Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
Direitos Humanos
Desejos Humanos
Educao EDH
Cibercidadania
Memria Histrica
Arte e Cultura
Central de Denncias
Banco de Dados
MNDH Brasil
ONGs Direitos Humanos
ABC Militantes DH
Rede Mercosul
Rede Brasil DH
Redes Estaduais
Rede Estadual RN
Mundo Comisses
Brasil Nunca Mais
Brasil Comisses
Estados Comisses
Comits Verdade BR
Comit Verdade RN
Rede Lusfona
Rede Cabo Verde
Rede Guin-Bissau
Rede Moambique

j6y5h

Um olhar para o futuro
Aldem Bourscheit*

O ex-frade franciscano Leonardo Boff, 63 anos, estudioso da ecologia social, autor de mais de 60 livros e considerado um dos criadores da Teologia da Libertao – que nos anos 70 props uma fuso entre marxismo e cristianismo –, concedeu essa entrevista no dia 22 de maio de 2002, na abertura do Seminrio Estadual sobre Educao Popular. O evento se realizou no Auditrio Arajo Viana, em Porto Alegre (RS).

Para o telogo, membro da Comisso da Carta da Terra para Amrica Latina e Caribe, a sociedade mundial encontra-se numa verdadeira encruzilhada em decorrncia de um modelo de desenvolvimento predador e suicida, e deve decidir agora sobre seu futuro. Leonardo Boff recebeu em 2001 o Prmio Right Livelihood (Correto Modo de Vida), que alguns consideram uma espcie de Nobel alternativo.

Aldem Bourscheit - Disciplinas como tica, filosofia e at ensino religioso foram sistematicamente retiradas dos currculos escolares brasileiros, principalmente a partir do regime militar. Qual ou qual era o “problema” com essas disciplinas?
Leonardo Boff - Essas disciplinas so humansticas, e toda disciplina humanstica coloca a questo do sentido da vida, dos fins, do ser humano, e isso contrasta com a outra opo tecnolgica, que cuida mais dos meios, em funo de um certo tipo de desenvolvimento, material. Esse modelo normalmente no insere duas dimenses fundamentais, que so o ser humano, como destinatrio desses bens, e a natureza, cuja depredao praticamente inconsciente e ilimitada.

Eu acho que o resgate dessas dimenses humansticas coloca no centro a destinao de todo o processo tecnolgico, de desenvolvimento, da economia, em funo da vida e em funo da vida humana. E por outro lado, suscita de imediato a questo tica. Isto , todos os saberes devem assumir a responsabilidade de serem teis para o ser humano, de ajudarem o ser humano a manter a herana que ele herdou do ado, seja cultural, seja natural - a herana ecolgica. Ao mesmo tempo, ajuda o ser humano a estabelecer uma relao bem fazeja do outro com a natureza, de tal maneira que o saber seja um momento de dilogo do ser humano com a realidade e ao mesmo tempo uma forma de aprofundar sua relao com a realidade, no cort-la, no sentido da dominao, mas refora-la no sentido de sentir-se junto cadeia da vida, sentindo-se parte e parcela de um todo que o desborda por todos os lados.

A tica procura suscitar esta questo, e ela hoje uma demanda fundamental, porque a falta de tica est degradando o tecido social, em termos de milhes e milhes de excludos, e est destruindo a base fsico-qumica que permite a vida. Ento, temos tica e nos salvamos, ou colocamos de lado a tica. Ou fazemos inclusive uma estratgia anti-tica e corremos o risco de ir ao encontro de dramas muito grandes, para a sociedade e para a natureza.

AB - Em vrios textos, livros e palestras suas, o senhor comenta sobre uma situao de crise social decorrente de nosso modelo de desenvolvimento. Por que a populao no consegue vislumbrar essa crise ou no consegue reagir a ela?
LB - A opinio pblica vtima de uma imensa desinformao. Uma desinformao que intencionada, porque ela faz parte da lgica do sistema. O sistema consumista, ento, ele tende a produzir cada vez mais e criar o consumidor pela sua produo. E essa produo no s consumista, ela tambm depredadora - depreda a natureza tornando os recursos escassos. Esses dois fatores, uma vez denunciados, colocam em questo a lgica do sistema e o prprio sistema.

Hoje chegamos a um ponto em que colocamos as questes: Quanto de agresso a Terra ainda a? Quanto de injustia social mundial o estmago tico humano ainda consegue digerir? Porque estamos chegando a limites extremos, seja de uma degradao total das relaes sociais mundiais, pelo crescimento da pobreza, da marginalidade, da excluso; seja pela sistemtica degradao do sistema de vida, cujos relatrios revelam que de ano a ano ela cresce sem que haja polticas consistentes para colocar um limite a essa depredao.

Esses dois temas, que so contraditrios ao sistema dominante, so ocultados, e a grande parte da populao est dentro do Titanic que est afundando, mas no se d conta disso. As grandes empresas gaiamente continuam produzindo e consumindo como se a Terra fosse inesgotvel e o mundo estivesse reconciliado. Ento, esses limites possivelmente iro aflorar no momento em que a crise atingir a pela das pessoas, isto , quando percebermos, por exemplo, que dentro de pouco teremos a crise mundial da gua potvel. Naes do mundo inteiro faro guerras devastadoras para garantir o a esse recurso natural. Ento, esse fato despertar a conscincia.

Mais 15 ou 20 anos, e a energia fssil do petrleo encontrar um limite extremamente perigoso. Buscamos alternativas energticas ou o modelo montado sobre essa energia entrar numa crise sistmica. Fatos assim mobilizam as conscincias e, a sim, colocamos a questo das alternativas. Entretanto, importante que o pensamento agora e os grupos elaborem essas alternativas, acumulem energia, porque quando a crise vier ns tenhamos propostas que sejam realmente boas, que permitam um outro ensaio civilizatrio e no coloquem a humanidade num estresse de grande risco.

AB - Numa entrevista recente revista Eco-21, o senhor fala em trs cenrios atuais: um seria conservador, outro, reformista, e por fim, um libertador. Podes explicar esses trs cenrios?
LB - O primeiro cenrio eu chamo de conservador porque o cenrio das elites industriais e financeiras mundiais, que no despertaram ainda para o alarma ecolgico. Parte da idia de que os recursos so ilimitados e de que a Terra tem capacidade de regenerao, e de que o processo da tecnocincia, que exige muita energia e exausto e utilizao massiva dos recursos naturais pode continuar. Eu creio que essa anlise irresponsvel, porque todas as grandes instituies que abordam o estado da Terra mostram anualmente o crescimento da degradao e tambm os limites reais que a Terra tem. Essa viso conservadora mope e perigosa, porque assumida pela istrao Bush (EUA), que fez disso poltica de governo, e agrava portanto a situao.

O segundo cenrio reformista porque se d conta de que devemos combinar desenvolvimento e ecologia, mas no quer questionar a estrutura, a lgica do tipo de desenvolvimento, que linear, consumidor das energias limitadas da Terra. Ao menos se incorporam tecnologias mais benevolentes, que diminuem a agressividade, que diminuem tambm o grau de contaminao do ar, das guas. Ele tem um certa vantagem porque ajuda a incorporar o discurso ecolgico, mas tem a desvantagem de que quando h um conflito entre desenvolvimento e ecologia, sempre se opta pelo desenvolvimento e se abandona a ecologia, perpetuando-se a crise.

J a terceira viso a que efetivamente se d conta de que chegamos a um momento de no retorno. Devemos preservar a nica casa comum que temos, o planeta Terra, com um equilbrio extremamente frgil, e elaborar uma economia e uma poltica que preserve a vida, garanta o sustento humano, e que refunde o pacto do ser humano com a natureza, incluindo esta como um novo sujeito social merecedor de respeito, e tambm com a conscincia de que somos um elo na corrente da vida.

Na verdade no existe meio ambiente, mas sim a comunidade de vida. O ser humano tem a funo de assumir responsabilidades, de ser guardio dessa riqueza, desse equilbrio. Se ns no assumirmos essa responsabilidade, a reproduo da vida no ser mais garantida pelas prprias foras da natureza, porque a nossa mquina de morte est to azeitada e avantajada que ela pode produzir danos fundamentais para a biosfera e pode ameaar nosso prprio destino.

O ser humano, no seu af de destruio, criou 25 formas diferentes de destruir a vida, e isso um fato indito na conscincia histrica. O ser humano podia fazer guerras, podia construir armas, mas nenhuma delas tinha a capacidade de destruir a si mesmo, e de forma completa. Agora ns podemos. Isso cria de um modo geral um mal estar na civilizao, j notado por Freud em 1931, e hoje como um alarma das conscincias.

Os grupos mais avanados, que todavia ainda no chegaram ao poder poltico, esto fazendo acumulao social, elaborando sua conscincia, divulgando estratgias alternativas, e isso tem um carter de urgncia, porque introduzimos agora as modificaes ou no teremos mais tempo para fazer essas modificaes. Por isso o grau de urgncia e de dramaticidade que estamos vivendo.

AB - Qual a sua expectativa para a Rio+10 (Cpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentvel, 26 de agosto a 4 de setembro, frica do Sul) frente situao mundial aps os atentados de 11 de setembro aos Estados Unidos, agora que a temtica da violncia e do combate violncia com ainda mais agresses tem se ampliado no globo?
LB - A minha expectativa de que aumente a conscincia, no ainda que haja medidas importantes, j que as potncias militaristas e hegemnicas no mundo, que so os pases industrializados, no querem afetar suas vantagens comparativas de controlar o processo mundial econmico e financeiro. No renunciam sua hegemonia mesmo sabendo que esto sacrificando a Terra. Procuram prolongar a agonia, pensando nas suas vantagens. Mas so solues insensatas, porque no se do conta de que esto num Titanic que est afundando, e isso curioso.

O ser humano um ser criativo, surpreendente, nossa natureza quntica, cheia de oportunidades e alternativas, e ele pode, depois que se decidiu a isso, buscar alternativas. A Carta da Terra, de cujo grupo eu sou integrante, tentou criar um conscincia dessa nova alternativa, dessa nova urgncia, e propor isso discusso, primeiramente mundial, que j est sendo feita h vrios anos, tendo inclusive sendo assumida pela Unesco. A partir do ano que vem, ela ser proposta ONU (Organizao das Naes Unidas), para que esse organismo se confronte, assuma isso e a promulgue com os mesmos direitos e valor que a Declarao dos Direitos Humanos. Ento, no s o ser humano vai ser defendido, mas a Terra como um sistema e os ecossistemas e cada ser vivo vo ser considerados como uma subjetividade que deve ser respeitada na sua autonomia, ganham uma certa cidadania, pertencem dimenso da sociedade humana, e isso permitiria um novo estado de conscincia global adequado essa gravidade. O ser humano se foraria a rever atitudes, hbitos, assumir valores que criem uma funo salvacionista: Salvar a Terra e a vida dentro dela.

AB - Quais os os ento para que cheguemos a uma cultura da paz?
LB - Eu vejo duas tarefas fundamentais. A primeira uma tarefa crtica de desconstruo de todo o imaginrio social, que se orienta pelas festas tradicionais e cvicas, quase todas de cunho militar ou militarista. Celebramos vitrias militares, generais, marechais, e isso alimenta a perspectiva da violncia. Os heris no so aqueles grandes mestres da humanidade, professores, mdicos, pintores, profetas, educadores, so aqueles que usaram armas, mataram, expandiram o territrio. Sempre na perspectiva dos vitoriosos, nunca na das vtimas. Devemos fazer uma crtica rigorosa a isso. Essa viso militarista no ajuda a uma cultura da paz, porque os smbolos todos so ligados a violncia e morte.

A segunda, criar essa prpria cultura da paz. importante entender a paz como resultado de uma relao que o ser humano tem com outro ser humano, com outras formas de vida, consigo mesmo, com a natureza. Uma relao no agressiva, mas sim de cooperao, de sinergia, de sentir-se parte e parcela desse todo e entender, por exemplo, que a Terra no uma espcie de ba cheio de recursos dos quais eu posso me apropriar, mas sim que a Terra um super organismo vivo. O ser humano a prpria Terra, e no seu processo de evoluo chegou o momento de pensar, de sentir, de amar, e hoje de se organizar na perspectiva da sobrevivncia. Terra e humanidade formam uma totalidade, uma grande unidade, que a perspectiva que os astronautas nos transmitem, porque l de suas naves espaciais, ao olhar a Terra, eles no distinguem Terra e humanidade. uma totalidade s. Terra viva e, dentro dela, a humanidade.

Essa perspectiva tem que entrar na conscincia coletiva, e a nossa responsabilidade, que est na primeira pgina do Gnesis, diz que o ser humano chamado a ser o guardio da natureza, ser o jardineiro, aquele que cuida, que desenvolve os processos presentes na natureza. Mas at hoje ele se mostrou sat da Terra. Pelo menos no ltimo milho de anos em que o ser humano interage conscientemente na natureza, ele comeou a ter uma relao de agresso, de matar animais, de desflorestar, envenenar guas. Mesmo os processos civilizatrios de criar tabus, as prprias religies e a cincia, no conseguiram frear a agressividade humana. S que hoje, ou ns freamos ou ela ser destrutiva de todas. A est a importncia do processo educativo, de uma tica, de um espiritualidade, que imponham limites voracidade humana. O tempo histrico corre contra ns, numa contagem regressiva.

Essa anlise no uma dramatizao, mas aquilo que a relao natural que nos vm frente aos relatrios sobre o estado da Terra. Recentemente saiu o Estado da Terra 2002. Quem ler os dados fica apavorado. Por que? Porque estamos atacando a ns mesmos. No porque as pessoas so perversas, mas porque esto dentro de uma lgica, de um sistema que no seu funcionamento leva agresso, ruptura dos equilbrios, super explorao do ser humano, degradao dos ecossistemas, e no permite que a Terra se regenere e recupere seu equilbrio.

A escola reproduz a sociedade dominante, que a funo normal da escola, a chocadeira da ideologia dominante preparando as crianas e as pessoas para esse tipo de sociedade, ou assume uma funo crtica ando a ser um nicho de reinveno, de um novo sonho, de novas prticas, de novos valores, que respondem aos dramas da realidade. muito importante hoje informar-se, dar-se conta do estado da Terra, sobre como est o nvel da violncia entre as pessoas no mundo, os equilbrios climticos so extremamente frgeis, os nveis da poluio atmosfrica, a carncia fantstica de gua potvel, o bem mais escasso da natureza, as limitaes da energia fssil. Esses todos so pontos de estrangulamento, onde o sistema sucumbe. Ele mesmo muda ou ele no ter condies internas de dar uma resposta.

AB - Observando todos esses problemas, quais seriam ento o papel e as reformas necessrias nas instituies de ensino para que voltemos nossos os em direo a um futuro melhor?
LB - Eu acho que h duas tarefas de base. Para aqueles que esto na cultura dominante, no processo de produo, os cidados como ns todos, a se impe um processo de converso. Isto , de uma redefinio das prticas, de uma mudana de conscincia, e isso tem que ser feito porque seno seremos cmplices de um eventual desastre. E aqueles que esto entrando na sociedade via escola, que j cresam numa nova mentalidade, j cresam como cidados planetrios, pessoas que tenham uma relao de benevolncia, de sinergia com a natureza, que protegem todas as espcies, as guas. Que se estabelea como nova centralidade no a produo, no o mercado, mas a vida em toda a sua diversidade, e a economia e a poltica como formas de defender, promover e expandir a vida. Isso supe um novo padro civilizatrio.

Ento, ao que a educao chamada a desenvolver uma grande revoluo, das conscincias, da tica, da espiritualidade, que d a percepo dos valores, do sentido das coisas. Isso ns no fazemos porque queremos, mas porque estamos condenados a isso. Ou ns decidimos viver e nos submetemos a isso ou vamos ao encontro do pior.

*Aldem Bourscheit jornalista, assessor de comunicao da Abema (Associao Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente) e membro do Ncleo de Ecojornalistas do Rio Grande do Sul (NEJ/RS)

< Voltar

Desde 1995 dhnet-br.diariodetocantins.com Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: [email protected] Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Not
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
Hist
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Mem
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multim