Educando para
a Cidadania
Os
Direitos Humanos no Currculo Escolar f6o4j

PREFCIO
A presente coletnea destaca temas
elevados do esprito humano, dando-lhes tratamento respeitosos. Da
lngua biologia, ando pela qumica, sistemas filosficos, alma
religiosa, desvelam-se camadas do intelecto, dobras do corao. Tudo
isso convida tarefa de refletir. Cada um dos artigos aqui reunidos
breves, decorosos gira ao redor do fato educativo. Como levar
nossa gente, em especial a juventude, at o respeito pelos direitos
humanos?
Esta tarefa tem sido o alvo da Anistia Internacional, movimento
a quem o mundo deve pouco do nimo e da bondade que ainda lhe restam.
Os homens e mulheres comprometidos com a Anistia atenuam, todos os anos,
com seus relatrios e denncias, os efeitos da bestialidade estatal
tirnica, reforada neste fim de sculo. Com isso, milhares e
milhares de vidas so resgatadas para a esfera da vida pblica,
beneficiando lares, igrejas, partidos das mais diversas atitudes
doutrinrias. Se existe um setor realmente democrtico em nossa terra,
este a Anistia Internacional.
A coletnea fiel a esse esprito
eminente. Todos os trabalhos preocupam-se com a falta de base, nas
polticas convencionais, ou a falha tica afirmada com a desmedida
valorizao do ser humano no interior do cosmos. O orgulho luciferino
dos engenhos finitos fez com que eles esquecessem o fundamento natural
que os une aos demais seres. Combatendo o privilgio arrogante da
razo cartesiana, disse um dia Espinosa em sua tica: os que
escrevem sobre as paixes e a conduta da vida humana parecem, na maior
parte, tratar no de coisas naturais, seguindo as leis comuns da
natureza, mas de coisas exteriores natureza. Na verdade, eles
concebem o homem de fora da natureza, como um imprio dentro de outro
imprio (Ethica, Pars Tertia, De
Origine et Natura Affectuum).
A separao entre homem e cosmos ajuda
na tarefa de justificar no plano social os sistemas de fora. O
cogito extra-natural,
milagrosa propriedade de alguns gnios, , para Espinosa, produto do
imaginrio auto-centrado. Quem se julga dono da natureza e do Estado (e
das Igrejas) est pronto para qualquer aventura desptica, contra o
comum dos mortais.
Todos os arautos de sua prpria
eminncia diminuindo os semelhantes seguem, cleres, para a
negao da cidadania e dos postulados democrticos. Deste modo, eles
imaginam realizar uma obra sublime, atingindo a mais alta sapincia, ao
elogiarem uma natureza fictcia, acusando sem piedade aquela existente.
Pois eles no concebem os homens tal como eles so, mas pelo modo pelo
qual sua filosofia quer que eles sejam. Ao invs de uma tica, eles
escreveram uma stira (Tratado
da Autoridade Poltica). Espinosa foi o filsofo da alegria. Todo
o seu pensamento se dirige no sentido de assegurar a posse comum do
conhecimento pelos homens numa democracia poltica no repressiva.
Comentando as perturbaes polticas e
as guerras de seu tempo, nosso filsofo diz sempre com humor lcido:
Se o famoso personagem que ria de tudo viesse ao nosso tempo, ele
morreria de rir, com certeza. Quanto a mim, essas violncias no me
incitam nem ao riso nem s lgrimas; pelo contrrio, elas excitam em
mim o desejo de filosofar, melhor observando a natureza humana. Tese
estratgica: os homens, como os outros seres, so apenas uma
parcela da natureza. Como o todo desta ltima desconhecido por
ns, julgamos absurdas muitas coisas que podem ser perfeitamente
normais. Da a intolerncia face alteridade, base da raiva
aristocrtica contra a democracia. Qual o princpio de Espinosa, neste
plano? Deixo cada um viver segundo sua prpria compleio e
consinto que cada um, se o desejar, morra por aquilo que acredita ser o
seu bem, desde que me seja permitido viver para a verdade (Carta XXX,
a Oldenburg).
Lio dura de ser assumida,
convenhamos. Normalmente, nossa tolerncia no se pauta veraz,
mas pelo que ns consideramos normal, sagrado, tico. Nega-se,
deste modo, qualquer direito alteridade, destruindo-se, ipso facto, a noo de direitos
e deveres universais, abalando a prpria idia democrtica. Contra
essa corroso do respeito mtuo, que gera os Estados policiais, as
torturas, as mortes dos adversrios polticos, o confinamento de
indivduos que pertencem a etnias minoritrias e todo rol de
barbries praticadas no cotidiano de nossas sociedades, ergue-se at
hoje o ensino espinosano, sobretudo no Tratado Teolgico Poltico.
Citarei apenas alguns trechos desse
ltimo e nobre monumento democracia moderna. Dos fundamentos do
Estado, tal como o explicamos, resulta com evidncia mxima que seu
fim ltimo no a dominao: no para manter o homem no medo,
e pelo medo, fazendo-o pertencer a um outro, que o Estado
constitudo; pelo contrrio, para liberar o indivduo do medo,
para que ele viva tanto quanto possvel em segurana, isto ,
conserve, quando puder, sem danos para outrem, seu direito natural de
existir e agir. No, eu repito, o fim do Estado no o de conduzir
os homens da condio de seres racionais para o de bestas feras, ou
autmatos, mas pelo contrrio, o Estado institudo para que suas
almas e seus corpos cumpram com segurana todas as suas funes, para
que eles usem uma razo livre, para que eles no lutem apenas por
dio, clera ou astcia, para eles arem uns aos outros, sem
maldade.
A busca de alvos semelhantes faz da Anistia Internacional uma
herdeira dos mais nobres sonhos filosficos. Enquanto isso, nosso povo,
incitado por fascistas que no ousam dizer o prprio nome, irrita-se
contra a defesa dos direitos humanos. H ignorncia nesse ponto, mas
tambm m-f espantosa. Pelo rdio, televiso, imprensa escrita,
repetem-se slogans assassinos
e sofsticos que marcam a conscincia dos mais humildes. Para eles, o
prprio vocbulo direitos tornou-se um sinnimo de conivncia
com o crime. A par do no saber, temos a demisso coletiva dos
educadores na escola primria, secundria e no terceiro grau. Em
parcas ocasies os nossos engenhos universitrios pronunciam-se
coletivamente, verberando o estupro da liberdade e da igualdade, quando
se trata dos negativamente privilegiados. Mesmo nas igrejas isso
ocorre. Alm de poucos heris, como na Comisso de Justia e Paz,
tudo se dirige para manter a aparncia de normalidade, dentro da pior
violncia.
Os escritos aqui reunidos podem ser um
incio da pedagogia mais necessria para nosso tempo: a descoberta da
nobreza que reside em toda vida. Sem cidadania universal, ningum est
seguro. Ou todos se transformam, como temia Espinosa, em autmatos a
servio deste ou daquele tirano. Porm, alm de autmatos, os entes
humanos podem regredir condio de feras. Olhemos os dados sobre os
assassinatos de crianas, no Brasil e na Amrica Latina. Aristteles
costumava afirmar que um indivduo isolado ou Deus, ou uma fera. Os
ajustamentos polticos que por eufemismo chamamos Estado, em
nosso continente e no mundo, provam que as feras se renem. O dilogo
racional, compreendido agora no plano da educao para os direitos,
pela Anistia Internacional ,
oferece uma esperana de metania
em nossos estudantes futuros dirigentes e nos partcipes da
coletividade mais ampla. O livro foi feito para ser discutido. Assim,
merece o respeito de todas as mentes democrticas e livres. Sem o seu
concurso, e o de outras formas de melhorar o panorama axiolgico
ptrio, a palavra tica, com o seu correlato direitos
(tambm deveres), corre o risco de ser um termo vazio, ou de se
reduzir ao simples prisma do slogan.
Esperemos, portanto, que estas pginas,
editadas pela Anistia
Internacional, sejam estudadas nas salas de aula, nos debates
pblicos, nas reunies informais e cotidianas. O pensamento prudente
vale mais, a longo prazo, do que a propaganda que tende para o
repetitivo e carente de esprito. Esta uma aposta vital para quem
preza a dignidade e a sublime elevao do homem no interior de uma
natureza respeitada.
Roberto Romano |