kant, 1992, p.140)
Os tericos do direito natural nos sculos XVII e XVIII haviam
adotado uma perspectiva estatista no que se refere cidadania.
Os cidados s assumiriam direitos e deveres legais perfeitos
dentro dos limites territoriais de um Estado soberano. Contra essa
viso insurgiu-se outra, inspirada em Kant, afirmando que os
indivduos tm obrigaes ticas com o resto da humanidade
que podem sobrepujar suas obrigaes com seus compatriotas. A nfase
aqui mais no aspecto moral do que no aspecto poltico da
comunidade.
A teoria kantiana de relaes internacionais esclarecedora
porque adota nitidamente a viso de que a cidadania mundial
requer que cidados de Estados diferentes desenvolvam uma
preocupao moral mais profunda com os seres humanos, onde quer
que se encontrem, e que os chefes de Estado se tratem como iguais
numa esfera pblica mundial.
A viso kantiana uma espcie de preldio a uma terceira
perspectiva de cidadania global. Seus comentrios na Paz Perptua
sobre a crescente preocupao com violao de direitos
humanos, em qualquer parte do mundo, mostra que Kant:
... identificou o fenmeno de uma esfera pblica mundial, que
hoje est se tornando realidade pela primeira vez com as novas
relaes de comunicao global. (Habermas, 1995b, p.279)
Esta terceira perspectiva julga que moralmente desejvel e
politicamente possvel desvincular cidadania do Estado, assim
como a cidadania destacou-se da cidade e fundiu-se com a noo
moderna de soberania territorial no sculo XVII. Trata-se aqui de
desenvolver comunidades de comunicao onde os vulnerveis
podem contestar a forma como so tratados. Esta abordagem dialgica
de cidadania global requer a criao de direitos e deveres
transnacionais concretos.
Esta viso freqentemente acusada de utpica, por no
existir hoje nenhuma outra comunidade poltica, alm do Estado,
para defender os direitos do cidado. Uma questo controvertida
saber se a Unio Europia vai superar essa objeo,
inaugurando nova fase no desenvolvimento da cidadania. Em 1992, o
Tratado de Maastricht e seu artigo oitavo, que dispe sobre os
direitos do cidado europeu, pouco fez para ultraar a
soberania dos Estados membros. O Tratado no prope uma
cidadania transnacional com poder para eleger os membros da Comisso
Europia, gerando um 'dficit democrtico' na integrao
europia ao no estimular com vigor a formao de uma
cidadania europia ativa (Preuss, 1995).
Hoje, algumas indicaes mostram uma tendncia superao
deste dficit democrtico. Diversas propostas propugnam a criao
de novos centros de poder poltico nos nveis subnacional e
transnacional. Tais propostas vo desde sistemas polticos que
suplementem, embora no suplantem, o Estado-Nao, am por
dispositivos polticos ps-nacionais que no concentrem os
poderes monopolistas do Estado nem tentem substitu-lo como o nico
lugar da lealdade poltica, indo at a criao de mltiplos
lugares de responsabilidade poltica que reconhecem que as
lealdades humanas, alm de nacionais, so crescentemente
subestatais e transnacionais (Held, 1995a).
Afastando-se da viso estatista tradicional, que entende estar a
cidadania indissoluvelmente ligada ao Estado-Nao, bem como da
viso kantiana clssica, com seu apelo solidariedade com os
estrangeiros, a perspectiva da democracia cosmopolita afirma que
direitos e deveres concretos podem estar enraizados em
dispositivos polticos transnacionais complexos, como a Unio
Europia, por exemplo.
Na viso da democracia cosmopolita, o apelo kantiano para que os
indivduos se definam como cosmopolitas, alm de cidados
nacionais, pode ter efeito importante no modo de vida,
... mas a finalidade a longo prazo de tais apelos cidadania
global o desenvolvimento de novas formas de comunidade poltica
em que cidados e estrangeiros se igualem como co-legisladores em
uma esfera pblica mais ampla. (Linklater, 1998, p.29)
Este enfoque dialgico de cidadania global afirma que a
capacidade de o Estado moderno proteger o direito do cidado foi
destruda pelo atual processo de globalizao. Hoje, as
conquistas da cidadania nacional podem apenas ser asseguradas
mediante o desenvolvimento de formas polticas transnacionais.
Neste sentido, Habermas entende que a tenso entre a noo poltica
de cidadania e a noo histrico-cultural de nao
... s pode ser superada com a condio de os princpios
constitucionais de direitos humanos e democracia atriburem
prioridade a uma compreenso cosmopolita da nao como uma nao
de cidados, por cima e contra uma interpretao etnocntrica
da nao como entidade pr-poltica. (Habermas, 1996, p.287)
E, mais adiante, "devemos tentar salvar a herana
republicana transcendendo os limites do Estado-Nao" (Habermas,
1996, p.293).
Por outro lado, David Held (1995a) aponta trs razes para a
criao de um novo nvel de direitos e deveres ligados a uma
cidadania transnacional. A primeira se refere s condies
atuais de complexa interdependncia, que impossibilita aos cidados
o controle de suas vidas individuais e coletivas confiando apenas
nos dispositivos democrticos nacionais.
A segunda diz respeito ao fato de as organizaes
internacionais, criadas para istrar um mundo mais
interdependente, apresentarem um dficit democrtico, pois suas
decises no requerem aprovao popular. Para a teoria da
democracia cosmopolita, s o desenvolvimento de uma cidadania
transnacional pode assegurar o controle popular das organizaes
internacionais. E a terceira assinala o fato de o Estado soberano
no poder mais reivindicar ser a nica comunidade moral
relevante, quando a incidncia de fenmenos transnacionais
nocivos continua a intensificar-se juntamente com a crescente
interdependncia.
A perspectiva da democracia cosmopolita prope, assim, que a
cidadania seja desvinculada do Estado soberano e investida em
novas estruturas de cooperao internacional. O problema no
reconstituir o poder soberano em um domnio territorial mais
amplo, mas promover mltiplos lugares de responsabilidade poltica
representando fidelidades subestatais e transnacionais, alm de
nacionais. Os cidados poderiam assim exercer direitos polticos
e expressar diferentes lealdades polticas em diversas esferas pblicas
(Linklater, 1998).
importante assinalar que uma forma mais solidria de sociedade
internacional poder emergir com a crescente influncia das
organizaes no governamentais dentro das Naes Unidas
(Vieira, 1997). No apenas os Estados, mas uma srie de atores no
estatais tendem a participar na criao dessa esfera pblica
mundial, onde as normas internacionais no refletiro apenas os
interesses das grandes potncias e das corporaes
transnacionais dominantes (Habermas, 1996, 1997).
Trata-se aqui de uma dissoluo parcial da sociedade
internacional de Estados numa esfera pblica mundial mais ampla,
governada pelo dilogo e consentimento - e no pela fora -
onde tero participao as organizaes da sociedade civil
voltadas defesa do interesse pblico, da democracia, da
sustentabilidade ambiental e da diversidade cultural. Segundo
James Bohman, para quem "esferas pblicas cosmopolitas j
existem",
... o problema da soberania democrtica pode ser resolvido por
atores coletivos internacionais emergindo da sociedade civil e
ganhando a ateno do pblico cosmopolita" (Bohman, 1997,
p.198).
A construo dessa emergente esfera pblica transnacional
possibilitaria avanar na universalizao dos direitos
individuais e polticos, na reduo das desigualdades econmicas
e na garantia de sobrevivncia de diferenas culturais. A cesso
de parte da soberania nacional a estruturas democrticas
transnacionais permitiria a construo de diversas 'comunidades
de discurso' e a reduo de formas injustas de excluso,
assegurando-se, assim, que a governana global se fundamente no
consentimento de uma proporo crescente da humanidade (Linklater,
1998).
Essa perspectiva dialgica de cidadania global e esfera pblica
transnacional geralmente acusada de utpica, por se basear em
esferas mais amplas que o Estado-Nao. Mas as conquistas da
cidadania nacional, se encerradas apenas dentro do territrio do
Estado soberano, esto ameaadas pelo crescente enfraquecimento
do Estado nacional acarretado pelo processo de globalizao em
curso. Segundo Habermas, o que j significou, certa vez, a idia
de soberania popular est condenada a decair em pura quimera se
permanecer encerrada na forma histrica do Estado-Nao
soberano (Habermas, 1994).
A sobrevivncia da cidadania nacional requer, assim, a criao
de formas ps-nacionais de organizao poltica, como as que
comeam a ser criadas na Unio Europia. A construo de uma
cidadania global, como vimos, envolve muito mais do que caridade
ou compaixo, apontando para a igualdade de todos os seres
humanos como co-legisladores de uma esfera pblica transnacional.
Ao propor a construo dessa comunidade universal de comunicao,
a cidadania cosmopolita situa-se no plano de uma aposta normativa.
Para Habermas, apenas a cidadania democrtica pode abrir caminho
construo de uma cidadania global aberta a formas mundiais
de comunicao poltica. Segundo ele, Kant identificou uma
esfera pblica mundial que hoje, pela primeira vez, comea a
tornar-se uma realidade poltica com as novas relaes de
comunicao global.
O advento da cidadania mundial no mais mera fantasia, embora
ainda estejamos longe de alcan-la. A cidadania estatal e a
cidadania mundial formam um continuum cujos contornos, pelo menos,
j se tornam visveis. (Habermas, 1995a, p.279)
No se trata, evidentemente, de romantizar a sociedade civil
global emergente, que est longe de ser perfeita. Em alguns
contextos, foras sociais liberadas manifestam tendncias
religiosas e polticas regressivas, como nos diversos casos de
repulsa fascista aos estrangeiros, especialmente refugiados, de
apoio de importantes parcelas da sociedade pena de morte e de
limitaes rgidas aos direitos reprodutivos das mulheres. Mas,
para impedir uma globalizao catastrfica, o principal caminho
ser a resistncia e a perspectiva da sociedade civil global
embrionria (Falk, 1994b).
A chamada 'poltica cvica mundial' (Wapner, 1996) no
resposta nica aos problemas globais; no existe resposta nica.
Ela representa, entretanto, uma contribuio fundamental aos
esforos para assegurar a democracia poltica, o desenvolvimento
social, a proteo ambiental e a diversidade cultural, nos nveis
local, nacional e global.
A tendncia anrquica da globalizao econmica no uma
fatalidade histrica. A histria no tem leis. Contra essa
globalizao autoritria, ope-se a ao poltica das foras
democrticas que, em todo o mundo, exigem novos acordos
internacionais que coloquem as necessidades dos povos, das
economias locais e do meio ambiente acima dos interesses das
corporaes multinacionais.
Segundo Habermas, a ao da sociedade civil global no ter
certamente efeitos imediatos nos governos das grandes potncias.
O que, entretanto, obtemos desse panorama uma conscincia mais
aguda dos riscos globais, de cujo impacto quase ningum escapar,
se essas tendncias globais no forem bloqueadas e revertidas.
Em vista das inmeras foras de desintegrao, dentro e alm
das sociedades nacionais, existe este fato que aponta na direo
oposta: do ponto de vista de um observador, todas as sociedades j
so parte e parcela de uma comunidade de riscos partilhados
percebidos como desafios para a ao poltica cooperativa. (Habermas,
1996, p.294).
A sociedade de riscos no uma opo a ser escolhida ou
rejeitada no calor das lutas polticas:
Ela surge na continuidade dos processos de modernizao autnoma,
que so cegos e surdos a seus prprio efeitos e ameaas. De
maneira cumulativa e latente, estes ltimos produzem ameaas
() que questionam e finalmente destroem as bases da sociedade
industrial. (Giddens, Beck & Lash, 1994, p.16)
sob o signo da incerteza, que marca o nosso tempo 'ps-moderno'
ou 'ps-nacional', que os cidados do mundo se deparam com os
riscos da nova ordem internacional, esgrimindo, em nome do
interesse pblico, os valores da democracia e da sustentabilidade,
agrupados em torno a uma sociedade civil global emergente e
operando em um nascente espao pblico transnacional, onde
enfrentam as foras dominantes do Estado e do mercado. Do
resultado deste embate, depende o destino da democracia, a
sustentabilidade do planeta e a sorte de seus habitantes.
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[inscrio na esttua de
THOMAS PAINE (1737-1809)
em Paris]
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