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GNERO E DIREITOS HUMANOS
Clair
Ribeiro Ziebell
O
presente texto objetiva subsidiar a oficina Gnero
e Direitos Humanos, a qual integra a programao do seminrio
Pobreza, Excluso e Direitos
Humanos, promovido pela UNISINOS. Este texto no se prope um
tratamento exaustivo e conclusivo em torno do tema: antes
constitui-se em mais um desafio de, aproveitando o espao do seminrio,
continuar desvendando as complexas relaes sociais de gnero e
suas implicaes com relao democracia ocidental em nossas sociedades. Dessa forma, no nos omitimos da
importante tarefa de construo efetiva dos direitos humanos sob
uma tica que
contemple o conjunto de interesses de homens e mulheres de qualquer
raa ou etnia, sem preconceitos de ordem sexual, religiosa e livre
de qualquer outra forma de discriminao. Pensar os direitos
humanos sob este enfoque no prescinde da categoria classe social, pois perderamos a viso de conjunto necessria
para desvendar a complexidade social que envolve os direitos
humanos.
O
tema gnero
e direitos humanos nos remete ao contexto das lutas das
mulheres, organizadas nas ltimas dcadas em movimentos feministas
e em outras organizaes, para que os direitos das mulheres sejam
respeitados como direitos humanos. Se legalmente os direitos humanos
so os direitos de todos e de todas e devem ser protegidos em todos
os estados e naes,
na prtica isso ainda no acontece.
De
muitas maneiras, s vezes de forma explcita, outras de forma
sutil, no mundo inteiro perduram posturas restritivas em relao
aos direitos das mulheres como direitos humanos. Recentemente,
assistimos estarrecidas violao dos direitos humanos das
mulheres no Afeganisto, que viram, de uma hora para outra, suas
liberdades cerceadas: foram impedidas de exercerem suas profisses
e de se manifestarem publicamente sem a permisso dos maridos e se
encontram cotidianamente expostas a constrangimentos. Mesmo sob
protesto de movimentos e de organizaes internacionais que
manifestam seu repdio a tais medidas e reiteram o apoio s
mulheres, que resistem a seu modo a essas violaes dos direitos
humanos, no h garantias, a curto prazo, de que a situao seja
modificada.
No
mundo inteiro, a cada minuto, h mulheres, algumas meninas ou
adolescentes, sofrendo um tipo de violao dos direitos humanos.
No Brasil, basta ler os jornais e ouvir as denncias feitas nas
delegacias da mulher para se ter uma idia do quanto os direitos
femininos esto sendo cotidianamente desrespeitados. Se a mulher
for pobre e negra ou ndia, a situao se agrava ainda mais. A
literatura especfica tambm demonstra alguns nmeros desta
realidade:
No
Brasil, 23 milhes de mulheres trabalham, mas ganham em mdia 43%
menos do que os homens. 13% sustentam sozinhas suas famlias, que
esto entre as mais pobres do pas. Uma mulher em cada cinco
chefe de famlia. (...) O rendimento mdio das mulheres que
trabalham no Brasil de 2,8 salrios mnimos, contra 4,9 s.m.
dos homens. (...) Estima-se em 1 milho e 400 mil o nmero de
abortos por ano no pas. Os mtodos mais utilizados pelas
brasileiras em virtude da falta de opes so a plula e a
esterilizao. A taxa de mortalidade materna de 150 a cada 100
mil partos. (...) Existem 182 delegacias especiais de atendimento
mulher. S no Estado de So Paulo, entre 1985 e 1990, foram
registrados 41.150 casos de ameaas. Homicdios em que a vtima
mulher: 80% dos casos continuam sendo absolvidos com o argumento
de defesa da honra. Em 1985, o Conselho Estadual da Condio
Feminina de So Paulo mostrou que 70% dos crimes de violncia
denunciados contra a mulher ocorrem dentro de casa.(...)
Outro
dado importante quanto a desigualdade no o ao poder e na
tomada de decises sendo baixa a proporo de mulheres nos nveis
decisrios no Brasil e no resto do mundo.
Em
So Leopoldo, o cotidiano das mulheres com que atuamos marcado
pela pobreza e excluso.
Pensar em seu dia-a-dia leva-nos a refletir sobre o contexto histrico
a que nos referimos e, principalmente, sobre a relao entre
cotidiano e excluso. Jos de Souza Martins (1989) afirma que a
histria do capitalismo tem sido uma histria de excluso e
marginalizao de populaes, mas uma excluso integrativa, que
cria reservas de mo-de-obra e que cria mercados temporrios ou
mercados parciais, em que jovens
e mulheres so os principais
afetados.
Aqui,
as mulheres sofrem, num primeiro momento, a excluso da terra de
onde procedem. Vm do interior de outras cidades e estados,
vitimadas pela relao de dominao e de explorao e pela
falta de uma poltica agrria. So expropriadas de suas terras
com seus maridos, filhos e filhas. Algumas deixam para trs
mulheres de outras geraes (mes, avs, tias), outras vm
depois destas.
Na
cidade, ocupam as chamadas reas verdes (pblicas) ou terrenos
baldios de propriedades privadas, enfrentando o conflito e, no
raras vezes, novas excluses, o que acontece sempre que a
propriedade (privada ou pblica) se sente ameaada. Quando
conseguem fixar-se em alguma rea, enfrentam problemas advindos,
por um lado, da falta de infra-estrutura em esgotos, gua potvel,
recolhimento e tratamento do lixo e mau estado das ruas; outros
decorrem da insuficincia e m qualidade das polticas sociais pblicas
de educao (no que
se refere s deficincias de creches e de escolas), de sade (no
que se refere ao no atendimento dos postos de sade demanda,
ausncia de preveno e inexistncia de programas voltados
sade da mulher), e de proteo e de segurana (no que se
refere inexistncia de uma casa-abrigo para mulheres vtimas de
violncia e programas de preveno e proteo).
Com
relao incluso no mercado de trabalho, a maioria das
mulheres no absorvida como mo-de-obra nas indstrias do
Vale. As mulheres procuram incluir-se no mercado de trabalho formal;
quando no conseguem, buscam subempregos ou trabalho informal, o
que lhes permite algum tempo livre que dedicam ao cuidado da casa e
dos filhos. Julgam que, na cidade, h a oportunidade de biscates e
de empregos em cidades vizinhas. Mesmo com a precria
infra-estrutura de bens e de servios na zona urbana, ainda acham
que usufruem mais do que na rural, onde praticamente inexistem os
recursos sociais necessrios.
Em
suas histrias, percebem-se o abandono e a opresso em que viviam,
o que as expulsou de suas terras. Tais relatos so carregados de
saudade de familiares e de recordaes de costumes e relaes da
vida anterior. Algumas buscam na religiosidade e nos grupos de
mulheres incluir-se em atividades que alterem e amenizem a dureza da
rotina cotidiana, marcada pela desigualdade de classe e de gnero.
Essa
realidade, embora local, produto das complexas relaes sociais
no Brasil e no mundo e nos remete ao surgimento dos direitos humanos
sob uma tica que relega as mulheres ao mbito privado, fato que
mundialmente foi tido como natural.
Olympe de Gouges foi pioneira na reflexo, na denncia e nas
proposies, levadas s ltimas conseqncias (morreu na
guilhotina em 1793), em torno da excluso das mulheres dos direitos
humanos desde a sua proclamao original por ocasio da Revoluo
sa, em 1789,
A
declarao dos direitos da mulher e da cidad, redigida em 1791
por Olympe de Gouges, o documento de Histria do Direito
significativamente ausente de todos os compndios que contesta
sistematicamente a restrio masculina do conceito de igualdade. A
histria da sua eliminao ou da sua transmisso apenas fragmentria,
assim como sua recepo at agora insuficiente, so provas
evidentes do acmulo de resistncias contra a equiparao dos
direitos das mulheres.
ados
quase dois sculos, a Declarao Universal dos Direitos Humanos
da Organizao das Naes Unidas (ONU), de 1948, tambm se
embasou no conceito de direitos humanos historicamente
construdo a partir do paradigma do homem branco e ocidental,
reificado como universal.
Por
outro lado, o contexto descrito anteriormente mostra que, ainda
hoje, se faz necessrio refletir como as concepes de democracia
afetam os direitos das mulheres em relao cidadania e
conseqente participao poltica. As mulheres perceberam que a
concepo de direitos humanos e os mecanismos internacionais
correspondentes que buscam garantir que tais direitos sejam
respeitados no asseguram efetivamente as exigncias e as
reivindicaes do movimento feminista.
A
partir destas constataes vem sendo pleiteado, por mulheres da Amrica
Latina e Caribe,
uma
redefinio dos direitos humanos numa perspectiva de gnero, a
partir de uma leitura
da realidade que torne visvel a complexidade das relaes entre
homens e mulheres, revelando as causas e efeitos das distintas
formas em que se manifestam estereotipias e discriminaes
Recentemente,
no seminrio Democracia Radical e a Questo dos Direitos, promovido pelo
Instituto de Filosofia da Universidade de Campinas, em So Paulo, a
feminista italiana Gabriella Bonacchi noticiou a reforma e a emenda
do texto de 1948, da Declarao Universal dos Direitos Humanos
(ONU), elaborada por uma mesa
de mulheres constituda pelo Ministrio para as
Oportunidades Iguais Italiano. Segundo Gabriella,
atualizar
o aspecto libertador do
modelo clssico francs significa
desmascarar o aparente universalismo (...) que , na verdade, o
ponto de vista muito concreto do macho ocidental, adulto, branco e
proprietrio. A Frana revolucionria excluiu as mulheres do jogo
(...) mas, segundo ela, as mulheres, hoje, no querem mais ficar de
fora, e diria Lnin os homens no podem mais exclu-las.
Enfim,
uma pluralidade de movimentos no mundo inteiro vm marcando presena
em defesa da cidadania, da qual as mulheres foram longamente excludas.
Da que a luta das mulheres visa incluso, forjando novos
mecanismos que incorporem seu o ponto de vista. Isto implica desde
modificaes na linguagem, que e a incluir as mulheres, antes
subentendidas na forma masculina, at a incluso social, uma vez
que so as mulheres as mais duramente atingidas pela pobreza,
representando 70% do total de 1,2 bilho de pobres no mundo.
Em
1994, a Conferncia dos Direitos Humanos reafirmou que os direitos
humanos das mulheres so inalienveis, indivisveis e universais.
A Plataforma de Ao de Beijing tambm assegura igualdade e no
discriminao na lei e reivindica a incluso do ensino sobre os
direitos humanos nas escolas. O maior desafio garantir a afirmao
destes direitos, isso a pela organizao das mulheres, mas
tambm pela formao de novas concepes de mundo onde mulheres
e homens tenham conscincia de que todo ser social responsvel
e capaz de fazer e refazer o mundo. Se na construo desse mundo
produzimos a desigualdade, podemos, imbudos de outra mentalidade e
em condies objetivas favorveis, construir
novo mundo e nova vida, buscando a igualdade na diferena.
Considerando essas breves e necessrias referncias, cumpre
ressaltar que, embora tenhamos tratado da situao das mulheres em
relao aos direitos humanos, a abordagem que pretendemos no
enfoca simplesmente a questo
da mulher, como isolada das questes centrais da sociedade. Nesse
sentido, referimo-nos a gnero e direitos humanos e no a mulheres
e direitos humanos, embora as tenhamos como referncia necessria.
A categoria gnero, com
origem na reflexo das feministas na Inglaterra (gender), vem
ampliar e redefinir o enfoque dos estudos e pesquisas antes
considerados estudos da mulher. Como categoria analtica, gnero
abrange tambm a realidade social, uma vez que as relaes de gnero
estruturam o conjunto das relaes sociais. Nessa tica, as relaes
entre homens e mulheres so percebidas como construes culturais
a criao
inteiramente social de idias sobre os papis adequados aos homens
s mulheres
Em
nossa atuao na extenso universitria, temos exercitado, na
assessoria prestada a movimentos de mulheres em So Leopoldo, uma
prxis que busca a organizao das mulheres na defesa dos
direitos sociais e dos direitos humanos como um todo, considerando
sua indivisibilidade. O
processo e a conscincia social necessria
esto se desenhando num tempo e num ritmo prprio,
implicando, nesse processo, histrias de vida, relaes de gnero,
experincia em outros movimentos e em partidos polticos e esperana
numa atuao que, se vai alm da defesa dos direitos das
mulheres, tem estes como ponto de partida.
Finalizando, pensamos ser oportuno lembrar aqui a reflexo de
Paulo Freire, que, como educador, foi sempre um defensor dos
direitos humanos. Em uma de suas ltimas obras, Pedagogia
da Esperana, refere-se a
crticas que
recebera de algumas leitoras pela marca machista com que escrevera Pedagogia do Oprimido e antes, A
Educao como Prtica de Liberdade. A crtica das leitoras
era para com a linguagem machista usada pelo autor, em que, segundo
elas, no havia lugar para as mulheres, pois, ao referir-se s
pessoas (sujeitos) e sua realidade, o autor usava sempre a categoria
homens. A pergunta que lhe
faziam as leitoras era: Por que no tambm as mulheres? Ao
perguntar-se sobre isto, o autor diz que se descobriu em contradio
ao pensar: Quando falo
homem, a mulher necessariamente j est includa. Mas
depois continua:
Em
certo momento de minhas tentativas, puramente ideolgicas, de
justificar a mim mesmo a linguagem machista que usava, percebi a
mentira ou ocultao da verdade que havia no afirmar quando
falo homem, a mulher est includa, e pensava por que os homens
no se acham includos quando dizemos as mulheres esto
decididas a mudar o mundo? Para os homens, ou eu no conheo a
sintaxe da lngua portuguesa ou estou procurando brincar com eles.
O impossvel que se pensem includos no meu discurso. Como
explicar, a no ser ideologicamente, a regra segundo a qual, se h
muitas mulheres numa sala e s um homem, devo dizer: eles so
trabalhadores dedicados? Isto no , na verdade, um problema
gramatical, mas ideolgico.
Fica-nos,
portanto, o desafio de incorporar em nossas prticas sociais o
enfoque do gnero, que, como categoria analtica, nos oportuniza
um novo olhar que desvende o que ainda permanece oculto pela
naturalizao dos papis homem
e mulher.
Referncias
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