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EDUCAO PARA OS DIREITOS HUMANOS E PARA A CIDADANIA: A RECEITA ANTI-BARBRIE

(Reflexes a partir de um texto de Theodor Adorno[1])

Fbio F.B.Freitas[2]

Auschwitz aqui... "Se as pessoas no fossem profundamente indiferentes em relao ao que acontece com todas as outras, excetuando o punhado com que mantm vnculos estreitos e possivelmente por intermdio de alguns interesses concretos, ento Auschwitz no teria sido possvel, as pessoas no o teriam aceito." (Theodor Adorno)

Antes dos anos dos 70, ns chamvamos um filme de "forte" quando ele continha cenas de violncia fsica e/ou sexo. Hoje temos outra semntica. Um filme "forte" um "bom filme", com uma trama densa e que tira o flego. Tivemos uma revoluo no modo como adjetivamos os filmes. Tivemos uma revoluo nas imagens e vocabulrios dos prprios filmes.

Tambm a figura do Mal, nos filmes, se alterou. O alemo nazista, o ndio sanguinrio, o mexicano sujo, o oficial sovitico frio, o japons traioeiro - todas essas figuras povoaram o imaginrio produzido pela indstria cinematogrfica norte-americana. Todavia, atualmente, a figura do Mal se sofisticou. Em O resgate do soldado Ryan o Mal "a guerra", e no o alemo ou mesmo o nazismo. Em Dana com Lobos o Mal a "crueldade contra a natureza e contra o diferente", mas no o ndio ou o branco. Em Philadelphia o Mal no a AIDS nem o dono da empresa que despede o doente, mas sim uma nova forma de desrespeito aos direitos civis. Tambm em O Informante o Mal no a indstria do tabaco, mas sim a desconfiana, a perda dos laos entre camaradas no trabalho e no lar.

O Mal, nos filmes, ficou mais abstrato e, por isso mesmo, mais abrangente, mais sufocante. O Mal se tornou bem mais Mal. Uma vez sem face, pode ocupar toda e qualquer face.

Nos meios acadmicos um dos textos contemporneos sobre o Mal que mais conseguiu ganhar sobrevida o Educao aps Auschwitz, de Theodor Adorno( ***). Companheiro de Max Horkheimer, Adorno absorveu de seu amigo o toque essencial para a durabilidade desse texto, para alm do seu marxismo datado: a Metafsica do Mal de Schopenhauer.

Assim, h quem diga que a razo do xito do texto de Adorno est no "prprio fato", ou seja, no campo de concentrao: o projeto no qual Auschwitz estava inserido no seria o de punio, de luta ou de guerra, mas de exterminao - de extino premeditada de um povo, associado a experincias nada cientficas com cobaias humanas, executadas sem qualquer arrependimento posterior. Ento, qualquer texto que apreendesse a grandeza e a durabilidade do Mal de Auschwitz teria sua grandeza e durabilidade.

Esse argumento no nada fraco na justificao do sucesso do texto de Adorno. Adorno acertou a mo na medida em que no viu Auschwitz como mero episdio histrico, mas o viu de forma abstrata e, assim, captou o Mal no sentido em que ele aparece nos filmes atuais: abrangente, sem volta, sufocante, sem rosto... sem remdio - quase sem remdio!

Mas o sucesso de Adorno veio junto com vrios problemas para os quais ele no estava preparado. Uma vez tendo visto o Mal metafisicamente, ele esboou esperana para o fim do Mal em um e tambm metafsico. O Mal, mesmo quando atinge tudo, poderia no ter envolvido o ntimo do homem. Quase como Rousseau, Adorno apostou que no corao humano haveria um cassete metafsico que poderia no estar corrompido e que, ento, em um determinado momento avisaria seu portador: "no!", "no faa isso", "no compactue com isso" - "no!".

Filsofos que esto mais para o sculo XXI do que para o XX, isto , filsofos do tipo de um Michel Foucault ou de um Richard Rorty, no acreditam no despertar dessa "voz da conscincia" na qual Adorno acreditava. Todavia, se Foucault estivesse vivo, talvez ele no desse tanta importncia para Dana com Lobos ou O Resgate do Soldado Ryan ou O Informante ou at mesmo para Philadelphia. Se ele visse algum intelectual falar bem desses filmes, talvez ele apenas achasse que se tratava de tentativas requentadas por um filsofo piegas para, adornianamente, fazer o corao humano dizer "no!" ao Mal. Ou pior: talvez ele visse isso como uma cobertura de um bolo cujo recheio seria, mais uma vez, puro patriotismo barato de norte-americanos desamparados. Mas um rortiano no pode achar isso: ele ver certamente que filmes assim no despertam coisa alguma, mas esto acompanhando uma importante revoluo semntica - eles so filmes "fortes". E o so exatamente na medida em que podem redescrever o mundo e, assim, induzir comportamentos capazes de dizer "no!" ao Mal mesmo quando este no tem mais rosto, e mesmo quando nada existe no interior do homem para ser despertado.

Aps esta reflexo inicial,voltemos Adorno e seu instigante texto e a algumas questes para anlise suscitadas a partir do projeto adorniano de, a partir de uma srie de estudos e pesquisas sobre a Personalide Autoritria,juntamente com outros membros da Escola de Frankfurt,descobrir relaes entre a personalidade e o conjunto de idias e valores, com base na noo de de que na personalidade se articulam fatores sociais e representaes ideolgicas. O objetivo prtico da ppesquisa, para seus autores,era compreender quais fatores sociolgicos so cruciais na constituio da personalidade autoritria e com atingem seus efeitos.

Auschwitz como horror emblemtico

exatamente no texto Educao aps Auschwitz, onde as concepes mais amplas de Adorno sobre o tema esto expressas.

No seu despojamento ele trs tona com singular fora o quanto o esforo intelectual de Adorno era movido pela angstia que, diferena dos adeptos de uma cincia asctica, que tanto abominava, ele nunca se eximiu de exprimir: a de ser contemporneo de Auschwitz, esse horror emblemtico, no pela sua singularidade, mas pela possibilidade objetiva da sua repetio. No por acaso um dos temas com que Adorno se ocupou o da frieza burguesa: a insensibilidade necessria reproduo de uma sociedade cuja verdade invel para quem se empenha em reproduzi-la.

Voc que nasceu nos anos 60 sabe onde fica Auschwitz? Ainda que no saiba sua localizao, provavelmente saber o que foi Auschwitz. Mas, e a gerao dos anos 80: ser que aprendeu o real significado de Auschwitz? Ser que nossa gerao soube cultivar nas mentes e coraes destes jovens a indignao diante do que aconteceu em Auschwitz e outros campos de concentrao nazistas?

Nossa responsabilidade, principalmente como educadores enorme: quanto maior a nossa ignorncia, maior o perigo de regredirmos para um estgio desesperador da negao absoluta da civilizao. Como afirma Adorno:

"Fala-se de uma ameaa de regresso barbrie. Mas no se trata de uma ameaa, pois Auschwitz foi a regresso; a barbrie continuar existindo enquanto persistirem no que tm de fundamental as condies que geram esta regresso. isto que apavora."

Aushwitz aqui

Olhemos ao nosso redor: a realidade que nos cerca expressa a barbrie e est prenhe de fatores que apontam para o risco da regresso. O mundo globalizado impele as pessoas em direo ao xenofobismo, intolerncia diante do outro, idia de que h uma inevitabilidade histrica, ao consumismo e ao individualismo desenfreado. Naturalizam-se as mazelas e misrias da condio humana: em nome de um determinismo amparado num vis tecnicista e nas necessidades da concorrncia internacional, isto , da predominncia do mercado, tudo justificado. As possibilidades histricas so suprimidas pelo discurso nico e dogmtico.

A crtica deu lugar ao servilismo. A cultura neo-liberal decretou, que no existe alternativa e os intelectuais, salvo honrosas excees, acataram. Os problemas sociais que afligem enormes parcelas da humanidade, excludas da mais elementar cidadania, parecem inevitveis ou um castigo dos cus. O capital riscou do mapa contingentes populacionais cujo maior pecado simplesmente no ter poder aquisitivo para consumir. Estas pessoas, no Brasil, na frica, na ndia e mesmo nos pases desenvolvidos, no contam como humanos: so descartveis.

A desnutrio cresce num mundo onde a tecnologia j torna possvel a soluo de algo elementar: a fome. Contrariamente aos idelogos malthusianos, nosso problema no o crescimento populacional: as guerras declaradas, as guerras civis no-declaradas nos centros urbanos e as polticas governamentais funcionam como a foice da morte a ceifar a vida de milhares de crianas e jovens precocemente. O problema, todos sabemos, est na concentrao da riqueza aqui e l fora. As prprias instituies internacionais, como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), reconhecem que a globalizao concentrou mais renda, seja na relao comercial entre os pases, seja no mbito interno destes.

A barbrie campeia livremente. Em inmeros presdios, inventaram a sarnaterapia. Organismos estaduais de sade reconhecem a garvidade da situao, que oito em cada dez internos abrigados em muitos presdios do Brasil tm sarna. Comentando esta situao, Vinicius Mota, colunista da Folha de S. Paulo, fez uma ironia fina: "Talvez um adepto da pedagogia do suplcio julgue que a coceira intensa mantenha as mos dos adolescentes ocupadas com "coisa melhor." Nem preciso referir-se s condies de higiene e aos demais componentes desta terapia. A AIDS outra epidemia que se disseminou nas prises, onde os presos no recebem nem os cuidados bsicos requeridos por um soropositivo,(vide o fortssimo relato contido em Estao Carandiru )

A condio humana continua a ser aviltada em situaes que antes horrorizavam os bem-pensantes membros da classe mdia intelectualizada. Basta ver as notcias sobre as torturas nas cadeias deste nosso imenso pas. As vtimas, sabemos, em geral so negros e pobres. E o trabalho infantil, a prostituio de crianas e o trabalho escravo, volta e meia denunciados na grande imprensa?

Enquanto isso, ns, educadores e intelectuai,voltamo-nos para as veleidades da ambio acadmica. Vaidosos, ostentamos nossos ttulos acadmicos como prova da nossa superioridade intelectual. Em nossa arrogncia, fetichizamos a tcnica e o conhecimento sem atentarmos para o fato de que seu domnio pelo nazismo significou a supresso da prpria humanidade. Pois como compreender que foram justamente os cientistas que projetaram o sistema ferrovirio para conduzir as vtimas a Auschwitz com rapidez e eficincia? Que tambm desenvolveram o gs Zyclon B usado nas cmaras de gs ?

Substitumos a mais elementar solidariedade ou mesmo o to nefasto corporativismo, pela autofagia e pelo individualismo exacerbado.

Em nome da eficincia quantificamos tudo. Dessa forma, repetimos outro procedimento presente em Auschwitz: a coisificao das relaes humanas. A partir do momento que no nos indignamos diante da realidade social, que aceitamos como natural determinados fenmenos sociais, acabamos por aceitar que determinados seres humanos so descartveis. Ao perdermos a noo do humano, o que Adorno denomina de conscincia coisificada, nos tornamos coisa e tratamos os outros como coisas.

Longe de pura abstrao filosfica, este fenmeno est presente em nosso cotidiano nas questes que nos parecem mais banais: a delinqncia juvenil (lembremos de como os adolescentes atearam fogo no ndio Patax); os assassinatos motivados por roubos de pequenas quantias ou mesmo por uma discusso com o motorista de nibus; o domnio do trfico e quadrilhas semelhantes (onde o fator humano s conta como consumidor de drogas e meio de enriquecimento). Numa realidade onde a vida humana vale menos do que um objeto material qualquer, a tendncia a crescente banalizao do mal.

Perdemos os limites. Quando um filho da abastada classe mdia trata outro ser humano como coisa descartvel e ficamos indiferentes alimentamos a serpente do autoritarismo. preciso, portanto, impor limites: mostrar que o intolervel no pode ser tolerado. (Por exemplo: em nome da liberdade de expresso, grupos racistas e neonazistas fazem propaganda pela Internet. No podemos toler-los! Agora realizam um congresso clandestino no Chile. preciso combat-los! No podemos agir como se isto fosse insignificante. O assassinato de um homossexual pelos Skinheads nos atinge! O argumento preconceituoso contra os nordestinos, os negros etc., nos diz respeito.

Como educadores, temos uma responsabilidade social diante de tudo isso. Ento, ao invs de nos perdemos em discusses interminveis e estreis; de nos afogarmos em nossa prpria vaidade; de gastarmos nosso precioso tempo porque s se vive uma vez na mesquinhez do emaranhado burocrtico e na luta pelo poder de controlar os meios de prejudicar o outro; de nos desgastarmos em picuinhas, faamos algo para que Auschwitz no se repita nas nossas relaes, nem como regresso: eduquemos no sentido da auto-reflexo crtica e nos dediquemos tarefa de esclarecer, para que se produza um "clima intelectual, cultural e social"que no permita a repetio de Auschwitz. O primeiro o repensarmos nossas prticas como educadores.e nos indignarmos com tudo que nos lembre Auschwitz....



[1] Theodor W. Adorno(1903-1969). Socilogo filsofo, msico, crtico literrio. um dos representantes do apogeu da cultura humanista euroia neste sculo em meio aos sinais de sua dissoluo

[2] Fbio F B Freitas, professor de Teoria,Filosofia Poltica e Direitos humanos, junto ao centro de Humanidades da UFPB.Membro da Rede Brasileira de Educao em Direitos Humanos e da Anistia Internacional.

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