Comentrio
ao artigo 28 406w2f
1g2312
Marcello
Lavenre Machado
A mensagem emanada deste artigo lembra que a
realizao efetiva dos direitos do homem supe, como
precondio, a existncia de:
-
uma ordem social interna em cada pas que rena
as condies essenciais para que possa ser reivindicado
o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana;
-
uma ordem internacional de coexistncia dos pases
entre si que assegure a cada um deles uma realidade em que
se atenda ao pleno exerccio dos direitos e das
liberdades consagrados na Declarao.
Estamos,
pois, diante de dois desdobramentos do artigo 28: o
primeiro sua projeo interna, dentro da rbita da
soberania de cada nao, e o segundo a dimenso
internacional dos relacionamentos entre os pases
soberanos.
A Declarao, lucidamente, constata que a
proteo aos direitos humanos estabelecida nos artigos
anteriores pode ser frustrada se no existir,
formalmente, um quadro, interno e externo, em que seja
possvel cultuar o respeito aos direitos da pessoa
humana. Nestes comentrios enfatizaremos o segundo
aspecto, pela importncia cada vez maior que o contexto
das relaes internacionais tem granjeado nas ltimas dcadas.
Faz-se necessrio conectar este tema com uma
viso contempornea dos direitos da pessoa humana, a
qual nos remete s formulaes dos direitos humanos de
terceira gerao. Aqui se considera que esto j
reconhecidos como fundamentais os diretos instauradores da
igualdade. Resta-nos o desafio de serem assegurados
humanidade os direitos humanos realizadores da
fraternidade.
ite-se, assim, como pressuposto, que a
luta pelo reconhecimento dos direitos decorrentes do princpio
da liberdade (primeira gerao) e da igualdade (Segunda
gerao) j logrou grandes vitrias contra a escravido,
contra o colonialismo, contra a apartao tnica,
contra a intransigncia religiosa, contra o absolutismo e
a tirania, o que permitiu se instalarem as modernas
democracias, abolidos os governos despticos que cederam
o ao Estado Democrtico de Direito. Estamos, aqui,
itindo que, grosso modo, homens e mulheres, brancos,
amarelos e negros, direitistas e esquerdistas, crentes e
ateus, j no mais so, generalizada, aberta e
impunemente, discriminados pelo sexo, raa, cor, religio
ou iderio poltico.
O desafio, agora, o de se assegurarem os
direitos humanos de terceira gerao, os que se
fundamentam na fraternidade. Assim se entendem os direitos
meta-individuais, direitos que afetam interesses
coletivos, tais como o direito ao futuro. Neles no
prepondera uma concepo individualista da pessoa
humana, porm a sua projeo no grupo, na sociedade, o
homem visualizado no conjunto de todos os homens, como
populao, como povo, como espcie humana, numa
palavra, como Humanidade.
Para que tais direitos da humanidade sejam
atendidos, o artigo 28 da Declarao, em anlise, supe
uma ordem internacional que congregue a todos os pases
sob o ideal da cooperao, da solidariedade, da
fraternidade, e no da dominao, da sujeio ou da
explorao, mesmo quando essas modalidades estejam
mimetizadas sob formas modernas. Com isso se quer afirmar
ser o art. 28 da Declarao incompatvel com uma
moldura em que apenas se substitua a antiga pirataria dos
corsrios seiscentistas, o colonialismo dos sculos
XVIII e XIX, pela contempornea sangria da divida
externa, pela dependncia tecnolgica e das patentes
internacionais, pela pilhagem dos capitais especulativos.
Precondio, pois, para a existncia de
uma sociedade em que os direitos humanos possam ser
respeitados , conforme preconiza o artigo 28 da Declarao,
a instaurao de uma ordem internacional igualitria,
solidria e cooperativa entre os pases. Alis outro no
foi o ideal que moveu as naes a se unirem, depois da
Segunda Guerra, sob o plio da ONU.
Nesta mesma direo, isto , de uma
verdadeira e autntica fraternidade internacional, o art.
4 da Constituio Federal de 1988, inciso IX, erige
como princpio inspirador das relaes internacionais o
da cooperao entre os povos para o progresso da
humanidade.
Ora, ningum desconhece que o mundo atingiu
um estgio em que a humanidade, pela primeira vez desde
que surgiu sobre a face do planeta, se tornou um todo.
Constitumos, Oriente e Ocidente, hemisfrio norte e
hemisfrio sul, uma nica aldeia, uma aldeia global,
unificada pelas comunicaes, pela economia, pelos meios
de transporte, pela informtica, pela dependncia recproca,
pelo enfrentamento dos mesmos megadesafios, pelo surgir de
uma conscincia planetria, pelo desabrochar de um
sentimento cada vez mais forte de que todos estamos
participando de um mesmo destino comum. Africanos, asiticos,
europeus, americanos, australianos, reconhecemo-nos, mais
e mais, como integrantes de uma nica humanidade, partcipes
de uma mgica aventura envolvendo a todos, conjuntamente.
Essa conscincia vem-se plasmando diante da
constatao objetiva de que os mais importantes
problemas e desafios que nos aflingem no podem ser
reduzidos a uma dimenso local ou regional, porm tm,
necessariamente, uma projeo global. Considere-se, e.
g., o narcotrfico, a distribuio mundial de
alimentos, as manipulaes genticas, as violaes
genocidas dos direitos humanos, os testes nucleares e o
uso da energia atmica, o desenvolvimento econmico,
todo o amplo espectro de problemas ambientais, tais como a
preservao das florestas tropicais, o esgaramento da
camada de oznio, o exaurimento das fontes no renovveis
de energia e da gua potvel, o efeito estufa, o manejo
da biodiversidade.
Destacam-se, dentre todos esses problemas, as
vicissitudes de uma economia global, pela qual um desequilbrio
nas finanas de um pas asitico se alastra pelo
Oriente, e, em efeito domin, compromete a estabilidade
do Leste Europeu, abala as economias da Amrica Latina e
vem a atingir o epicentro da economia mundial, pois afeta
o Japo, acende um sinal vermelho nos Estados Unidos, pe
em alerta a CEE. Como a Hida de Lerna de sete cabeas
imortais, recuperando sua perniciosa atividade logo depois
de abatidas, o vrus do capital voltil causador da sndrome
da crise financeira apresenta-se recidivante e
incontrolvel, causando estragos inimaginveis por onde
a, como poderoso tornado que se recompe num
moto-contnuo e, mesmo quando aparente perder as foras,
renasce mais violento e destruidor do que antes.
Os organismos mais dbeis, mais dependentes
desse capital especulativo, so os que sofrem os maiores
danos, eis que as economias centrais, mais fortes, parecem
at beneficirias da crise. O que fato, hoje
denunciado por vozes altamente autorizadas, que o
modelo neoliberal de economia globalizada torna os pases
pobres mais pobres, e os pases ricos, mais ricos. Da no
se saber ao certo se o vrus se alastra por conta prpria
ou se recebe ajuda...
No podem deixar de ser mencionados os
instrumentos e os mecanismos internacionais utilizados,
esperta e competentemente, como sustentculos dessa
economia globalizada, tais como o FMI, a OCDE, a OMC, o
G-7, o Banco Mundial, cuja longa manus est em toda
parte, impondo seus efeitos deletrios, tais como:
-
ajustes estruturais, que aumentam a carga tributria,
cortam despesas pblicas e investimentos, geram
desemprego e reduzem benefcios sociais;
-
emprstimos para salvar economias em perigo que,
ao final, produzem e expandem uma dvida externa
asfixiante;
-
altssimas taxas de juros, que os governos dos pases
de economia dependente praticam para sobreviver a curto
prazo e que acarretam a formao de uma dvida interna
invel;
-
abertura das economias nacionais ao livre comrcio
e livre concorrncia com produtos estrangeiros, o que
termina por criar, artificialmente, importaes, por
desequilibrar a balana de pagamentos, por enfraquecer a
produo nacional, fechando fbricas internamente e
gerando emprego fora do pas;
-
privatizao dos ativos pblicos dos pases
dependentes, entronizada como medida de salvao
nacional que, na verdade, provoca a alienao,
frequentemente a preo vil, de bens do patrimnio
nacional, a desnacionalizao da economia, fenmeno
especialmente grave, j que praticado preferencial, entre
em reas estratgicas de telecomunicaes, petrleo,
energia eltrica, sistema bancrio e minerais raros.
O
quadro atual da realidade econmica mundial facilmente
constatvel pelos dados e pelas informaes de
organismos internacionais dotados de credibilidade. Tais
dados evidenciam que, neste final de sculo e de milnio,
h uma enorme deteriorao das relaes entre os pases
que formam a comunidade internacional, especialmente
depois da derrocada do socialismo real e da sada da URSS
do esquema bipolar do poder poltico-econmico-militar
mundial. A partir da, instalou-se uma ordem mundial nica,
globalizada, com um nico centro de poder, capaz de,
unilateralmente, impor o seu pensamento e as suas decises
a todo o orbe. Essa nova ordem mundial no rene naes
e pases paritrios, mas naes e pases com graus de
vassalagem diversos, de um lado, e um nico pas,
soberano, do outro. Consequncia disso um processo
econmico cada vez mais rpido, que distancia as poucas
naes ricas das muitas naes pobres. Consequncia
disso a violao institucional do art.28, na medida
em que cada vez mais a ordem internacional conspira contra
aquelas condies de cooperao e solidariedade, nica
maneira possvel de oportunizar o respeito pelos direitos
da pessoa humana.
Impem-se fazer uma constatao, mesmo rpida,
dos indicativos em que se lastreiam a presente anlise.
Nestes cinquenta anos, ps-Segunda Guerra, ou se se
pretender um horizonte mais amplo, neste sculo que j
terminou, o mundo sofreu, amadureceu, cresceu, progrediu
em alguns setores, globalizou-se e... envelheceu,
empobreceu, desumanizou-se. inevitvel uma sensao
de importncia, de desnimo, de fatalismo pessimista.
Se, na virada do sculo XIX para o sculo XX,
acalentavam-se utopias, sonhava-se com um bem-estar para
maiores contingentes populacionais, itia-se que o avano
tecnolgico fosse capaz de superar mazelas ento
existentes, parece que na virada atual do sculo XX para
o sculo XXI a sensao inversa: no h utopias, no
h sonhos. No h perspectivas positivas, no h
esperanas. A humanidade tem conscincia de que a dura
realidade se agrava a cada dia, e assiste a esta tragdia
inerte, resignada, como algo fatal que deve ser aceito
porque assim .
Morre-se de fome cada vez mais, apesar de
nunca se ter produzido tanto alimento. A pobreza na face
da Terra atinge maiores contingentes demogrficos do que
h cem anos, apesar de ter aumentado a riqueza mundial.
Esta cresceu, mas sofreu tal processo de concentrao
que redundou numa humanidade percentualmente mais pobre.
Considerem-se os seguintes nmeros: 40% da populao
mundial sobrevive com apenas 3,3% da renda mundial.
Segundo o PNUD, rgo da ONU, o 1/5 mais rico da populao
mundial em 1960 detinha trinta vezes mais renda do que o
1/5 mais pobre. Em 1990, essa injusta proporo
duplicou, ando a ser de sessenta vezes. Entre 1980 a
1992, os pobres na Amrica Latina e no Caribe aram de
136 milhes para 266 milhes. Isto , eram 40% da
populao, aram a ser 60%. Da populao mundial de
5 bilhes de seres humanos, 4 bilhes sofrem algum tipo
de carncia. Mais ameaador o fato de que esta proporo
aumenta continuamente.
Para agravar ainda mais a perversidade desse
quadro, vale lembrar que a manipulao ideolgica
veiculada pelos instrumentos de formao da opinio pblica,
a servio dos setores e dos pases economicamente
privilegiados, tem conseguido fazer crer que os pobres (pases
ou pessoas) so pobres por sua prpria incapacidade,
indolncia, preguia, ou por infortnio ou desejo de
Deus. No reconhecem que essa situao resultado do
saque, da pilhagem, da explorao, do colonialismo, da
destruio de civilizaes, do desmantelamento de
modos de produo autctones, da depredao dos
recursos ambientais.
Essas formas antigas de pirataria
modernizaram-se e hoje transmutaram em intercmbio do comrcio
internacional, dvida externa, fuga de capitais
multinacionais, ajuste estrutural, privatizao,
patentes de propriedade industrial, robotizao, remoo
de plantas industriais (fbricas de Hong Kong migram para
o sul da China onde os salrios atingem valor nfimo). O
mesmo acontece nos Estados Unidos com a transferncia de
plantas industriais para o Mxico, o que tem provocado
protestos e distrbios de no pequena monta.
A crise atinge os EUA, a Frana e os demais
pases capitalistas, onde o desemprego, a reao
violenta contra a imigrao e a diminuio dos benefcios
da seguridade social se constituem sintomas de que tambm
ali j sopram os ventos denunciadores de graves desequilbrios.
Os restaurantes de caridade (restaurants du coeur), que
servem refeies gratuitas para os miserveis, na Frana,
confirmam esta mesma constatao de que at nos pases
mais ricos do mundo a crise do regime capitalista provoca
dificuldades.
A OIT registra em seu boletim de 1992 um terrvel
aumento de acidentes de trabalho nos tigres asiticos e
na Europa. Paradoxalmente, o valor das transaes
mercantis em escala mundial ou de 900 milhes de dlares
em 1974 para 3 bilhes de dlares em 1987, o que
comprova o aumento da riqueza. Logo, o que se pode
constatar que o empobrecimento da grande maioria no
resultado do empobrecimento de todos. Na verdade, a
riqueza em nmeros totais continua aumentando, s que
dela se apropriam aqueles que j lhe aambarcaram a
maior parte. O fenmeno real o do aumento cada vez
maior da centralizao da riqueza nas mos de poucos,
em detrimento de muitos. O bolo cresce, mas seus acrscimos
no se distribuem democraticamente. Em janeiro de 1993,
no Monde Diplomatique, sob o ttulo O grande bazar
russo, Michel Chossudovsky denunciava a abertura da
temporada de caa s riquezas dos antigos pases
socialistas, conforme consta do artigo de Teitelbaum na
Revista da Associao Americana de Juristas, 1993, fonte
de muitos dos nmeros que aqui se mencionaram. Com a
assessoria do FMI, continuam sendo liquida9dos, por preo
vil, toda sorte de investimentos, indstrias, empresas
agrcolas, terras, obras de arte, termas, edifcios,
antiguidades, tudo aquilo que constitua o imprio sovitico.
Enquanto isso, os salrios na antiga Rssia, que foi a
Segunda potncia mundial, caem, e o desemprego aumenta, a
corrupo campeia, a mfia toma conta dos despojos. Em
pouco tempo, o que era o conjunto de pases socialistas
com ordem, com educao para todos, com empregos
assegurados, cem fome, com assistncia mdica, com
tecnologia avanada em muitos campos da cincia, com
universidades de alto padro (e tambm com muitos vcios,
defeitos, injustias e desvios que no se desconhecem
nem se defendem) ser pouco menos do que um deserto de
civilizao, povoado por uma multido de desempregados,
famintos, destitudos de qualquer esperana, nem mesmo
de lutar por dias menos avaros.
Outros dados colhidos em fonte diversa
confirmam as afirmaes anteriores. Entre os anos de
1965/1990, a riqueza mundial aumentou dez vezes, enquanto
a populao apenas duas vezes. Os pases ricos aram
de 68% para 72% da apropriao, apesar de sua populao
total. (Cifras do Banco Mundial, conforme Marcos Arruda,
em Anais da Conferncia da OAB de Foz do Iguau, 1995).
Em 1992, o mundo atingiu 1 bilho e 300 milhes de miserveis.
Nesta data, 80% da populao mundial dispunha de apenas
15% da renda total. Por outro lado, os 20% da populao
mundial mais ricos tinham sua disposio 85% de todas
as riquezas produzidas.
Constata-se, assim, que cinquenta anos depois
da Declara9o Universal dos Direitos Humanos a
humanidade vive o drama da inexistncia de condies mnimas
para que tais direitos e liberdades possam ser exercidos.
O disposto no artigo 28, em que se afirma que todo homem
tem direito a uma ordem social e internacional justa e
propcia ao exerccio de seus direitos fundamentais,
objeto de violao permanente.
H o que comemorar neste cinquentenrio?
Com certeza sim. quando por outros motivos no fosse, e
os h, pela continuidade na perseguio de to elevado
ideal. A construo de uma sociedade justa tarefa de
todos os dias. As constataes desta anlise tm um
sentido mobilizador. A identificao dos obstculos
o primeiro o para sua superao. As reaes contra
a poltica neoliberal j se fazem presentes em muitas
paragens. A excluso social que ela provoca e a insatisfao
que cria so o germe da contradio que terminar por
suplantar esta ideologia alheia aos valores mais gratos
humanidade, aqueles que reconhecem prioridade pessoa
humana e sua dignidade intrnseca. Mesmo
temporariamente desatendido, o artigo 28 da Declarao
Universal dos Direitos Humanos um fanal a indicar o
rumo a seguir: a instaurao de uma ordem social em cada
pas, e de uma ordem internacional em todo o orbe, em que
os direitos fundamentais possam ser reivindicados e
plenamente exercidos.
Advogado;
Ex-presidente nacional da OAB e
professor da Universidade de Braslia. |