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1g2312

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500 ANOS DE UMA CIDADANIA EXCLUDENTE 3j5n5c

Rosa Maria Godoy Silveira[1]

Para o historiador espanhol/catalo Joseph Fontana, falar do ado de uma sociedade posicionar-se em relao ao tempo presente, suas mazelas e grandezas. definir-se em relao s lutas e aos projetos sociais em confronto na sociedade em que vive o historiador[2]. esta a funo social da cincia histrica e hoje, luz das mais recentes tendncias, ponto pacfico para os historiadores, que olhamos o ado sempre na perspectiva de nossa contemporaneidade, muito embora ainda congelada em um tempo morto e esvaziada da multiplicidade da experincia humana e de suas virtualidades transformadoras.

Depois da Escola dos Annales, na Frana, emergentes das reflexes de um grupo de estudiosos interessados em compreender um mundo dilacerado pela 1a Guerra Mundial e a eroso de valores diante da voragem de novos processos sociais, alguns deles de terrveis conseqncias posteriores, como nazi-facismo, no foi mais possvel olhar o ado de forma blais, descomprometida e acomodada e a Histria problema de Lucien Febvre e March Bloch se props a interrogar o ado, lanar-lhe questes do tempo presente, no para que possamos revivenci-las, mas para elaborar uma compreenso como a aventura humana tem sido construda e reprojetar o futuro com uma conscincia crtica.

Da que examinar os 500 anos de nosso ado, encurtado pelo marco da presena europia, de vez que a presena humana no territrio hoje brasileiro recua at cerca talvez- de 50.00 anos atrs , conforme demonstram os achados arqueolgicos, significa encarar as dores do nosso tempo. Dores que se inauguram, alis, na conquista , com o genocdio indgena.

Parece paradoxal, quando comemorar uma festa. Celebrao. Mas uma festa cvica , sobretudo, Memria coletiva que confere um sentido de identidades aos grupos sociais, a um determinada sociedade.

Muitos temas e aspectos poderiam ser sacados dos escaninhos de nossa Memria, suscitados pela efemride do 5o Centenrio do Brasil. O intuito deste texto possibilitar nossas reflexes sobra a nossa trajetria como nao, como povo.

Sendo pois, mltiplas as possibilidades de interpret-la, pareceu-nos relevante discutir o percurso da problemtica da nossa cidadania e a nossa problemtica cidadania.

Fomos construdos como uma sociedade excludente.

Da destituio dos nativos in loco destituio longnqua dos negros africanos, gestamos uma sociedade assimtrica hierrquica, discriminatria social, tnica e culturalmente. A mestiagem, se nos fez multiculturais, no eregiu, desse processo peculiar de nossa cultura, a base de um pas democrtico. A marca colonizadora de nossa certido de nascimento, o monoplio da terra, a concepo e a prtica patrimonialista de poder, permeando o Estado metropolitano e as elites dirigentes da Colnia, configuraram numa estrutura de poder marcada, desde as origens, pelo empreguismo, a troca de favores e a corrupo, instaurando uma certa cultura poltica que longe est de ter sido debelada. Essa leitura pode ser vislumbrada na documentao referente s Capitanias do Brasil, existente no Arquivo Histrico Ultramarino, que vrios estados j organizaram ou esto organizando, como o caso da Paraba, sob patrocnio do Ministrio da Cultura. No caso paraibano, sob a gide da Universidade Federal da Paraba.

Tambm colonial foi a forma como se estabeleceu o poder pblico. Entre a centralizao metropolitana e o poder local dos proprietrios de sesmarias, convertidas legal e ilegalmente em latifndios, assumiu-se um vasto leque de transaes entre a burguesia portuguesa e sua asfixiante istrao, com o mandonismo, deixando uma herana ibrica de burocratismo excessivo, fria legisferante normativa e um pacto de dominao sobre a imensa massa de ndios (antes de serem mortos), negros escravos e mestios das camadas destitudas, cujos projetos alternativos de sociedade foram duramente reprimidos: a Confederao dos Cariris e os quilombos, por exemplo.

Lutou-se contra o Pacto Colonial. O Brasil autonomizou-se politicamente, ao custo de dois milhes de libras esterlinas-ouro, algumas guerras e uma transao dinstica. Nossa carta de crisma: uma Carta outorgada e os representantes da 1a Constituinte, silenciados a baionetas. Mas a brecha que poderia ter sido, no se abriu: a juno entre as elites brasileiras e o povo, articulando um projeto democrtico, nos contornos da democracia liberal da poca, no se alargou, conforme nos diz a competentssima historiadora Emlia Viotti da Costa[3], professora emrita da Universidade de Yale Estados Unidos, mas cassada pela ditadura militar porque, como vislumbrou Margareth Tatcher, a Histria precisa ser controlada porquanto perigosa.

Liberalismo e democracia, neste momento, se separam, como aponta o Prof. Srgio Adorno, da Universidade de So Paulo[4]. Caminharam em leitos separados na corrente do tempo. Parte dos liberais se conservadorizaram, pelo temor diante da possibilidade da multido na Histria: ou seja, os projetos populares do perodo regencial, dos cabanos, dos balaios, dos mals, dos sabinos; e, at, projetos diferenciados no mbito da prpria elite, or maior autonomia, a exemplo dos farroupilhas. Detenhamos o carro da revoluo, bradou Bernardo Pereira de Vasconcelos[5], condensando o medo diante do povo.

Tambm da elite, de um modo geral, ou, no limite, pacto entre elite e segmentos mdios urbanos, foi duramente reprimida a tradio libertrio-autonomista do Norte hoje Nordeste -, notadamente Pernambuco, Paraba, Cear, manifesta na Revoluo de 1817, na Confederao do Equador, na Revoluo Praieira. Poderamos ter sido Repblicas quase setenta anos antes do que fomos. Mas o medo da elite e a represso fizeram triunfar um outro projeto, unitarista, centralizador, regionalmente desigual, viabilizando e consolidando a hegemonia do grupo cafeeiro fluminense.

Sob o discurso da nao indivisa, que a estes interesses servia, reiterou-se a estrutura colonial. A democracia brasileira, o liberalismo brasileira, inspirando-se em modelos ingleses e ses no que lhes convinha e depurando-os das virtualidades emancipatrias, que no lhes convinham (os chamados malignos vapores ou idias da tradio revolucionria de 1789), plasmaram uma sociedade de cidados hierarquizados, cuja nomeclatura, na Carta de 24, evidencia a discriminao poltico-eleitoral: cidados ativos e cidados simplesmente, aqueles, com direitos polticos; estes, apenas com direitos civis, assim mesmo discutveis no cotejo com uma sociedade de uma imensa massa de analfabetos e de trabalhadores escravos. A chamada construo do Estado nacional uma das maiores engenharias polticas de excluso de cidadania, organizado e estratificado, atravs da centralizao poltica, o controle dos trs mundos, como elucida a obra do Prof. Ilmar Rohloff de Mattos, da Universidade Federal Fluminense, O Tempo Saquarema[6]: o mundo da Casa, ou do privatismo da elite agrria, podando-lhe as pretenses autonomistas; o Mundo da Rua ou da Desordem ou da Plebe, cerceando-se as expresses da populao pobre livre, pela violncia e mecanismos de cooptao; o mundo do Trabalho, reprimindo-se os escravos, pela coero legislativo-normativa e as represses pura e simples.

A reforma eleitoral dos finais dos anos 70 do Imprio, permitindo o voto do analfabeto, no ampliou o eleitorado. Tirou com a outra mo o que havia dado com uma, elevando o critrio de renda mnima como requisito para ser eleitor.

A abolio dos escravos, mais uma vez, demonstrou o divrcio entre liberalismo e democracia, outorgada sem disposies em contrrio e, tambm, sem nenhum projeto de integrao dos libertos sociedade, econmica, social e politicamente, deixando um rastro de preconceito e discriminao que no se extirpou de nossa sociedade. Novamente, o temor das elites podava uma alternativa mais democratizante, que se estava engendrando, da juno da luta escrava com as aspiraes das camadas mdias urbanas por direitos polticos e o a condies de trabalho.

A Repblica seria a democracia. Mas no o foi. No por ter cado de cima para baixo, de um pacto entre a elite agrria paulista, o segmento militar e alguns republicanos idealistas, que cedo se desiludiram com o regime. Mas, principalmente, porque o eleitorado encolheu, em relao ao Imprio, conforme as pesquisas o demonstram; e, ainda, reiterou, atravs de um Estado Oligrquico, o poder de grupos locais latifundirios sobre as massas camponesas. O federalismo de inspirao norte-americana, se democrtico em comparao com o centralismo do Imprio, o foi no limite das elites proprietrias, dando-lhes maior autonomia demando. Jamais possibilitou espao para um self-government de participao popular, a exemplo da tradio anglo-saxnica, embora neste modelo tambm se inclua a ingrediente da discriminao, racial, por exemplo.

30, 64, 85: todos movimentos pelo alto, cerceando as aspiraes populares.

Se 30 se inspirou no Faamos a Revoluo antes que o povo a faa, 64 se auto-justificou no combate aos inimigos internos adversrios do projeto multinacionalizante e reiterativo de nossa dependncia; e 85 interditou s as Diretas J! Se o movimento operrio avanou nos anos 30, o sindicalismo oficial e a ditadura do Estado Novo o atrelaram, reprimindo perigosos extravasamentos das massas urbanas emergentes. A democracia oficial do interregno populista no deixou de criar novos mecanismos de controle e cooptao ou mesmo represso. A democracia formal da Nova Repblica no deixou de ser mais retrica que efetiva, em seu jogo ambguo, onde o Tudo pelo Social toldou a percepo de indcios claros de polticas neoliberais que se implantariam com vigor nos anos 90.

Anos 90, quase no fim. 500 anos de Brasil.

O que h de novo? O que mudou? O que melhorou para a populao brasileira?

A seduo do mercado globalizado, de uma elite e de uma classe mdia alta afluente aos fluxos cibernticos e internticos internacionais consegue ocultar um dos movimentos mais profundos de expropriao de direitos da cidadania, em nossa Histria, apesar do discurso e da propaganda em contrrio. Alis, enganosa, a merecer aes dos consumidores no PROCON.

Ou cidadania apenas formalizao jurdico-institucional de direitos?

Os estudiosos apontam que estamos vivendo a 4a fase histrica na luta por direitos. Dos direitos civis da tradio liberal dos sculos XVII-XVIII, ou-se aos direitos polticos do sculo XIX, ampliando a participao eleitoral; aos direitos sociais (sade, educao, moradia etc.) no sculo XX e, mais recentemente, aps a 2a Guerra Mundial, aos novos direitos como o ambiental, o do consumidor, da mulher, dos negros, dos homossexuais etc.

Na Europa Ocidental, Escandinvia, Amrica do Norte, claro. Nossa Histria outra.

Apesar de todos esses blocos de direitos circularem em nossa sociedade, e terem avanado no plano da formalizao normativa, na prtica, funcionam?

Temos enormes massas de analfabetos, ainda. Pessoas morrem, cotidianamente, nos hospitais. Milhes am fome e milhares morrem de epidemias tecnicamente resolvidas dcadas e, em certos casos, sculos.

E, mesmo assim, ainda se est cerceando os mseros direitos que restam populao, duramente conquistados e agora conspurcados por uma elite que, mais uma vez em nossa Histria, d as costas ao povo e se curva aos ditames do capital internacional.

O desemprego se robustece, o salrio mnimo se encurta.

Politicamente, o poder econmico produz grande parte dos resultados eleitorais e de nossa representao poltica. A corrupo grassa sem punio: se verdade que o FMI nos impe polticas recessivas, isto meia verdade. No h dinheiro para polticas pblicas tambm porque nossos polticos assaltam os cofres pblicos de vrias formas como, por exemplo, o empreguismo de seus apaniguados, as licitaes de obras pblicas com cartas marcadas, o roubo direto de verbas destinadas merenda escolar etc. etc. etc.

desse jeito que somos cidados?

A cidadania que queremos, e precisamos, no a empulhao que nos vende a propaganda oficial, que pretende ser uma cidadania consumista, nem esta sequer garantida, desmentida a toda hora por outros discursos oficiais de refilantropizao das aes sociais.

Daqui a 500 anos, ou menos, algum Ministrio da Cultura da poca, que fizer um outro projeto para recuperar a nossa Memria coletiva, encontrar significativas semelhanas com a documentao produzida no Brasil colonial.

Ou no?

Poder ser no.

Paul Ricouer professor emrito da Universidade de Chicago nos diz que ... preciso inverter a ordem dos problemas a partir do projeto da histria, da histria por fazer, com o objetivo de nela reencontrar a dialtica do ado e do futuro e seu intercmbio no presente.[7] Do cotejo entre o nosso horizonte de expectativa e a reinterpretao do nosso espao de experincia, podemos construir uma sociedade democrtica e de Cidadania efetiva.

Em nossos 500 anos de Histria ps-chegada dos europeus, se a excluso social e poltica se hegemonizou, ela no era inevitvel e unvoca. Muitas trajetrias de lutas democratizantes foram interrompidas, reprimidas, massacradas. De ndios, escravos, camponeses, operrios, homens, mulheres etc.. O que vingou e se imps, foi a opo de grupos que preferiram compor o poder com os colonizadores, ainda que subordinados aos mesmos; que continuam a preferir compor o poder com os neo-colonizadores neoliberais, ainda que a subordinao seja maior. Porque no preferiram construir uma sociedade onde houvesse partilha de pode com o povo.

O mesmo Joseph Fontana nos descreve:

Durante a guerra civil espanhola, Antonio Machado [o poeta] escreveu que ao examinar o ado para ver o que levava dentro, era fcil encontrar nele um acmulo de esperanas nem alcanadas nem falidas, isto , um futuro. O tipo de histria que escrevemos e ensinamos h duzentos anos eliminou este ncleo de esperanas latentes do seu relato, onde tudo se produz fatalmente, mecanicamente, numa ascenso initerrupta que leva o homem das cavernas pr-histricas at a glria da ps-modernidade.[8]

Nossos 500 anos no foram lineares. A Memria coletiva das esperanas do povo no jaz soterrada no ado, para sempre.

Nossa Histria nunca foi assim como disseram. Nossa Histria por fazer no ser assim como nos querem fazer crer, inevitvel, e, se inevitvel, sem esperanas, se o nosso projeto de Histria por fazer, o nosso horizonte de expectativas, retomar o ado no seu perigo radical: ser o relato da luta dos homens e das mulheres pela liberdade e pela justia.[9]

Finalizo com o poeta Fernando Pessoa, ao falar da heroicidade e da tragicidade da conquista portuguesa. Pessoa, que refletiu sobre o valor e as dores desse feito. Fao-o com uma licena potica. A poesia chama-se Prece:

Senhor, a noite veio e a alma vil.

Tanta foi a tormenta e a vontade!

Restam-nos hoje, no silncio hostil,

O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em ns criou,

Se ainda h vida, ainda no finda.

O frio morto em cinzas a ocultou:

A mo do vento pode ergu-la ainda.

D o sopro, a aragem ou desgraa ou nsia,

Com que a chama do esforo se remoa,

E outra vez conquistemos a Distncia

Do mar ou outra, mas que seja nossa![10]

A nossa licena potica, com o devido respeito a Fernando Pessoa,

E outra vez conquistemos a esperana

da liberdade e da justia, que sejam nossas!

Muito obrigado.



[1] Professora Doutora, Chefe do Departamento de Histria/UFPB

[2] Cf. Fontana, Joseph. Histria: anlise so ado e projeto social. Bauru, So Paulo: EDUSC, 1998

[3] Da Monarquia Repblica: momentos decisivos. 2 ed. So Paulo: Cincias Humanas, 1979

[4] Cf. Os Aprendizes do Poder. S Paulo: Paz e Terra, 1988

[5] Um dos mais importantes polticos brasileiros do perodo regencial. Liberal, lutou contra o autoritarismo de D. Pedro I; mas pelo temor de que o poder pudesse extravasar para as camadas populares, liderou o regresso, isto , um processo de conservadorizao do Estado.

[6] Cf. O Tempo Saquarema: A formao do Estado imperial. So Paulo: Hucitec, 1990

[7] Cf. Tempo e Narrativa. Tomo III. Campinas, SP: Papirus, 1997. P. 359.

[8] Cf. Op. Cit. P. 276.

[9] Idem ibidem.p.279.

[10] Fernando Pessoa. Obra Potica. Volume nico. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.p. 83

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